A
apresentação do livro «Mirandela Outros Falares», na Casa de Trás-os-Montes e
Alto Douro em Braga, pelo Doutor e Investigador, Ernesto Português, foi um
momento de uma lição de escrita, de investigação e de preservação da nossa
cultura. Assim, entendi que esta mesma intervenção fosse publicada no nosso
jornal pelo seu inequívoco valor. Refere os três livros de etnolinguística
sobre Mirandela e classifica «Mirandela Outros Falares» de «carácter
científico». Segundo Ernesto Português, «escrever é, afinal, uma forma de ver,
uma forma de sentir», neste caso, «um trabalho de amor e paixão pelo berço que
o acolheu». Jorge Lage.
Por Doutor Ernesto Português
É hábito dizer-se que um livro sem “Apresentação” é como um rio sem pontes. Ora, aqui não se aplica bem tal expressão porque o livro fala por si e parece-me que não é preciso sensibilizar muito o ilustre auditório para o conhecimento da obra e muito menos do autor.
Tenho
consciência de que a aceitação do convite para fazer a apresentação deste livro
se por um lado é uma honra, por outro talvez tenha sido um ato de temeridade da
minha parte, muito embora possa haver boas razões para o fazer.
Terei
de reconhecer que, apesar de tudo, não serei eu, com toda a certeza, a pessoa
mais recomendada para apresentar esta obra do meu amigo e vosso conterrâneo
Jorge Lage. O conteúdo da obra revela um tipo de cultura diferente daquela que
foi vivenciada por quem é oriundo das terras do Alto Minho, bem pertinho da
Galiza, terras que o Minho traz separadas quase desde o nascimento, como diz o
nosso poeta João Verde, onde as culturas irmãs se cruzam e mutuamente se
influenciam. Num tempo em que as distâncias eram inultrapassáveis, cada região
e cada núcleo habitacional, fechado por natureza, ia construindo o seu
linguajar, a sua gramática e a própria fonética ia fazendo o seu caminho
próprio. São, de facto, outras vivências, outras realidades bem diversas das minhas,
aquelas com que me deparo nesta obra. Então, na raiz do convite, só encontro
uma razão forte que residirá no facto de um trabalho próximo, durante muitos
anos, na Área Educativa de Braga. Aí nos conhecemos e aí tive a oportunidade de
ver nascer as suas primeiras obras do Jorge Lage que, de alguma forma, fui
acompanhando de perto. Houve reflexões várias, troca de opiniões que enriquecem
os interlocutores de mente aberta ao outro quando eles procuram,
desapaixonadamente, a verdade. Todos precisamos de sujeitar os nossos escritos
ao juízo de outrem porque ninguém tem o saber absoluto e porque, fazendo jus ao
sábio pensamento do poeta espanhol António Machado, o caminho se faz ao
caminhar, se faz caminhando. E que longo caminho eu vejo na investigação e nas
prosas de Jorge Lage! Aliás, aprende-se a escrever, escrevendo. Todos
aprendemos (os que querem de facto aprender…) com os nossos erros. E a escrita
é isso mesmo. É um processo permanente de paciência de uma reescrita contínua.
É
que o ato de escrever, aparentemente simples, exige do escrevente organização e
sistematização do pensamento que, por sua vez, o levará a entender melhor o seu
papel no mundo e a ver com clareza o que o rodeia. É que o simples ato de
escrever exige uma grande disciplina mental para pôr em ordem as ideias e
clarificar ou recordar pensamentos, sensações e sentimentos. Escrever ajuda a
tomar consciência da dimensão da vida e leva à questionação do seu papel neste
mundo.
Um
autor da contemporaneidade – Paulo Coelho – diz que “um papel e uma caneta
operam milagres: curam dores, consolidam sonhos, levam e trazem a esperança
perdida. A palavra tem poder. A palavra escrita tem mais poder ainda”.
Mas
o domínio da escrita é uma tarefa árdua. É por isso que todos falam mas poucos
escrevem. A comunicação oral, através da palavra, é auxiliada pela entoação da
voz, pelo gesto, pela expressão do rosto e pela postura do corpo, entre outros
recursos, que facilitam a transmissão das ideias, dos sentimentos e das
emoções. Na linguagem escrita também há recursos, como os sinais de pontuação:
o ponto final, a vírgula, o ponto e vírgula, os sinais de interrogação e de
exclamação, as reticências, etc. mas as dificuldades são muito maiores do que a
comunicação oral. Por isso dizemos que escrever bem é uma arte. Mas também é
uma técnica. E uma e outra se aprendem e aperfeiçoam, com muito trabalho e
persistência. A escrita, para além do carácter utilitário no imediato, poderá
ser útil a todos em múltiplas oportunidades e poderá servir como eixo
estruturante da própria vida pela disciplina interior que impõe.
Ora,
escrever implica responsabilidade pelos atos, coerência nas ideias e firmeza
nos propósitos. Significa expor-se e arriscar-se. Escrever exige uma conduta
estável e transparente. Escrever é, afinal, uma forma de ver, uma forma de
sentir.
Pois
bem, não foi de ânimo leve que aceitei o convite para apresentar este livro do
Dr. Jorge Lage. Tive em conta a temática, que não é propriamente do meu
domínio, e a eventual plateia que teria à minha frente neste ato de
apresentação mas acabei por vencer o meu receio inicial. Todavia, não deixo de
me sentir a caminhar num reino desconhecido e, por isso, tudo o que possa dizer
contará com vossa natural complacência. Sinto-me, por outro lado, a
intrometer-me em seara alheia quando me vejo rodeado por uma comunidade coesa e
bairrista (no bom sentido, claro está) na defesa dos seus valores culturais,
muito embora a saiba aberta e onde todos sentem o Minho – e Braga, em
particular – como sua morada de eleição. Escolheram esta cidade para viver
porque aqui se sentem bem, sem todavia esquecerem o seu torrão natal, algures
numa qualquer parte das suas inesquecíveis terras transmontanas. É isto que me
dá alento para tomar a palavra e tecer algumas considerações acerca deste livro
e do seu autor.
As
três últimas obras de Jorge Lage, sendo a primeira em parceria com outros
autores, são do âmbito da etnolinguística. Não é um campo onde me sinta
particularmente confortável. Para além da Literatura que estudei e que, no
passado, tive de ensinar, fiz uma cadeira de Linguística Geral, na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, mas que não é suficiente para tecer grandes
comentários de carater científico. Todavia, isso não me inibe de fazer uma
análise a este trabalho e reconhecer-lhe o valor histórico e importante para o
estudo da Língua e dos linguajares locais. Estes trabalhos serão, certamente,
objeto de estudo para os teóricos da Língua. De qualquer modo, para generalizar
é preciso conhecer o particular, o local. E no que toca à diversidade dos
falares locais, constata-se a urgência de registos daquilo que ainda resta
porque uma vez desaparecida a nossa geração e aquela que nos precedeu, penso
que pouco restará para os vindouros. Claro que a par do registo gráfico poderia
ser feito também o registo sonoro, com muito interesse para o estudo da
fonética, como foi feito no campo da música tradicional, mas essa seria outra
tarefa ainda bem mais árdua que esta e a exigir instrumentos de recolha e
técnicas ainda bem mais sofisticadas.
Quando,
há sessenta anos, vim estudar para Braga, facilmente se reconheciam os colegas
oriundos de Fafe, de Cabeceiras e de Celorico de Basto, de Melgaço e de Monção.
Hoje as diferenças fonéticas estão quase esbatidas e estou em crer que estão em
fase acelerada de desaparecimento. A profusão de meios de comunicação áudio, a
permanente e fácil mobilidade das pessoas, a escolaridade obrigatória a
decorrer (em grande parte das situações) nos centros urbanos e a generalização
do ensino obrigatório até ao 12.º ano são, entre outras, algumas das fortes
razões que tendem a normalizar e a uniformizar a linguagem escrita e oral.
A
trilogia dos falares de Mirandela iniciou-se com um dicionário, com a
colaboração de quatro autores. Entretanto, Jorge Lage achou que não estava tudo
feito nem tudo dito. É aliás difícil, nestas questões, dizer que o trabalho
está perfeito, está completo. Reconhecer a finitude e a incompletude de um
trabalho que se pretende científico revela inteligência e sensatez. Avançou,
então, Jorge Lage com Falares de
Mirandela, em estilo de dicionário, acrescentando-lhe uma série de Ditos Populares, organizados também
alfabeticamente, e ainda as Nomeadas de
Mirandela.
Mas
nem por isso se deixou adormecer em cima do trabalho realizado. Na verdade, tomou
esta temática de empreitada, em estilo de missão, como diz o Presidente da
Câmara de Mirandela, e continuou a fazer caminho pelos córregos da ruralidade
porque é lá que se conserva a genuinidade do linguajar de um povo porque a
vivência na civitas estabelece um
outro patamar de linguagem escrita e oral, onde o autor não se revê muito. O
prefaciador diz, sabiamente, que este livro é a festa da memória dos hábitos rurais mirandelenses.
De
facto, Jorge Lage entende que o primeiro trabalho, realizado em parceria,
revela mais o falar urbano de Mirandela. Bom, esta é uma questão para dirimir
entre os mirandelenses… E, sem pressas, continuou a tomar notas, a investigar e
a consultar obras da especialidade que lhe forneceram elementos preciosos para
a concretização do seu objetivo, entrando agora na explanação de alguns
conceitos e no campo da toponímia, dando origem a algumas longas e exaustivas
notas de rodapé. Este é, aliás, um terreno movediço onde as respostas nem
sempre correspondem à verdade. De qualquer modo, são preciosos contributos e
tentativas de explicação.
O
volume que hoje se apresenta não é um romance, não é um livro que se leia, de
fio a pavio, num ápice, não há um enredo que nos prenda à procura do fim. Mas é
uma obra que, logo no início, em extratexto, reúne uma série de documentos
iconográficos de grande valor e interesse para conhecer o passado de Mirandela.
São fotografias antigas que muitos, digo eu, não conhecerão mas que os ajudarão
a compreender melhor a sua terra. E porque este trabalho é, no dizer do seu
autor, um complemento a tudo o que já foi divulgado – e não é assim tão pouco,
digo eu – retoma o tema das Nomeadas do
Concelho de Mirandela apresentando a sua necessária e pitoresca explicação.
E aproveita, ainda, para acrescentar umas tantas nomeadas de outros concelhos
vizinhos que ele conseguiu captar. Nesta azáfama de dizer o ainda não dito, faz
nova incursão pelos Ditos ou Provérbios
Populares e completa (será que completa?) o rol das palavras utilizadas no concelho de Mirandela.
Claro
que há aqui e acolá alguns vocábulos, expressões ou ditados (e já o mesmo não
direi das nomeadas) que não são específicos de Mirandela. Também se usam em
Monção e até em Braga e, com maioria de razão, em terras transmontanas, mas não
deixa de ser verdade que se usam ou usavam em Mirandela. Mas o autor teve o
cuidado de salvaguardar essa situação quando diz, na Nota Explicativa, que não pretende registar com exclusividade nada
dos falares de mirandelense, mas tão só contribuir para que parte da diversidade
linguística e formas de comunicar não se percam para sempre, neste mundo cada
vez mais global.
O
resultado dos anos de pesquisa está aqui plasmado neste livro de cerca de 200
páginas que, a muitos ou a alguns, poderá parecer um trabalho de pouca monta.
Sei, por experiência própria, avaliar bem o valor deste tipo de labor. Quantas
canseiras, dores de cabeça, quilómetros percorridos, contactos estabelecidos,
consultas efetuadas… É um trabalho incansável, muito válido e meritório a
merecer o nosso louvor pelo valioso contributo para o conhecimento histórico de
um povo através dos linguajares locais que fazem a história de uma comunidade e
lhe definem a identidade, onde muitos dos presentes, de uma ou outra forma, se
poderão rever e reconhecer.
Estamos
perante um trabalho de amor e paixão pelo berço que o acolheu e pelas palavras
e cantos maviosos que o embalaram nessas terras que o autor docemente carrega
com carinho, alegria e muito orgulho. São assim os transmontanos.
Pois
bem, para o futuro fica a obra escrita que se deixa e o livro é um suporte
fundamental da transmissão da cultura. As gerações passam mas fica o
pensamento, o conhecimento. Eu não me esqueço da aflição de um douto professor
da Universidade Católica, aqui de Braga, quando, há alguns anos atrás, teve de
dissertar sobre a biografia de um professor do Seminário de Braga, considerado
como uma grande sumidade, mas em que o seu legado escrito se resumia apenas a
um artigo que escreveu na revista Theologica.
As gerações passam mas fica o pensamento e o conhecimento registado porque as
palavras leva-as o vento…
Ora,
reunir essas pesquisas em livro é garantir-lhes perenidade, é dar oportunidade
de serem revisitadas com grande facilidade e comodidade de consulta. Através do
livro – como extensão da memória e da imaginação – o passado torna-se presente.
A vida projeta-se no futuro e o livro é, exatamente, essa ponte entre o passado
e o futuro.
Não
querendo abusar da vossa paciência, vou terminar com um comentário final para
lhes dizer que, ao longo da vida, tenho-me cruzado com amigos, e alguns bem
credenciados, que me dizem que também eles gostavam e desejavam escrever,
desculpando-se com mil e uma coisas… Pois bem, Alexandre Herculano, essa figura
cimeira da nossa História, diz que é um erro vulgar confundir o desejo com o
querer. O desejo, diz ele, mede os obstáculos; a vontade vence-os.
Braga, 14 de outubro de
2017.
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