Do jornalismo de sarjeta passámos à
política de sarjeta, onde impera a lei da selva, com cada um a sacudir a água
do capote e a clamar "salve-se quem puder"?
José Sócrates demitiu-se
do PS depois de o caso Manuel Pinho, verdadeira gota de água a transbordar o
copo, ter precipitado o afastamento de ministros do actual Governo e dirigentes
do partido em relação ao ex-primeiro ministro. Saindo também em defesa de
Pinho, Sócrates considerou "ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço
mútuo". Ora, a sua desfiliação partidária leva-me a
evocar um paralelismo pessoal, embora de sentido oposto. Em 2004, estando
Santana Lopes à frente de um Governo com naufrágio anunciado e José Sócrates
conspirando afanosamente nos bastidores para tomar de assalto o PS, decidi
apresentar a minha demissão de militante do partido de que era então deputado.
Porquê? Exactamente por causa disso – ou seja, do socratismo triunfante que se
avizinhava com a complacência da maioria dos dirigentes e militantes do partido
depois da absurda renúncia de Ferro Rodrigues (que cedeu de bandeja a Sócrates
a liderança do PS).
Confesso que
nunca percebi muito bem o que tinha levado pessoas que até então eu prezava a
renderem-se com tanta facilidade e falta de sentido crítico a um homem que
revelaria, como primeiro-ministro, "uma sobranceria, uma soberba
autoritária face às opiniões divergentes e uma incapacidade de antecipar a
terrível crise em que o país mergulharia e de que ele, com a sua cegueira da
infalibilidade, foi largamente responsável". Esta passagem de um livro de
memórias que fiz com a jornalista Isabel Lucas e foi publicado em 2013
parece-me hoje de uma actualidade reveladora face ao que agora sabemos ou
presumimos, até pelas piores razões.
Como foi
possível que pessoas como António Costa – que eu considerava o quadro do PS
mais bem preparado para suceder a Ferro Rodrigues mas me afiançara, em tom
aparentemente definitivo, que nunca seria secretário-geral do PS e
primeiro-ministro… –, Augusto Santos Silva ou Vieira da Silva tivessem posto
uma venda nos olhos e seguido cegamente José Sócrates? Mas foi isso o que
simplesmente viria a verificar-se, atingindo mesmo requintes chocantes, como
sucedeu a Santos Silva, pois "acabaria em ministro de propaganda do
socratismo, revelando uma vocação trauliteira de que eu nunca suspeitara; achava-o
até um dos deputados mais bem preparados e brilhantes do PS". É o que
recordo noutra passagem do livro citado, onde tento também uma explicação
singela para estes casos: "Fui constatando que, em política, as pessoas se
reconvertem e mudam de camisa com uma facilidade impressionante". À luz
destes tristes ensinamentos é inevitável concluir aquilo que sabemos desde
César e Brutus: os mais fervorosos adeptos de um líder político incontestado
são os que aparecem primeiro a afiar a faca quando ele cai em desgraça.
Para quem não
se considera particularmente perspicaz – os que me conhecem melhor apontam,
pelo contrário, a minha ingenuidade e boa-fé quase como características
genéticas – é sempre surpreendente constatar como pode ir tão longe o cinismo
dos comportamentos, até ao ponto de provocarem a náusea. Ora, é isso que me
inspira algum cepticismo sobre a capacidade de redenção política e recuperação
da ética republicana (essa expressão mágica que está em moda nos dias que
correm para enfrentar a ameaça do populismo).
Sim, como é
possível ter havido tamanha cegueira face a José Sócrates durante tanto tempo,
cegueira que apenas se tornou insustentável depois do silêncio
ensurdecedor de Manuel Pinho e de os
interrogatórios judiciais a Sócrates terem caído na praça pública? Quem
triunfa, afinal, são os justiceiros que defendem a legitimidade das encenações
televisivas "coladas" à investigação dos magistrados? Do jornalismo
de sarjeta passámos à política de sarjeta, onde impera a lei da selva, com cada
um a sacudir a água do capote e a clamar "salve-se quem puder"?
Confesso que ainda ando à procura de respostas satisfatórias.
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