sábado, 14 de abril de 2018

A justiça portuguesa é melhor do que a brasileira?


João Miguel Tavares - PÚBLICO

Três anos após ter sido condenado, o senhor Vara continua livre como um passarinho a trabalhar como consultor em África. É esta a justiça de que nos devemos orgulhar? Não gozem comigo.
Acho extraordinário que tantos portugueses, que nunca conheceram na vida outra coisa senão um sistema de justiça profundamente disfuncional, considerem ainda assim estar possuídos de um estatuto cívico e moral que lhes permite olhar com sobranceria para a justiça brasileira, como se os juízes no Brasil fossem anjos exterminadores e nós os felizes inquilinos do paraíso dos tribunais. É preciso não ter a menor noção. É verdade que em Portugal não precisamos de temer os horrores da Operação Lava-Jato – mas isso é porque a justiça portuguesa jamais teria à sua disposição os meios, a vontade e as leis para desmontar uma rede de corrupção daquele calibre.
A famosa frase “mais vale um criminoso solto do que um inocente na prisão” não tem discussão possível, mas qualquer sistema penal procura um equilíbrio razoável entre as garantias da defesa e os instrumentos ao dispor da acusação. Uma acusação com força excessiva pode levar muitos inocentes à prisão. Mas uma defesa com garantias excessivas pode levar a que muitos criminosos nunca sejam presos. Aquilo que acontece em Portugal, no que diz respeito à corrupção e aos chamados crimes de colarinho branco, é que tudo está alinhado para dificultar ao máximo a obtenção de prova, e é tamanho o leque de artimanhas processuais a que os acusados podem recorrer que o sistema protege vergonhosamente quem tem o dinheiro necessário para interpor infindáveis recursos e contratar os melhores advogados.
Vestidos com o melhor smoking civilizacional, escondemos o estado miserável da nossa roupa interior enquanto torcemos o nariz à delação premiada (como se ela não exigisse ser corroborada por documentos), recusamos o enriquecimento ilícito agitando o fantasma da inversão do ónus da prova, e consideramos impensável que alguém possa ser preso após condenação em segunda instância. Enfim: não é propriamente “alguém” – é Lula da Silva, porque antes dele já milhares de brasileiros tinham ido parar à prisão nas mesmas condições sem que ninguém tivesse reparado.
Harry G. FrankfurtO facto do plea bargain – em inglês talvez soe mais fino – existir em países como os Estados Unidos, a França ou a Itália, e ser considerado essencial para combater crimes onde sem um qualquer acordo de diminuição de pena nenhum criminoso tem incentivo para falar, parece impressionar ninguém. Tal como parece impressionar ninguém que a terrível prisão após condenação em segunda instância só peque por atraso em países como os Estados Unidos, o Canadá ou a Inglaterra – aí, a regra é prender-se logo após condenação em primeira instância, independentemente de um tribunal superior vir mais tarde a mudar de opinião.
Isto não é assim porque os americanos ou os ingleses são selvagens. É assim porque consideram que a suspensão de uma pena anos a fio põe em causa a confiança no cumprimento da justiça e dá origem a um sentimento de impunidade – precisamente aquilo que acontece em Portugal. Olhe-se, por exemplo, para o processo Face Oculta: Armando Vara foi condenado a cinco anos de prisão efectiva a 5 de Setembro de 2014; viu a pena confirmada pela Relação a 5 de Abril de 2017; e só agora, um ano depois, é que um novo recurso vai dar entrada no Tribunal Constitucional – não havendo qualquer previsão de quando a decisão final surgirá. Três anos após ter sido condenado, o senhor Vara continua livre como um passarinho a trabalhar como consultor em África. É esta a justiça de que nos devemos orgulhar? Não gozem comigo.

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