O que aflige nesta história é a brutal
desumanidade das personagens, a começar pela principal. Aquilo espreme-se e não
sai dali pingo de semelhança com o que se convencionou chamar uma pessoa.
Há as declarações, obviamente
deturpadas, do dr. Costa sobre Monchique ser “a excepção que confirma a regra
do sucesso” no combate aos fogos florestais, talvez no sentido em que o
Holocausto foi a excepção que confirma a regra do amor pelos judeus na Alemanha
nazi.
Há as declarações em que o dr. Costa
explica a “complexidade” de Monchique com a “vela de um bolo de aniversário”,
que “todos nós apagamos com um sopro, mas quando a chama se alarga e os
incêndios ganham uma escala com esta dimensão, não basta os sopros nem alguns
dias de trabalho”. É uma analogia esteticamente rica, tecnicamente informada e
cuja clareza só uma criança percebe.
Há o momento em que o dr. Costa culpa o
eucalipto pela tragédia que afinal é um êxito, num corajoso desafio aos
“especialistas” que, armados com “ciência”, “factos” e “realidade”, “provam” a
inocência da dita árvore.
Há as fotografias do dr. Costa no
Twitter oficial, em que, surpreendido em pleno comando das operações, o
estadista ora aponta para um ecrã, ora contempla o telemóvel, ora encosta o
telemóvel à orelha. Quando não fogem para praias espanholas, os estadistas
distinguem-se por proezas assim, além de exibir a barriga ou o peso da
responsabilidade.
Há o “texto” do dr. Costa no Twitter
oficial, onde se afirma em “contacto permanente” com ministros, autarcas e uma
AGIF (?) para efeitos de “actualizações”, “análise” e “orientações”.
Incansável, envia uma “palavra de apoio” (qual?) aos “agentes da proteção (sic)
civil” e outra de “solidariedade” (qual?) às “populações afetadas (sic)”.
E depois há as naturais degenerescências
do dr. Costa, que rimam com a criatura em cada gesto. Há a protecção civil, um
centro de emprego para comparsas que envia sms vagos e acerta sempre que não
erra. Há o representante dos bombeiros, munido de uma licenciatura em Sporting.
Há uma barbela, competentemente elevada a ministro, que declara grandes
vitórias em cenários arruinados. Há polícias que pelos vistos algemam as
potenciais vítimas para bem destas. Há “meios” aéreos que não voam, “meios” terrestres
que não se entendem e meios malucos que juram pela excelência dos serviços. Há
uma empresa indigna de gerir a TVI e excelente para dirigir o SIRESP. Há o
SIRESP, embora se houvesse não se notaria a diferença. Há funcionários do “112”
que se limitam a desejar “boa sorte” aos aflitos. Há “jornalistas” que repetem
ou legitimam as iluminações do chefe. Há silêncio dos parceiros de maioria e
dos parceiros da oposição. Há um presidente avesso a ocasiões insusceptíveis de
“selfie”. E há uma população que assiste ao circo com fundamental desinteresse,
e que vê nos incêndios uma ocasional alternativa aos debates da bola.
Os incêndios, porém, não são o problema.
Acidentes acontecem, como acontece a radical inépcia dos que recebem salário
para mandar em nós. O que aflige nesta história, e nas histórias que a
precedem, é a brutal desumanidade das personagens, a começar pela principal.
Aquilo espreme-se e não sai dali pingo de semelhança com o que se convencionou
chamar uma pessoa, cheia de defeitos e virtudes. Não se trata apenas um
lamentável carácter: é uma coisa com os predicados morais do percevejo médio, a
caricatura de um vilão desprovido de empatia, decência e de tudo o que não seja
a manha dos simples, um perigo em suma. Estou a falar do dr. Costa.
Quanto ao resto, não vale a pena. Não
vale a pena esperar demissões, indignações, sublevações. Não vale a pena
respeitar um lugar que não se dá a respeito nenhum. Desde que, no saboroso ano
de 2017, os donos do regime resistiram às próprias figuras durante Pedrógão,
ficou estabelecido que os donos do regime resistem ao que calha – porque não
calha ninguém ousar ou sequer tencionar incomodá-los. Na verdade, as
“autoridades” podiam dispensar as chamas e chacinar a tiro centenas de cidadãos
que, realizada a limpeza a cargo dos “media”, em poucos dias regressaria a
normalidade. “Apatia” é um termo demasiado suave. “Masoquismo” também.
Há dias, tentei explicar à minha amiga
Leonor (Freitas da Silva) o desagradável sentimento que o país actual me
inspira. Acho que mencionei a vergonha. É pior, Leonor, pior do que vergonha e
pior do que desprezo. É a impressão de que atingimos um ponto sem retorno e sem
remédio, em que a prepotência é tão arrasadora e a impunidade tão evidente que
quem as sofrer calado deixa de ser vítima para se tornar cúmplice. E é a
certeza de que a vasta maioria dos portugueses não hesita na escolha. Deixar
arder, pois, em Monchique e em todo o lado.
A dureza da foto que ilustra e completa o texto nao deixa duvidas sobre a sua brutalidade. O texto e de arrepiar, para quem nao tem vergonha esta sempre tudo certo, ate a popularidade. Quem deu o melhor de si sobre esta causa durante mais de 20 anos, fico sem palavras. O que interessa e o palco o reste que se amanhe!
ResponderEliminarNa minha terra diz-se - "Deixa arder que o meu pai é bombeiro… "
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