No instante em que
escrevo, arriscando a ultrapassagem pelos acontecimentos, cada homem é
suspeito, e provavelmente culpado, de praticar acções ou pensamentos pecaminosos
face à sua semelhante.
Não aprecio
lengalengas que tratam os homens e as mulheres como duas entidades
perfeitamente distintas entre si e perfeitamente idênticas dentro de si.
Reduzir o carácter de uma pessoa ou, no jargão em voga, a “identidade” ao
“género” é recurso de adolescentes ou charlatães com falta de assunto.
Conversas do estilo “os homens são de Marte, as mulheres de Vénus” dão vontade
de enviar alguém para Saturno ou para o raio que o/a parta. E o movimento
#MeToo é uma espécie de consagração desse tique enervante.
Há meses,
Hollywood descobriu que certos cavalheiros do “meio” abusavam do respectivo
poder para se aliviarem sexualmente com as senhoras que se punham, ou eram
postas, a jeito. Antes tarde do que nunca. Pelo menos desde 1921, quando o
então popularíssimo “Fatty” Arbuckle foi acusado de esventrar uma aspirante a
actriz com uma garrafa de Coca-Cola, a indústria do cinema é fértil em animação
de bastidores. Sob a histeria punitiva dos “media”, Arbuckle viu-se julgado,
depois ilibado, e por fim profissionalmente arruinado.
No clima actual, o
julgamento é imediato mas o desfecho é similar. Basta que X, soluçante, afirme
ter visto o pénis de Y nos idos de 1992 para que Y seja responsável por
perversões inomináveis e banido da sociedade decente. Não importa que, no mundo
das fitas e no mundo cá fora, as matérias sexuais se mostrem particularmente
pródigas em alegações falsas. O berreiro decidiu, está decidido: a necessidade
de provas é um pechisbeque dispensável, o tipo de atitude que costuma inspirar
belos episódios. No processo, quase no sentido kafkiano do termo, destroem-se
vidas e carreiras. Por reflexo, lamento todos os inocentes. Por puro egoísmo de
espectador, e por ser amigo de um amigo, lamento Louis C.K.
É plausível que
haja violadores autênticos, a pedir penas sociais e judiciais sortidas. O chato
é que, sem surpresas, muitas das mais empenhadas militantes da inquisição em
curso conviveram jovialmente durante anos com muitos dos mais empenhados
abusadores do ramo. Ao longo de décadas, os múltiplos talentos de Roman
Polanski suscitaram apenas indiferença. E a sra. Meryl Streep, a figura que
melhor representa o ridículo de Hollywood e, talvez, do Ocidente, manteve longa
e frutuosa amizade com Harvey Weinstein, que hoje é, a acreditar nos “media”
(eu sei, eu sei), o Demónio em forma de gente. Aparentemente, as proezas
lúbricas do sr. Weinstein pertenciam ao domínio público e só se tornaram
condenáveis no momento em que a condenação se converteu num espasmo colectivo e
obrigatório.
Para cúmulo, no
espasmo vale tudo e confunde-se tudo. Confunde-se estupros com festinhas no
ombro, chantagens com piropos, violência com engates e, principalmente,
mulheres que foram abusadas de facto com mulheres que fingem ter sido abusadas
de modo a não perderem lugar na plateia dos linchamentos. É evidente que, ao
valorizar-se vítimas imaginárias de crimes imaginários, acaba-se a
desvalorizar-se vítimas reais de crimes medonhos. E acaba-se a colaborar no
crime.
No instante em que
escrevo, arriscando a ultrapassagem pelos acontecimentos, a situação é a
seguinte: cada homem é suspeito, e provavelmente culpado, de praticar acções ou
no mínimo pensamentos pecaminosos face à sua semelhante. A caça aos bruxos
decretada pelas celebridades espalha-se pela América inteira e, alimentada por
relatos sem confirmação, arrasa a título preventivo inúmeras criaturas. Vozes
progressistas exigem a censura de filmes, livros, peças e pinturas em que a
Mulher, com maiúscula, não é retratada segundo critérios específicos.
Como é que se
chegou aqui, em Hollywood e no resto? A teoria divide-se. Uns sugerem a
perversão (graçola não intencional) do feminismo original, que começou a exigir
igualdade e termina a menorizar as pobres, ingénuas e desprotegidas fêmeas.
Outros referem a progressão natural do “politicamente correcto”, agora em rédea
solta rumo à demência. Há ainda os que lembram o ódio da esquerda à
masculinidade, a tradição moralista do marxismo e diagnósticos assim
discutíveis.
Se me permitem
(que remédio), apresento, assaz sumariamente, a minha tese. Um pedacinho da
história da humanidade é a história da repressão sexual, que antes de ser um
produto das religiões é um produto da natureza humana. Mesmo sem a crença no
divino, o homem – e a mulher, acrescente-se para fugir a equívocos – haveria
sempre de arranjar maneira de crer no gozo em proibir o gozo alheio, na cama e
onde calha. Não é a religião que tenta impedir-nos de comer sal ou bolachas. A
vontade de limitar “excessos” paira por aí, à espera dos zelotas que a transformem
na sua “causa”. Em Hollywood, território propenso a tarados de orientações
várias, encontrou imensos.
Notas de rodapé
1. Consta que,
este ano, a “taxa do audiovisual” aumentará 6%, agravando a conta da luz. É uma
óptima notícia por dois motivos. Por um lado, porque confirma a prosperidade
que tomou conta dos portugueses, hoje tão prósperos que podem suportar sem
dramas, e até com certo gosto, qualquer dos inúmeros aumentos de impostos que
em boa hora lhes despejam em cima. Por outro lado, porque permite aos cidadãos
patrocinarem com verbas crescentes uma instituição como a RTP e adjacências,
instituições cujo mérito está escarrapachado nas centenas de milhões que
anualmente nos custam. Não consumo a RTP e não conheço quem o faça, mas não me
custa nada, excepto uns euros por mês, dispensar uns euros por mês a fim de
sustentar as maravilhas que sem dúvida por lá se cometem, vulgo o “serviço
público”. Não o veria nem que me pagassem. Como não vejo, pago eu. Faz sentido.
2. E aquilo do sr.
Lula? Alguém acredita que um socialista possa ter delapidado em diversos
milhões o povo que tanto adora? Alguém acredita que um ex-sindicalista possa
ser um rematado ladrão? Alguém acredita que o homem que cruzou o oceano para
apresentar uma obra de José Sócrates possa estar no centro de um dos maiores
esquemas de corrupção que o mundo conheceu? Eu não acredito. Para mim, é golpe.
Sem comentários:
Enviar um comentário