Foz do Dande (Angola), onde se nota a misturas de águas - do rio e do mar. |
João Pedro
Marques - Público
Foi tardia a
intervenção anti-tráfico negreiro portuguesa? Foi. Mas existiu e teve
expressão.
No final de
1844, um dos principais órgãos da imprensa portuguesa de então publicou um
texto de um jovem oficial da marinha de guerra portuguesa que, através da
descrição de um episódio da luta anti-tráfico negreiro em que ele próprio
participara — o apresamento, na foz do Dande, do brigue brasileiro Caçador —,
procurava fazer sobressair a desumanidade e o horror do infame comércio: “Eram
oitocentos e quarenta e quatro pretos amontoados confusamente nos estreitos
limites do brigue [...]. Durante dois largos dias não lhes haviam dado
alimento, tinham as entranhas mirradas de fome e a garganta sequiosa. A
atmosfera estava abrasada e o calor que exalava aquele lento matadouro vinha
queimar-nos as faces; e eles, junto corpo a corpo, respirando com dificuldade
não sei como não morriam sufocados. E era um ar viciado pelo seu hálito,
envolto em nuvens de fumo que exalava o excremento apodrecido. A escotilha da
coberta, por onde respiravam, daria vertigens a quem ali se demorasse cinco
minutos. O convés, alagado por esta onda de cabeças humanas, apresentava um
aspecto estranho: desde ré até vante não se podia dar um passo que não
ressoasse um grito de dor. Depois de marcarmos o navio tratámos destes
infelizes, despejámos água em baldes e distribuímos com mão larga os
mantimentos.” Sobre esta descrição, que resultava do contacto directo com o
acontecimento, olhos nos olhos com os escravos “silenciosos e palpitantes” que
acabava de libertar, o oficial da Armada construía, depois, um discurso
abolicionista cuja intenção última era a de promover na sociedade portuguesa
uma postura actuante, à imagem do humanitarismo britânico: “O povo tem o
instinto dos grandes sentimentos, ouvirá o nosso brado e há-de indignar-se como
nós perante esta atrocidade exercida contra a humanidade e contra Deus.”
Este episódio da
história colonial portuguesa foi escrito por António Lopes de Mendonça, futuro
deputado e, à época, guarda-marinha da Armada em serviço na Estação Naval de
Angola. Lopes de Mendonça era uma figura habitual no Chiado, um dandy que dava
nas vistas onde quer que estivesse. Gostava da proeza física, de duelos com
aristocratas, de pegar toiros. Participou nas lutas da Maria da Fonte e na
guerra civil da Patuleia. Poucos anos antes dessa guerra, com apenas 18 anos de
idade, este estroina alto e loiro, dado às letras e aos prazeres da vida,
estava na costa de África, como membro da tripulação da corveta Urânia, a
cruzar contra o tráfico de escravos. A sua descrição do apresamento do brigue
negreiro Caçador pode ser lida por qualquer pessoa que se dirija à Biblioteca
Nacional e peça para consultar o jornal A Revolução de Septembro, de 7 de
Dezembro de 1844.
Historiador e
romancista
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