Maria de Fátima Bonifácio - jornal Público
Vai ser um espectáculo muito divertido assistir à
caminhada, a conta-gotas, de actuais governantes e influentes ex-socráticos
para o Campus da Justiça. E isto a meses das eleições de 2020. É este carnaval
que António Costa necessita de evitar – rolem as cabeças que rolarem.
Na presente conjuntura, em que a remoção de Joana
Marques Vidal da Procuradoria-Geral da República irrompeu nas primeiras páginas
da imprensa (Sol, 1.9.18), veio-me à memória a frase, de fino recorte social,
do saudoso Jorge Coelho – “quem se mete com o PS, leva” – proferida já nem sei
exactamente em que contexto. Mas sei o essencial: que o PS não tolera
“afrontas” e retalia com violência. No caso presente, basta substituir PS por
António Costa, primeiro-ministro de um governo que pura e simplesmente não
suporta uma Justiça com olhos vendados. E a Procuradoria-Geral da República,
dirigida por Marques Vidal, estava mesmo a pedir uma valente barrela: a
independência, a isenção, a competência e o carisma de Joana Marques Vidal, que
ainda por cima é de uma discrição exemplar - “fala pouco e trabalha muito” (Sol, 1.9.18) – tornaram-na um pesadelo
para os que tudo têm a temer com a marcha regular, tranquila mas temerária de
uma Justiça que, pela primeira vez em Democracia, nos deu a nós, portugueses, a
fundada impressão de que já ninguém gozava do exorbitante privilégio da
impunidade.
Foi este, ao cabo de décadas de propositado desmazelo
judiciário, um dos mais assinaláveis progressos registados pela Democracia
portuguesa, que, até à chegada de Marques Vidal e da sua equipa, estava habituada
a esconder e a empilhar, nos subterrâneos do Palácio da Rua da Escola
Politécnica, ao Rato, os casos mais escabrosos de desbragada corrupção: aqueles
em que estavam envolvidas personagens com proeminência social, e personagens
emblemáticas do regime. Nesses tempos, não longínquos, o povinho, a que
pertenço, rugia de raiva e espumava de impotência.
Logo em Janeiro de 2018 escrevi um artigo no PÚBLICO
em que denunciava as grosseiras manobras de António Costa, por interposta
pessoa da ministra Van Dunem, para ir preparando o terreno para o anúncio da
não recondução da actual Procuradora-Geral assim que perfizesse seis anos de
mandato. Van Dunem, nessa altura, invocou uma suposta “tradição histórica”,
constitucionalmente consagrada, segundo a qual a/o PGR cumpriria um mandato
longo – de seis anos – mas único. Demonstrei, com números e tudo, que tal
tradição era inventada: não existia (nem existe). Demonstrei também que a
Constituição, revista em 1997, nenhum prazo estabelecia imperativamente para a
duração do mandato do/da PGR (artº22º; artº133/alínea M). É só pegar no
livrinho e ler: não é preciso ser jurista para interpretar o que lá está, basta
não ser totalmente analfabeto – ou, então, ser muito faccioso e mentiroso. Em
suma: nada, mas nada de nada – nem texto constitucional, nem alegada tradição –
obriga a evacuar Marques Vidal da Procuradoria-Geral da República antes do fim
deste ano.
Passada a agitação de Janeiro pretérito, o assunto
esmoreceu, como convinha ao primeiro-ministro, a quem, naquela altura, bastavam
uns tiros para o ar, dos que se usavam para espantar possíveis ladrões em
quintas isoladas. Mas, no final da silly season, a (pseudo)-polémica jurídica
reacendeu-se. O sr. Filipe Neto, vice-presidente do grupo parlamentar
socialista, sôfrego por ser útil, correu para o Facebook e escreveu estas
palavras categóricas, citadas no sábado pelo Sol: “Não está sequer na
disposição da ministra […] fazer com que a PGR pudesse exercer o seu cargo para
além dos seis anos previstos na Constituição. Pretender o contrário, além de
má-fé, será sobretudo uma manifestação de profundo desconhecimento do texto
constitucional.”
Uma pessoa lê e pasma! Primeiro, a invocada
“disposição da ministra” não conta para nada. Depois, é difícil afirmar com
tanta e tão descarada veemência uma mentira mais do que flagrante, descarnada.
E o facto é que, excepto o PS, todos os partidos, incluindo o BE, louvam o
trabalho de Marques Vidal e apoiam a sua recondução. Não só partidos, também
individualidades, como o próprio Pinto Monteiro (“a lei permite recondução”),
Paula Teixeira da Cruz, Marques Mendes (“ficou a ideia de que a Justiça é mesmo
igual para todos”) ou o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que se
pronunciou nestes termos: “Fez um trabalho muito positivo e que imprimiu uma
nova dinâmica no Ministério Público, sobretudo em questões de investigação e
criminalidade económica e financeira”. Também o bastonário da Ordem dos
Advogados alinha pela opinião geral: “Pode haver recondução, nada existe de
limitação do ponto de vista da lei.”
Portanto, a remoção da PGR constitui um interesse
privado de António Costa. Mas não se distanciou ele próprio de Sócrates e o PS
não abandonou Sócrates à sua sorte? Sim. Mas: caso o julgamento se inicie, como
deve ou está previsto, ainda em 2019, o “animal feroz”, que nos desgovernou e
arruinou durante oito anos, não deixará de citar como suas testemunhas os seus
mais próximos colaboradores, logo recuperados por Costa como elementos do seu
inner circle ou fazendo parte da “tralha socrática” anichada no partido ou em
lugares subalternos do governo. Last but not least, enquanto ministro da
Administração Interna, o próprio Costa foi um colaborador próximo de Sócrates.
É de entre estas criaturas que Sócrates nomeará as
suas testemunhas, que o Tribunal convocará oportunamente. Vai ser um
espectáculo muito divertido (e instrutivo) assistir à caminhada, a conta-gotas,
de actuais governantes e influentes ex-socráticos para o Campus da Justiça, na
Expo. E isto a meses das eleições de 2020. É este carnaval que António Costa
necessita de evitar – rolem as cabeças que rolarem. Que ninguém se meta com
António Costa!
Historiadora
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