Portugal não foi “uma segunda Grécia”. Uns não fizeram nada por isso.
Outros fizeram. Cavaco Silva não terá sido dos que fez menos. Tem todo o
direito de o lembrar e nós temos a obrigação de o ouvir.
Parece que mais uma vez o professor Cavaco Silva fez o que não devia. Da
outra vez, tinha contado o que vira e fizera durante o seu primeiro mandato
presidencial. Para uma oligarquia que se habituou a não contar nada – ou que
não pode mesmo contar nada – foi um escândalo. Este mês, com o segundo volume
das suas memórias, sobre o ajustamento de 2011-2014 e as origens da
“geringonça”, agravou a falta. Os jornais já fizeram a resenha das zangas.
Lembrámo-nos assim de quem era Cavaco Silva. Não apenas o “intruso”, que não
veio dos bairros e liceus da capital, mas alguém que, contra as elites
lisboetas, fez sempre o que achou que devia fazer: agora, por exemplo, não
estar calado. Foi essa independência que a oligarquia ressentiu nele desde o
princípio — e continua a ressentir.
À esquerda, nunca lhe perdoaram ter provado, com cinco vitórias eleitorais
e quatro maiorias absolutas, que o país, afinal, não é de esquerda. À direita,
a lista das queixas é maior. Como presidente da república, não expulsou José
Sócrates do poder, discordou demasiadas vezes de Passos Coelho e deixou António
Costa no governo. Tudo isso é verdade, mas foi ele quem, sozinho no Estado,
entre 2006 e 2011, limitou a tomada do poder por Sócrates; quem, em Julho de
2013, por entre demissões inusitadas e cartas estapafúrdias, manteve um governo
PSD-CDS que um Mário Soares ou um Jorge Sampaio teriam demolido imediatamente,
mesmo que à custa de fazer de Portugal outra Grécia; e quem, na origem da
“geringonça”, forçou António Costa a confirmar o compromisso com os princípios
do regime democrático.
Como terá dito a Passos Coelho, em Julho de 2013, “não sou pessoa que
decida de ânimo leve. Estudo, pondero e procuro obter o máximo de informação”
(p. 257). Esta atitude talvez nunca tenha sido devidamente compreendida. Cavaco
Silva não foi simplesmente um economista que desprezava a política, nem um
presidente da república que tivesse limitado o cargo às conversas com os
primeiros-ministros. Foi um político que teve sempre consciência das
fragilidades do regime – uma consciência que por vezes é descrita como
“institucionalismo”, como se fosse um mero pendor formalista, quando é,
sobretudo, noção dos limites do que é possível – da “realidade”, como Cavaco
Silva diz. Ora, da “realidade”, em Portugal, ninguém gosta – e, consequentemente,
também não de quem a lembra.
À medida que, desde a década de 1990, a economia deixou de corresponder às
expectativas, o regime refugiou-se numa dupla irrealidade: a dos que achavam
que tudo poderia ficar como estava indefinidamente — sem riscos, e a dos que
achavam que tudo poderia ser mudado imediatamente — sem custos. Cavaco Silva
nunca pertenceu a nenhum desses grupos. Não teve, por isso, vida fácil. E
tornou ainda as coisas mais difíceis, quando, como presidente, optou por uma
acção, que não era o “murro na mesa” que uns queriam, nem a “chancela” que
outros esperavam. Este volume das suas memórias é dramático. A bancarrota de
2011 terá sido a maior das desilusões para quem, vinte anos antes, concebera a
integração europeia como a via de passagem de Portugal para um outro patamar de
desenvolvimento. Pior: o próprio enquadramento europeu pareceu, a certa altura,
ameaçado de “desintegração” e de “colapso” (p. 289). Percebemos melhor assim a
preocupação com a “estabilidade”, que uns, por ingenuidade ou malícia,
confundem com “não fazer nada”, e outros, com mais um “bloqueio”. Tudo poderia
ter corrido muito mal. Não correu. Portugal não foi “uma segunda Grécia”. Uns
não fizeram nada por isso. Outros fizeram. Cavaco Silva não terá sido dos que
fez menos. Tem todo o direito de o lembrar e nós temos a obrigação de o ouvir.
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