Alberto
Gonçalves - OBSERVADOR
O argumento central do Grupo de Lesados
do “eng.” Sócrates passava por invocar, com voz firme, a presunção de inocência
devida ao “animal feroz”. Agora exigem que se presuma a inocência deles
próprios.
Nos últimos dias, os socialistas
oficiais e os socialistas oficiosos que enchem os “media” e os partidos
adjacentes ao PS descobriram o que o cidadão médio sabe desde o início dos
tempos: José Sócrates não é um modelo de honestidade. Assim à primeira vista, é
uma redundância tão grande quanto descobrir o Brasil em 1900 (ou descobrir em 2075
que o brasileiro Lula possui inclinações criminosas). E é uma coincidência
espantosa que toda essa gente o fizesse em simultâneo, sobretudo tendo em conta
que, além da divulgação televisiva dos interrogatórios, não houve nenhum facto
jurídico que de súbito transformasse a vítima de conspirações malignas num
exemplo de delinquência a expelir da sociedade. Sucedeu apenas que, uma bela
manhã (ou duas), essa gente acordou com uma luz intensa, teve uma epifania e
concluiu que o “eng.” Sócrates está mesmo metido em trafulhices sem fim.
Essa gente é dada a coincidências e
misticismos. Durante anos, as exactas personalidades que querem exilar o “eng.”
Sócrates em Timbuktu ou na cadeia também afirmaram em uníssono a sua indignação
pelo martírio do ex-governante. À época, leia-se até há duas semanas, o “eng.”
Sócrates era o maior estadista português depois de Viriato, um portento cuja
competência e cuja “dinâmica” (?) inspiravam o ódio de “neoliberais”, a luxúria
da imprensa sem escrúpulos e a perseguição a cargo de magistrados com “agenda”.
Cada sólido indício de que o nível de vida do homem fugia um bocadinho ao nível
dos seus rendimentos merecia discursos épicos acerca do carácter sagrado do
segredo de justiça. Os “empréstimos”, os apartamentos, os amigos, as escutas,
as férias, os familiares, os contactos, os compadres, os tráficos, as mulheres,
as contas, as roupas, os levantamentos, os motoristas e os carros não
suscitavam qualquer suspeita, só a certeza da má-fé dos inimigos do “eng.”
Sócrates.
Hoje, os antigos devotos garantem que
foram enganados e reclamam medalhas pela franqueza ligeiramente tardia, com que
confessam o logro em que caíram. Criaturas que beneficiaram directa ou
indirectamente, em géneros ou numerário, da rede de influências em que o “eng.”
Sócrates se movia desataram a jurar pelos santinhos que nem sonhavam a geral
ilicitude daquilo. É para levar a sério?
Podemos tentar. A argumentação central
do Grupo de Lesados do “eng.” Sócrates passava por invocar, com voz firme, a
presunção de inocência, então devida ao “animal feroz”. Agora, exigem que se
presuma a inocência deles próprios. Eles, que acreditaram de alma lavada nas
patranhas que o “eng.” Sócrates lhes contava sobre a origem dos seus proventos,
ignoravam o óbvio, logo são inocentes. E ingénuos. E estúpidos que nem portas.
É uma possibilidade a considerar.
Afinal, falamos de espécimes propensos a acreditar no que calha. Se Fulana
acredita que a militância em “causas” infantis se confunde com jornalismo, é
possível acreditar que três ou quatro mil euros mensais permitem férias de 70
mil. Se Sicrano acredita que o PEC IV salvaria a nação, é possível acreditar na
trivialidade de viver a expensas de um compincha a quem se entregou negócios
públicos. Se Beltrano acredita que o socialismo se preocupa com as “pessoas
reais” (por oposição às imaginárias?), é possível acreditar na honorabilidade
das casas de Paris e Lisboa e dos fatinhos de Rodeo Drive e da fortuna de
família e da amizade desinteressada. Crentes desta dimensão ficam
impecavelmente em cultos religiosos, creches ou manicómios, mas não em jornais,
sociedades de advogados, parlamentos ou governos. É de esperar que os inocentes
presunçosos calculem as consequências da confissão inicial e confessem que, por
volumoso excesso de idiotia, são inaptos para funções inadequadas a idades
superiores a cinco anos – ou 25 em chimpanzés.
Por fim, há ainda a hipótese, meramente
académica, de essa gente não acreditar em nada, excepto na disposição do
eleitorado para acreditar em tudo – principalmente na inexistência de um
sistema criminoso e profundamente corrupto que transcende o PS, embora prefira
o PS no poder por facilidades logísticas e vocação. Ou que o linchamento brusco
do “autor” de “A Tortura no Mundo” e de alguns dos respectivos ministros não é
o típico sacrifício de uns comparsas a fim de salvar a quadrilha. Nas imortais
palavras do dr. Marques Mendes, um símbolo justo dos bandos em questão, há o PS
“mau” do “eng.” Sócrates, e o PS “bom” do dr. Costa. Ou de quem lá estiver no
momento, a coordenar os arranjinhos e a “estabilidade”. Se o “eng.” Sócrates
abrir a boca e perturbar ambos, prometo comprar-lhe a obra completa. Lê-la é
outra história.
Nota de rodapé
Parece que há, ou houve, por aí um
festival da Eurovisão, e que o mesmo inclui uma cantiga de Israel. Não me
interessa. Interessa-me que alguém tenha promovido o boicote à cantiga em
protesto contra o “apartheid israelita na Palestina”. Quem são os promotores da
simpática iniciativa? Podemos chamar-lhes simpatizantes do terrorismo. Podemos
chamar-lhes cúmplices da tortura a homossexuais e da violência sobre mulheres.
Podemos chamar-lhes anti-semitas. E podemos chamar-lhes, por uma vez sem
exageros, nazis. E acertar sempre.
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