A era dos cegos chegou ao fim. Sejam bem-vindos à era dos sonsos e dos
enganados. Quem lutou pelo fim da primeira não pode simplesmente engolir a
segunda.
Estive dez anos a aguardar por este momento, e como sempre acontece quando
esperamos demasiado, não foi tão bom quanto imaginei. Mil duzentos e cinquenta
e nove dias depois de José Sócrates ter sido detido no aeroporto de Lisboa (21
de Novembro de 2014); nove anos, seis meses e um dia após milhões de
portugueses terem ouvido no Jornal Nacional da TVI Charles Smith afirmar que
Sócrates era corrupto (27 de Março de 2009); o Partido Socialista descobriu
finalmente, e em peso, que José Sócrates envergonhou o PS e desonrou a
democracia.
A era dos cegos chegou ao fim. Sejam bem-vindos à era dos sonsos e dos
enganados. Quem lutou pelo fim da primeira não pode simplesmente engolir a
segunda. Tomemos como exemplo Augusto Santos Silva, que à SIC declarou: “Se se
verificar que algum dos meus colegas de Governo, seja ele quem for, cometeu
crimes no exercício [das suas funções], sentir-me-ei evidentemente enganado.” A
sério? Isso daria um bom título para um livro – Os Enganados –, mas apenas se
fosse ficção. Não é aceitável que Augusto Santos Silva assuma o papel de mero
enganado por José Sócrates, quando ele sempre desempenhou com evidente
entusiasmo e zelo o papel de guarda-costas mediático do então
primeiro-ministro. A 3 de Fevereiro de 2009 (3378 dias atrás), publiquei no DN
um artigo intitulado “A cabala explicada às criancinhas”, onde dizia isto:
“Augusto Santos Silva e Pedro Silva Pereira não são o Bobby e o Tareco de José
Sócrates. São dois ministros do Estado português. Convinha que se comportassem
como tal.” Infelizmente, escolheram ser o Bobby e o Tareco.
O sucesso de Sócrates também dependeu, e muito, do trabalho dessas
sinistras figuras, uma das quais é hoje ministro dos Negócios Estrangeiros, e a outra deputado do PS no Parlamento
Europeu, com um programa de televisão semanal onde nunca arranjou oportunidade
para explicar se é verdade, ou não, que Carlos Santos Silva também pagou casa
ao seu filho em Paris e deu emprego à sua mulher. Colocar na lista dos
meros “enganados” personagens deste calibre, que cresceram ao lado de Sócrates,
adoptaram os seus métodos e assumiram alegremente durante anos a fio os papéis
de capangas do socratismo, não é apenas fazer deles idiotas úteis – é fazer de
idiotas cada um de nós.
Ferreira Fernandes – que, justiça lhe seja feita, nos últimos quinze dias
abandonou o silêncio respeitoso e passou a falar de corrupção de forma
desembaraçada – alinhavou numa das suas crónicas um argumento que é importante
ser desmontado. Segundo o seu raciocínio, enquanto as acusações a Sócrates
foram “anónimas ou endrominadas por fontes obscuras”, ele não se “permitiu
suspeitar” do então primeiro-ministro, e muito menos “publicitar palpites”. A
sua “desconfiança política” só foi publicamente verbalizada quando o próprio
Sócrates assumiu “factos graves”, que exigiam “explicações políticas claras”.
Ou muito me engano, ou esta tese vai ser repetida por muitos outros. A saber:
hoje há boas razões para duvidar de Sócrates; em 2009 eram só palpites.
Pessoas como eu – ou como José Manuel Fernandes, Pedro Lomba, Henrique
Raposo e alguns outros – seriam, assim, uma espécie de apostadores, que num
golpe de sorte fizeram bingo. Não, meus senhores. Não compro. Esta tremenda
mentira não passará. Não foi preciso ser esperto, sortudo ou vidente para
perceber quem José Sócrates era. Bastou ter olhos abertos e sensibilidade
moral. Nunca houve um silêncio dos inocentes. Houve, apenas e só, o silêncio
dos indecentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário