Alberto Gonçalves – OBSERVADOR
Após a desilusão com um ex-governante,
inúmeros portugueses resolveram desiludir-se em simultâneo com um dirigente da
bola. É a nossa tradição de seguir fervorosamente determinadas fraudes.
Após a desilusão com um ex-governante,
inúmeros portugueses resolveram desiludir-se em simultâneo com um dirigente da
bola. Há nisto o respeito por diversas tradições pátrias. A tradição de seguir
fervorosamente determinadas fraudes. A tradição de reagir com ameaças e fúria
aos avisos de que a fraude é obviamente uma fraude. A tradição de admitir a
fraude, de repente e com anos de atraso. Como o bêbado que, já na cama do
hospital, tenta travar para não bater no poste, o discernimento dos portugueses
raramente falha: demora é uma eternidade a chegar.
Também é ridículo presumir que as
pessoas veneram qualquer fraude: só as demasiado evidentes. Os profetas
duvidosos não são connosco. Preferimos profetas espalhafatosamente toscos, ou
fancaria autenticada. Se um tipo com ar vagamente alucinado, gramática
deficitária, promessas épicas e conversa fiada irrompe na cena pública, muitos
contemplam o espectáculo e decidem que, sim senhor, está ali alguém a ter em
conta. Quando, em dez minutos, se torna notório que o tipo é um rematado
trafulha, a adoração e as ofensas aos descrentes aumentam em proporção directa.
Quando, além da trafulhice, o tipo acentua os vestígios de loucura, os fiéis
encontram-se capazes de morrer por ele, e sobretudo de matar por ele. Na fase
em que o tipo começa a descer o Chiado vestido de Napoleão, embora troque o
exílio em Elba por uma conta em Barbados, o séquito entra em transe espiritual.
Um dia, pouco antes de ingerir o cianeto
que o profeta generosamente providenciou, dá-se uma epifania colectiva, o culto
abre os olhos e percebe que fora enganado por um reles farsante. Desalentados,
e sem pingo de vergonha, os membros do culto percorrem a via sacra das
televisões, dos jornais e do Facebook a confessar o logro em que, coitadinhos,
caíram. Por um triz não pedem indemnizações por danos morais.
As características dos profetas caseiros,
que depois de longa reverência frequentemente desce ao carisma da lepra,
incluem um vasto rol de qualidades: são desonestos nas contas, falsos na
palavra, escorregadios no carácter, egocêntricos, avessos à dissidência,
convictos, teimosos, ignorantes, infantis, incapazes de empatia e capazes de,
no aperto, arrastar com eles o que existir em redor – o termo técnico é doidos
perigosos. Às vezes, acumulam as qualidades todas; às vezes, só algumas. Quanto
às características dos fiéis, o espectro é reduzido: ou são inacreditavelmente
oportunistas ou inacreditavelmente idiotas. Donde a tendência para os fiéis
saltitarem entre profetas. Em geral, mal terminam de ser ludibriados por um (ou
uma dúzia), atiram-se para o seguinte (ou seguintes) com alma lavada e cara-de-pau.
O seguinte, mais um maluco sem escrúpulos, é que é o tal e quem disser o
contrário arderá nos infernos.
O engraçado não é que a História de
Portugal, na política, na diplomacia, na universidade, na economia, no futebol,
na filatelia e no que calha, seja uma sucessão irrepreensível de crenças assim.
O engraçado é que continua a ser. Em Maio de 2018, época em que, suponho,
restam escassos devotos do “eng.” Sócrates e do sr. Bruno, não escasseia o
convencimento de que outros pantomineiros possuem as aptidões adequadas a
conduzir-nos rumo à felicidade, ainda que os factos sugiram o exacto oposto.
Dois ou três desses espécimes apareceram em ambos os apedrejamentos recentes,
e, embora apeteça sonhar com o deles, pressente-se que não vale a pena: por morrer
um intrujão, não acaba Portugal. Aliás, o problema é esse.
Notas de rodapé
1. Face aos acontecimentos de Alcochete
ou Alfragide, o dr. Costa tomou as providências devidas e anunciou uma
Autoridade Contra a Violência no Desporto. Em primeiro lugar, fica claro que
quando um gangue invade propriedade alheia e comete espancamentos, o exercício
é de carácter desportivo (excepto, como lembrou o meu amigo Hélder Ferreira, se
o gangue for de “etnia” cigana e a propriedade um hospital: nesse caso o
assunto nem chega a ser violento nem é assunto). Em segundo lugar, saúda-se que
finalmente haja punições para a barbárie no sector, lacuna legal que até aqui
permitia a relativa impunidade de quem matava adeptos com petardos, automóveis
ou penáltis transviados. Em terceiro lugar, espera-se que os castigos se
estendam aos populistas em cargos públicos que condenam a selvajaria da bola e
de seguida assistem a jogos ao lado dos respectivos responsáveis. Certo é que o
dr. Costa esteve impecável.
2. Uma consequência positiva do drama
“sportinguista” é a exclusividade informativa, que retirou das notícias as
“reportagens” sobre a embaixada americana em Jerusalém e a má vontade israelita
em não se deixar exterminar pelos seus indefesos vizinhos. Aquilo é gente ruim.
Como lembrava Serge Gainsbourg, quem afundou o Titanic foi Iceberg – sempre um
judeu.
3. Virar a página da austeridade é um
processo complexo e permanente. Implica, por exemplo, subir a cada semana o
preço dos combustíveis, além de aumentar outros impostos conhecidos e criar
alguns novinhos em folha. É curioso que a receita para o sucesso se confunda
tanto com um fracasso – e um roubo sem precedentes. Felizmente, é para isso que
existem os “media”: para evitar confusões.
Sem comentários:
Enviar um comentário