Acho extraordinário que tantos portugueses, que nunca conheceram
na vida outra coisa senão um sistema de justiça profundamente disfuncional,
considerem ainda assim estar possuídos de um estatuto cívico e moral que lhes
permite olhar com sobranceria para a justiça brasileira, como se os juízes no
Brasil fossem anjos exterminadores e nós os felizes inquilinos do paraíso dos
tribunais. É preciso não ter a menor noção. É verdade que em Portugal não
precisamos de temer os horrores da Operação Lava-Jato – mas isso é porque a
justiça portuguesa jamais teria à sua disposição os meios, a vontade e as leis
para desmontar uma rede de corrupção daquele calibre.
A famosa frase “mais vale um criminoso solto do que um inocente
na prisão” não tem discussão possível, mas qualquer sistema penal procura um
equilíbrio razoável entre as garantias da defesa e os instrumentos ao dispor da
acusação. Uma acusação com força excessiva pode levar muitos inocentes à
prisão. Mas uma defesa com garantias excessivas pode levar a que muitos
criminosos nunca sejam presos. Aquilo que acontece em Portugal, no que diz
respeito à corrupção e aos chamados crimes de colarinho branco, é que tudo está
alinhado para dificultar ao máximo a obtenção de prova, e é tamanho o leque de artimanhas
processuais a que os acusados podem recorrer que o sistema protege
vergonhosamente quem tem o dinheiro necessário para interpor infindáveis
recursos e contratar os melhores advogados.
Vestidos com o melhor smoking civilizacional, escondemos o estado
miserável da nossa roupa interior enquanto torcemos o nariz à delação premiada
(como se ela não exigisse ser corroborada por documentos), recusamos o
enriquecimento ilícito agitando o fantasma da inversão do ónus da prova, e
consideramos impensável que alguém possa ser preso após condenação em segunda
instância. Enfim: não é propriamente “alguém” – é Lula da Silva, porque antes
dele já milhares de brasileiros tinham ido parar à prisão nas mesmas condições
sem que ninguém tivesse reparado.
O facto do plea bargain – em inglês talvez soe mais fino –
existir em países como os Estados Unidos, a França ou a Itália, e ser
considerado essencial para combater crimes onde sem um qualquer acordo de
diminuição de pena nenhum criminoso tem incentivo para falar, parece
impressionar ninguém. Tal como parece impressionar ninguém que a terrível
prisão após condenação em segunda instância só peque por atraso em países como
os Estados Unidos, o Canadá ou a Inglaterra – aí, a regra é prender-se logo
após condenação em primeira instância, independentemente de um tribunal
superior vir mais tarde a mudar de opinião.
Isto não é assim porque os americanos ou os ingleses são
selvagens. É assim porque consideram que a suspensão de uma pena anos a fio põe
em causa a confiança no cumprimento da justiça e dá origem a um sentimento de
impunidade – precisamente aquilo que acontece em Portugal. Olhe-se, por
exemplo, para o processo Face Oculta: Armando Vara foi condenado a cinco anos
de prisão efectiva a 5 de Setembro de 2014; viu a pena confirmada pela Relação
a 5 de Abril de 2017; e só agora, um ano depois, é que um novo recurso vai dar
entrada no Tribunal Constitucional – não havendo qualquer previsão de quando a
decisão final surgirá. Três anos após ter sido condenado, o senhor Vara continua
livre como um passarinho a trabalhar como consultor em África. É esta a justiça
de que nos devemos orgulhar? Não gozem comigo.
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