domingo, 5 de novembro de 2017

“Que o sangue jorre a rodos!” - Uma Revolução


Novembro ainda pertence à efeméride que por aqui e ali, se comemora sem grande alarde – A Revolução Russa (mais propriamente Revolução Soviética) de 1917. Os Russos não querem dela ouvir falar. Preferem o Capitalismo com todos os seus defeitos às virtudes do Comunismo. Vladimir Putin também “não foi em futebóis”: mandou fazer uma pesquisa rigorosa a uma Comissão da Academia Russa. Que relatasse a rigor o que aconteceu naquele ano, de Fevereiro a Outubro. E não falou mais sobre o assunto. Pela Europa, a Academia tem feito aqui e ali, uma conferência, um colóquio ou uma palestra. Nada mais do que isso. Porque a tragédia que essa Revolução provocou não foi pequena. Não vale a pena alguns da nossa praça tentarem “tapar o sol com a peneira”, branqueando essa tragédia e o papel de alguns dos revolucionários.
Em síntese, os bolcheviques (minúsculos, se comparados com outras forças politicas), tomaram o poder para espanto de todos. Porque tinham o apoio do soviete de Petrogrado (que dele dependiam todas as decisões), do proletariado e dos marinheiros de Kronstadt (tanto em 1905 como em 1917, embora se tenham revoltado contra o terror bolchevique em Março de 1921). Derrubaram um governo legitimo que poderia ter levado a Rússia para a democracia. Com a Revolução, Lenine (com o apoio de Trotsky) levou o país para uma ditadura execrável, apoiada no Exército Vermelho, organizado por Trotsky, e na Guerra Civil que se seguiu. Aliás, sem essa Guerra Civil, os bolcheviques nunca teriam consolidado o poder. Depois foi o que se viu. Surgem as políticas genocidas da Rússia Soviética nos anos 1932-1933 e 1937-1949. E embora a Revolução Russa tenha iniciado como uma tentativa democrática com o Partido Social Democrata de Lenine, para mal de todos descambou no totalitarismo que todos conhecemos[1]. Os bolcheviques mudaram em Março de 1918, o nome do Partido Social Democrata para Partido Comunista da Rússia[2]. O ideal bolchevique, da dedicação altruística à causa revolucionária, foi bem ilustrada pelo próprio Estaline: “um verdadeiro bolchevique não pode nem deve ter família, porque deve entregar-se por completo ao Partido” [3]. Hoje, todos sabemos como o ideal de igualitarismo comunista resultou em tiranias brutais, que tentaram controlar todos os aspectos da vida quotidiana[4]. Em suma, enumerando todas as patifarias, todas as experimentações e processos de anular tudo o que vinha de antes para criar o “homem novo”, os bolcheviques, com o comunismo, pretenderam fundar uma religião.
O conceito de “terror em massa” é fulcral em Lenine, fórmula que surge a partir da revolução de 1905. Volta a surgir em força na Primavera e durante o Verão de 1918, estando ainda presente em Abril de 1921. E largamente apoiada por intelectuais como Gorki, sobretudo no que diz respeito à massa de camponeses. Em 1930-31, foram deportados cerca de dois milhões de camponeses. Das suas tragédias nos dá conta o historiador italiano Andrea Graziozi; desta “patologia sistémica” leninista/estalinista[5], pode recorrer-se ainda a Moshe Lewin ou Lynne Viola.
De repente, o terror de 1793 dos “homens do barrete frígio”, tão desprezível para Edmund Burke[6]. é institucionalizado no dia cinco de Setembro de 1918 pelo decreto “sobre o terror vermelho”. De facto, os meses que se seguem caracterizam-se por um clima de violência estatal absolutamente novo. São 15.000 as vítimas do Outono de 1918. Ou seja, foram executados, em dois meses, três vezes mais do que o número total de executados no último século pelo terror czarista!
Nicolas Werth destaca o escabroso editorial do jornal da tcheka de Kiev: “Que o sangue jorre a rodos!” [7].
O aniquilamento é, sobretudo, visível na Crimeia. Cerca de 150 mil “burgueses” são executados, deportados, etc. O livro de Melgounov, comoveu a Europa Ocidental. Diz a dado passo: “fuzilar tornou-se o início e o fim da ponderação administrativa dos comunistas”. E socialistas, acrescente-se. São mortos 500 mil cossacos. Isaac Z. Sternberg nas suas memórias denuncia este terror leninista. O terror de massas tornou-se assim, uma politica de higiene social. Na Sibéria Ocidental eliminaram-se 300 mil.
Foram pertinentes as conclusões da autora d’As Origens do Totalitarismo, sobre as leituras dos revolucionários do século XX[8] – Marx e Darwin – e o papel decisivo que o conceito de evolução teve nas teorias bolcheviques e nazis.
Caracterizado pela obsessão da depuração o terror de massas leninista cria a via de limpeza social que Estaline empreende a partir de 1929, ano da “Grande Viragem” e dos “Amanhãs que cantam!”. E que mais tarde será utilizada na China de Mao, em proporções gigantescas.
O mítico John Reed, no seu imortal 10 Dias que abalaram o Mundo (edição comemorativa do centenário da Revolução das edições Avante), descreve-nos em rigor os primeiros 10 dias da tomada do poder bolchevique[9]. Prefaciado pelo próprio Lenine, que aconselhava a edição de milhões de exemplares por todo o mundo. Recomendação que se tornou realidade, embora tenha sido sujeito a uma elevada censura, durante vários anos, tanto no Ocidente como na Rússia Soviética de Estaline, que não gostava desta crónica heróica porque a sua referência nela era irrelevante, se comparada com a de Lenine e Trotsky. Só a História da Revolução Russa de Trotsky se lhe assemelha, suplantando-o em muitos pontos.
Décadas depois, surgem vários estudos com a abertura do arquivo da KGB, nos anos 90 do século passado. Contudo, uma das sínteses desse conjunto de historiadores, apreciada e reeditada ao longo dos anos, constitui o volume de Sheila Fitzpatrick, intitulado “A Revolução Russa”, editado pela primeira vez em 1979, cuja quarta edição surgiu em 2017 nas bancas portuguesas[10]. Em 1996 é publicada, por Orlando Figes, uma obra essencial sobre esta temática: “A tragédia de um povo, a Revolução Russa de 1891-1924” [11]Bem como os testemunhos pessoais de Chmeliov, Grossman, Chalamov, ou Sojenitsine.

Actualizado a 6 de Novembro XVII.


[1] MONTEFIORE, Simon Sebag, Estaline (5 volumes), Altheia/Expresso, 2017.
[2] FIGES, Orlando, Sussurros, a vida privada na Rússia de Estaline, Aletheia, 2010, p. 35, nota de rodapé assinalada com *.
[3] FIGES, Orlando, idem, p. 35.
[4]HARARI, Yuval Noah, Sapiens, de animais a deuses – História Breve da Humanidade, Elsinore, 2017, p. 199.
[5] E trotskista. Trotsky esteve com ambos, principalmente com Lenine. Foi Trotsky que fundou  e organizou o Exército Vermelho.
[6]Reflexões sobre a Revolução em França, Ed. Edípro, São Paulo, 2014.
[7] BRUNETEAU, Bernard, O século dos genocídios, Instituto Piaget, 2004.
[8] ARENDET, Hannah, As origens do totalitarismo, Dom Quixote, 2008.
[9] REED, John, 10 dias que abalaram o mundo, Aletheia, 2017.
[10]  Ed. Tinta da China, Lisboa.
[11]  Ed. Dom Quixote, 2017.

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