terça-feira, 12 de dezembro de 2017

APRESENTAÇÃO DE «MIRANDELA OUTROS FALARES»



A apresentação do livro «Mirandela Outros Falares», na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro em Braga, pelo Doutor e Investigador, Ernesto Português, foi um momento de uma lição de escrita, de investigação e de preservação da nossa cultura. Assim, entendi que esta mesma intervenção fosse publicada no nosso jornal pelo seu inequívoco valor. Refere os três livros de etnolinguística sobre Mirandela e classifica «Mirandela Outros Falares» de «carácter científico». Segundo Ernesto Português, «escrever é, afinal, uma forma de ver, uma forma de sentir», neste caso, «um trabalho de amor e paixão pelo berço que o acolheu». Jorge Lage.




Por Doutor Ernesto Português

É hábito dizer-se que um livro sem “Apresentação” é como um rio sem pontes. Ora, aqui não se aplica bem tal expressão porque o livro fala por si e parece-me que não é preciso sensibilizar muito o ilustre auditório para o conhecimento da obra e muito menos do autor. 
Tenho consciência de que a aceitação do convite para fazer a apresentação deste livro se por um lado é uma honra, por outro talvez tenha sido um ato de temeridade da minha parte, muito embora possa haver boas razões para o fazer.
Terei de reconhecer que, apesar de tudo, não serei eu, com toda a certeza, a pessoa mais recomendada para apresentar esta obra do meu amigo e vosso conterrâneo Jorge Lage. O conteúdo da obra revela um tipo de cultura diferente daquela que foi vivenciada por quem é oriundo das terras do Alto Minho, bem pertinho da Galiza, terras que o Minho traz separadas quase desde o nascimento, como diz o nosso poeta João Verde, onde as culturas irmãs se cruzam e mutuamente se influenciam. Num tempo em que as distâncias eram inultrapassáveis, cada região e cada núcleo habitacional, fechado por natureza, ia construindo o seu linguajar, a sua gramática e a própria fonética ia fazendo o seu caminho próprio. São, de facto, outras vivências, outras realidades bem diversas das minhas, aquelas com que me deparo nesta obra. Então, na raiz do convite, só encontro uma razão forte que residirá no facto de um trabalho próximo, durante muitos anos, na Área Educativa de Braga. Aí nos conhecemos e aí tive a oportunidade de ver nascer as suas primeiras obras do Jorge Lage que, de alguma forma, fui acompanhando de perto. Houve reflexões várias, troca de opiniões que enriquecem os interlocutores de mente aberta ao outro quando eles procuram, desapaixonadamente, a verdade. Todos precisamos de sujeitar os nossos escritos ao juízo de outrem porque ninguém tem o saber absoluto e porque, fazendo jus ao sábio pensamento do poeta espanhol António Machado, o caminho se faz ao caminhar, se faz caminhando. E que longo caminho eu vejo na investigação e nas prosas de Jorge Lage! Aliás, aprende-se a escrever, escrevendo. Todos aprendemos (os que querem de facto aprender…) com os nossos erros. E a escrita é isso mesmo. É um processo permanente de paciência de uma reescrita contínua.
É que o ato de escrever, aparentemente simples, exige do escrevente organização e sistematização do pensamento que, por sua vez, o levará a entender melhor o seu papel no mundo e a ver com clareza o que o rodeia. É que o simples ato de escrever exige uma grande disciplina mental para pôr em ordem as ideias e clarificar ou recordar pensamentos, sensações e sentimentos. Escrever ajuda a tomar consciência da dimensão da vida e leva à questionação do seu papel neste mundo.
Um autor da contemporaneidade – Paulo Coelho – diz que “um papel e uma caneta operam milagres: curam dores, consolidam sonhos, levam e trazem a esperança perdida. A palavra tem poder. A palavra escrita tem mais poder ainda”.
Mas o domínio da escrita é uma tarefa árdua. É por isso que todos falam mas poucos escrevem. A comunicação oral, através da palavra, é auxiliada pela entoação da voz, pelo gesto, pela expressão do rosto e pela postura do corpo, entre outros recursos, que facilitam a transmissão das ideias, dos sentimentos e das emoções. Na linguagem escrita também há recursos, como os sinais de pontuação: o ponto final, a vírgula, o ponto e vírgula, os sinais de interrogação e de exclamação, as reticências, etc. mas as dificuldades são muito maiores do que a comunicação oral. Por isso dizemos que escrever bem é uma arte. Mas também é uma técnica. E uma e outra se aprendem e aperfeiçoam, com muito trabalho e persistência. A escrita, para além do carácter utilitário no imediato, poderá ser útil a todos em múltiplas oportunidades e poderá servir como eixo estruturante da própria vida pela disciplina interior que impõe.
Ora, escrever implica responsabilidade pelos atos, coerência nas ideias e firmeza nos propósitos. Significa expor-se e arriscar-se. Escrever exige uma conduta estável e transparente. Escrever é, afinal, uma forma de ver, uma forma de sentir.
Pois bem, não foi de ânimo leve que aceitei o convite para apresentar este livro do Dr. Jorge Lage. Tive em conta a temática, que não é propriamente do meu domínio, e a eventual plateia que teria à minha frente neste ato de apresentação mas acabei por vencer o meu receio inicial. Todavia, não deixo de me sentir a caminhar num reino desconhecido e, por isso, tudo o que possa dizer contará com vossa natural complacência. Sinto-me, por outro lado, a intrometer-me em seara alheia quando me vejo rodeado por uma comunidade coesa e bairrista (no bom sentido, claro está) na defesa dos seus valores culturais, muito embora a saiba aberta e onde todos sentem o Minho – e Braga, em particular – como sua morada de eleição. Escolheram esta cidade para viver porque aqui se sentem bem, sem todavia esquecerem o seu torrão natal, algures numa qualquer parte das suas inesquecíveis terras transmontanas. É isto que me dá alento para tomar a palavra e tecer algumas considerações acerca deste livro e do seu autor.
As três últimas obras de Jorge Lage, sendo a primeira em parceria com outros autores, são do âmbito da etnolinguística. Não é um campo onde me sinta particularmente confortável. Para além da Literatura que estudei e que, no passado, tive de ensinar, fiz uma cadeira de Linguística Geral, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas que não é suficiente para tecer grandes comentários de carater científico. Todavia, isso não me inibe de fazer uma análise a este trabalho e reconhecer-lhe o valor histórico e importante para o estudo da Língua e dos linguajares locais. Estes trabalhos serão, certamente, objeto de estudo para os teóricos da Língua. De qualquer modo, para generalizar é preciso conhecer o particular, o local. E no que toca à diversidade dos falares locais, constata-se a urgência de registos daquilo que ainda resta porque uma vez desaparecida a nossa geração e aquela que nos precedeu, penso que pouco restará para os vindouros. Claro que a par do registo gráfico poderia ser feito também o registo sonoro, com muito interesse para o estudo da fonética, como foi feito no campo da música tradicional, mas essa seria outra tarefa ainda bem mais árdua que esta e a exigir instrumentos de recolha e técnicas ainda bem mais sofisticadas.
Quando, há sessenta anos, vim estudar para Braga, facilmente se reconheciam os colegas oriundos de Fafe, de Cabeceiras e de Celorico de Basto, de Melgaço e de Monção. Hoje as diferenças fonéticas estão quase esbatidas e estou em crer que estão em fase acelerada de desaparecimento. A profusão de meios de comunicação áudio, a permanente e fácil mobilidade das pessoas, a escolaridade obrigatória a decorrer (em grande parte das situações) nos centros urbanos e a generalização do ensino obrigatório até ao 12.º ano são, entre outras, algumas das fortes razões que tendem a normalizar e a uniformizar a linguagem escrita e oral.
A trilogia dos falares de Mirandela iniciou-se com um dicionário, com a colaboração de quatro autores. Entretanto, Jorge Lage achou que não estava tudo feito nem tudo dito. É aliás difícil, nestas questões, dizer que o trabalho está perfeito, está completo. Reconhecer a finitude e a incompletude de um trabalho que se pretende científico revela inteligência e sensatez. Avançou, então, Jorge Lage com Falares de Mirandela, em estilo de dicionário, acrescentando-lhe uma série de Ditos Populares, organizados também alfabeticamente, e ainda as Nomeadas de Mirandela
Mas nem por isso se deixou adormecer em cima do trabalho realizado. Na verdade, tomou esta temática de empreitada, em estilo de missão, como diz o Presidente da Câmara de Mirandela, e continuou a fazer caminho pelos córregos da ruralidade porque é lá que se conserva a genuinidade do linguajar de um povo porque a vivência na civitas estabelece um outro patamar de linguagem escrita e oral, onde o autor não se revê muito. O prefaciador diz, sabiamente, que este livro é a festa da memória dos hábitos rurais mirandelenses.
De facto, Jorge Lage entende que o primeiro trabalho, realizado em parceria, revela mais o falar urbano de Mirandela. Bom, esta é uma questão para dirimir entre os mirandelenses… E, sem pressas, continuou a tomar notas, a investigar e a consultar obras da especialidade que lhe forneceram elementos preciosos para a concretização do seu objetivo, entrando agora na explanação de alguns conceitos e no campo da toponímia, dando origem a algumas longas e exaustivas notas de rodapé. Este é, aliás, um terreno movediço onde as respostas nem sempre correspondem à verdade. De qualquer modo, são preciosos contributos e tentativas de explicação.
O volume que hoje se apresenta não é um romance, não é um livro que se leia, de fio a pavio, num ápice, não há um enredo que nos prenda à procura do fim. Mas é uma obra que, logo no início, em extratexto, reúne uma série de documentos iconográficos de grande valor e interesse para conhecer o passado de Mirandela. São fotografias antigas que muitos, digo eu, não conhecerão mas que os ajudarão a compreender melhor a sua terra. E porque este trabalho é, no dizer do seu autor, um complemento a tudo o que já foi divulgado – e não é assim tão pouco, digo eu – retoma o tema das Nomeadas do Concelho de Mirandela apresentando a sua necessária e pitoresca explicação. E aproveita, ainda, para acrescentar umas tantas nomeadas de outros concelhos vizinhos que ele conseguiu captar. Nesta azáfama de dizer o ainda não dito, faz nova incursão pelos Ditos ou Provérbios Populares e completa (será que completa?) o rol das palavras utilizadas no concelho de Mirandela.
Claro que há aqui e acolá alguns vocábulos, expressões ou ditados (e já o mesmo não direi das nomeadas) que não são específicos de Mirandela. Também se usam em Monção e até em Braga e, com maioria de razão, em terras transmontanas, mas não deixa de ser verdade que se usam ou usavam em Mirandela. Mas o autor teve o cuidado de salvaguardar essa situação quando diz, na Nota Explicativa, que não pretende registar com exclusividade nada dos falares de mirandelense, mas tão só contribuir para que parte da diversidade linguística e formas de comunicar não se percam para sempre, neste mundo cada vez mais global.
O resultado dos anos de pesquisa está aqui plasmado neste livro de cerca de 200 páginas que, a muitos ou a alguns, poderá parecer um trabalho de pouca monta. Sei, por experiência própria, avaliar bem o valor deste tipo de labor. Quantas canseiras, dores de cabeça, quilómetros percorridos, contactos estabelecidos, consultas efetuadas… É um trabalho incansável, muito válido e meritório a merecer o nosso louvor pelo valioso contributo para o conhecimento histórico de um povo através dos linguajares locais que fazem a história de uma comunidade e lhe definem a identidade, onde muitos dos presentes, de uma ou outra forma, se poderão rever e reconhecer.
Estamos perante um trabalho de amor e paixão pelo berço que o acolheu e pelas palavras e cantos maviosos que o embalaram nessas terras que o autor docemente carrega com carinho, alegria e muito orgulho. São assim os transmontanos.
Pois bem, para o futuro fica a obra escrita que se deixa e o livro é um suporte fundamental da transmissão da cultura. As gerações passam mas fica o pensamento, o conhecimento. Eu não me esqueço da aflição de um douto professor da Universidade Católica, aqui de Braga, quando, há alguns anos atrás, teve de dissertar sobre a biografia de um professor do Seminário de Braga, considerado como uma grande sumidade, mas em que o seu legado escrito se resumia apenas a um artigo que escreveu na revista Theologica. As gerações passam mas fica o pensamento e o conhecimento registado porque as palavras leva-as o vento…
Ora, reunir essas pesquisas em livro é garantir-lhes perenidade, é dar oportunidade de serem revisitadas com grande facilidade e comodidade de consulta. Através do livro – como extensão da memória e da imaginação – o passado torna-se presente. A vida projeta-se no futuro e o livro é, exatamente, essa ponte entre o passado e o futuro.
Não querendo abusar da vossa paciência, vou terminar com um comentário final para lhes dizer que, ao longo da vida, tenho-me cruzado com amigos, e alguns bem credenciados, que me dizem que também eles gostavam e desejavam escrever, desculpando-se com mil e uma coisas… Pois bem, Alexandre Herculano, essa figura cimeira da nossa História, diz que é um erro vulgar confundir o desejo com o querer. O desejo, diz ele, mede os obstáculos; a vontade vence-os.         
Braga, 14 de outubro de 2017.

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