Para escrever sobre política, meus caros, é vital
ignorar aquilo que as televisões vendem no lugar da política: uma feira de
horrores sem o bálsamo do cuspidor de fogo.
Na semana passada, o ócio nacional resolveu debater o
salário de uma apresentadora televisiva. Porque seria ridículo, não vou sugerir
que desconheço a senhora. Porque seria mentira, também não me declaro
familiarizado com a respectiva obra. A verdade é que as escolhas profissionais
da dona Cristina Ferreira apenas dizem respeito à própria e às empresas –
privadas – que a contratam. Não me dizem respeito a mim, e para cúmulo não me
interessam. Excepto num ponto: o facto de ainda haver gente atenta à existência
da televisão como se estivéssemos em 1992. Ou 1972.
Se se procurar no Google, a frase “end of television”
devolve uma quantidade considerável de ligações, muitas para ensaios e palpites
acerca da morte, próxima ou consumada, de um “media” que definiu o século
anterior. A ideia geral é que, graças a múltiplas consequências tecnológicas,
económicas e sociais proporcionadas pela internet, a televisão não vai longe, e
isto admitindo que poderá ir a algum lado, além do museu onde jazem o fax, o
leitor de cassetes, a imprensa “tradicional”, a varíola e o arremesso de anões.
Não sei, não sou vidente.
Limito-me a confessar que, no início de Agosto, sofri
uma epifania. Foi durante aqueles dias de particular calor, num serão em que o
descuido ou o destino me levaram ao “zapping” pelos canais da paróquia. Os
“generalistas” em peso, leia-se os que não têm assunto, tratavam os 40 graus em
Agosto com a atenção e o pormenor antigamente reservados a um golpe de Estado
ou dois. Fascinado, vi repórteres interrogarem populares na praia, repórteres
interrogarem populares na esplanada, repórteres interrogarem populares na rua.
Vi depoimentos de figuras importantíssimas da Protecção Civil, que recomendavam
estratégias misteriosas para lidar com as temperaturas (vestir roupa fresca em
vez de quente, beber água ao invés de morrer à sede, etc.). Vi o ocasional
périplo pelos “focos de incêndio”. Vi o prof. Marcelo banhar-se num rio. E vi
todos os canais regressarem aos populares para nova ronda de pertinentes
questões. Uma hora depois, o exercício continuava a preencher os noticiários da
noite. E eu ali, de boca aberta. Comecei a tentar decifrar se aquilo
demonstrava a demência dos responsáveis pelas televisões ou a demência que eles
presumem no espectador médio. De repente, ocorreu-me: que importa? No dia
seguinte, liguei para a companhia de TV por cabo e cancelei a assinatura.
Suponho que para sempre.
Convém relativizar a decisão. Há um par de meses que,
distraidamente, não espreitava um programa português, ou sequer reparava na
“box” desligada. Porque não gosto de televisão? Pelo contrário: porque gosto
demasiado, as “plataformas” (bela palavra) “on line” satisfazem-me as
preferências sem contaminá-las com entulho. Noto, entre parêntesis, que o
entulho “audiovisual” não é exclusivo da televisão convencional. Recentemente,
dois pré-adolescentes, filhos de amigos, esforçaram-se por me iniciar no
encantador universo dos “youtubers”. Pelos vistos, se um pateta de vinte anos
se filmar regularmente a exibir a subtileza e o humor de uma criança de oito, o
pateta incorre numa carreira de “youtuber” e candidata-se a uns trocos. A
diferença é que, separado o lixo em prol do ambiente, na internet encontram-se
pequenas maravilhas ou produtos suportáveis. Na televisão convencional não se
encontra nada, ou nada que, em querendo, não se encontra na internet.
Quando em 1988 a Newsweek celebrizou o conceito de
“trash tv”, referia-se apenas a um subgénero emergente. Ao lado de Geraldo
Rivera, Jerry Springer e Oprah Winfrey, persistiam Carson e Letterman e
cozinhavam-se “Seinfeld” e “Os Simpsons”. Mesmo hoje, em que o horror dos
“reality shows” ocupa boa parte da televisão americana, sobra uma nesga para
séries toleráveis, o estertor do “Saturday Night Live”, os documentários da PBS
e, perdido algures, Conan O’Brien. Por cá, naturalmente, o subgénero lixo é o
único género em vigor. Se não estão a “auscultar” o “cidadão comum”, os
“telejornais” caseiros enchem-se de bola, “certames”, crimes, dramas,
sentimentos e enchidos nos sentidos gastronómico e “jornalístico” do termo.
Fora dos “telejornais”, julgo haver telenovelas, concursos, suburbanos
estridentes e, nas cinco ou sete horas que restam, bola, ou adultos sem receio
de guinchar em público pelo “clube do coração”.
Garantem-me que há igualmente programas de política, e
que quem escreve a propósito não os pode dispensar. Um erro típico. O que há
nas nossas (salvo seja) televisões não é política. É propaganda do “sistema”,
tão solícita que envergonharia o “sistema” caso este tivesse pingo de vergonha.
É prestação de serviços, disfarçada de “objectividade”, às espectaculares
figuras que mandam nisto. É um interminável rol de “comentadores” indignos de
comentário. É o descaramento dos “debates” desprovidos de contraponto ou
decoro. Às vezes, arrisca-se breve incursão por temas “internacionais”, espaço
reservado à condenação do sr. Trump e das “mudanças climáticas”, fora outros
desabafos assim profundos. Para escrever sobre política, meus caros, é vital
ignorar aquilo que as televisões vendem no lugar da política: uma feira de
horrores sem o bálsamo do cuspidor de fogo ou, se não incluirmos certas
activistas, da mulher barbuda.
A minha mãe diz que a televisão é uma companhia – das
más, esquece-se de acrescentar. Tarde, mas a tempo, o filho aprendeu a
evitá-las sozinho.
Nota de
rodapé
O cadastro das “personalidades” que querem enxotar
Joana Marques Vidal prova que a continuação da senhora no cargo não é apenas
relevante, mas decisiva para tentar manter o país do lado de cá da civilização.
Os que se lhe opõem passaram há muito para o lado de lá, que aliás está
pertinho. Alguns nasceram aí.
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