Mário Pinto - OBSERVADOR
Razão têm os ex-ministros
Roberto Carneiro, Marçal Grilo, Oliveira Martins e Nuno Crato, quando defendem
que as escolas privadas podem e devem também ser integradas no serviço público
de educação.
1. Este artigo, que
corresponde a um convite honroso para participar nesta coluna semanal do jornal
Observador, dedicada às questões da educação, teve esboçada uma versão
anterior, focada na defesa da liberdade de escola e na não-discriminação
negativa dos alunos das escolas privadas relativamente aos alunos das escolas
do Estado — porque (no respeito da liberdade de escolha garantida pela
Constituição) a todos é igualmente devida a gratuitidade do ensino obrigatório,
e não apenas aos alunos das escolas do Estado.
Mas depois de ter visto e
lido sobre o discurso do presidente dos Bombeiros Voluntários, que, em sessão
pública, discursou rispidamente contra o primeiro ministro, em defesa da
autonomia dos bombeiros voluntários e, no fundo, contra a sua nacionalização
como «bombeiros profissionais» — isto é, funcionários do Estado —, pareceu-nos
que havia uma analogia problemática, que valia a pena preferir como tema, a
saber: a guerra do Estado Português contra a Sociedade Civil. Vejamos.
2. Tudo terá começado com
o surgimento do Estado, quando a sociedade «primitiva», a sociedade sem Estado,
se dividiu, ou foi dividida, entre a Sociedade Civil e o Estado, entendido este
segundo a moderna definição sociológica de instância de poder (político) físico
constritivo irresistível sobre a sociedade. Marx explicou esta divisão entre a
sociedade e o Estado dizendo que foi a sociedade civil que primeiro se dividiu
em duas classes sociais; e uma delas, a classe dominante porque proprietária,
gerou depois o Estado contra a outra classe. Por isso, a sua proposta
revolucionária visava o fim da extinção definitiva da propriedade privada e do
Estado, para que renascesse (já muito mais evoluída técnica e economicamente)
uma «sociedade terminal» sem classes e sem Estado. Se bem que era começando
pela conquista violenta do Estado, para depois, e através de uma ditadura,
acabar com a propriedade privada e a classe proprietária — contradição que
Bakunine lhe objectou, dizendo-lhe que o Estado nunca se extinguiria a si
próprio, o que a história confirmou, até ao presente.
3. Muito interessante é
que, contra a tese de Marx, um famoso antropólogo e etnólogo nosso
contemporâneo (infelizmente já falecido), o francês Pierre Clastres, autor de
estudos de referência dos índios sul-americanos, designadamente os Guayaki,
Guarani, Chulupi e Yanomami, defende e comprova uma tese oposta à de Marx. Ele
explica que foi o surgimento de uma chefia com poder político constringente
(pela força) sobre a sociedade, que a dividiu em classes. Isto ocorreu quando a
chefia tradicional da sociedade primitiva, que não tem poderes constritivos de
comando, ganhou esses poderes. É aí que surge o Estado, a divisão entre
governantes e governados, de que depois nasce a divisão entre classes sociais.
Clastres descobriu, nas sociedades primitivas que estudou, uma permanente
resistência contra uma eventual chefia de comando constritivo. E daí o título
do seu livro de referência: «A sociedade contra o Estado» («La societé contre
l’État»). Na sua tese, a sociedade primitiva foi sempre, enquanto pôde, contra
o surgimento do Estado, pela oposição a que o chefe tradicional ganhasse poderes
de comando constritivo.
4. Ora, nós podemos hoje
dizer que o receio das sociedades primitivas é justificado; porque a verdade é
que, depois de ter nascido, o poder político constringente (Estado), embora
variável na sua organização, foi de facto, por milénios e milénios, contra a
sociedade civil. E só desde há cerca de duzentos anos, a gloriosa Revolução
Liberal abriu uma nova era, verdadeiramente à escala da humanidade. Mas nem por
isso ficou inteiramente resolvida, de uma vez para sempre, a questão do
conflito entre a Sociedade Civil e o Estado. Longe disso: a questão das
relações entre a Sociedade Civil e o Estado permanece como questão nuclear da
teoria e da praxis constitucional e de toda a vida política contemporânea.
5. Apenas alguns
flagrantes do Estado Português contra a sociedade civil (citando de memória
sobre registos precisos). Veio não há muito na comunicação social, sem
desmentido, que o ex-ministro da Saúde que criou o Serviço Nacional de Saúde,
aliás com muito mérito, disse, num discurso público, em Coimbra, que era
inadmissível que o sector privado da saúde fizesse concorrência ao Serviço
Nacional de Saúde do Estado. Pouco tempo antes, numa entrevista a um jornalista
da Rádio Renascença, o secretário geral da Intersindical, que é uma voz
considerada como representativa do «centralismo democrático», defendeu que o
chamado sector social, que é da iniciativa livre e democrática dos cidadãos,
aliás previsto na Constituição, devia ser apenas supletivo da função social do
Estado. Por seu lado, a actual equipa do Ministério da Educação, que se tem
destacado por mudar o que vinha do Governo anterior com tanta pressa que nem
sequer tem tempo para, como devia por lei, consultar o Conselho Nacional de
Educação, privilegia ostensivamente a monopolização estadual do ensino escolar
obrigatório gratuito, sem atender para nada ao direito de os pais escolherem a
escola para os filhos, sem por isso sofrerem discriminações (que está garantido
na Declaração Universal dos Direitos do Homem e também na nossa Constituição);
nem ao direito e liberdade de escola dos cidadãos, ainda aqui sem
discriminações da parte do Estado, e ainda por cima desleais. Depois de ter
reduzido os contratos de associação, com isso provocando um largo despedimento
de professores nas escolas privadas, agora readmite e consolida milhares e
milhares de professores nas escolas do Estado. Trata-se de uma claríssima
preferência em favor das escolas do Estado e dos professores do Estado, contra
as escolas privadas e os seus professores, que ofende a Constituição, porque o
Estado não pode discriminar entre cidadãos em função das suas legítimas
iniciativas e escolhas. Algum tempo atrás, a secretária de Estado da Educação,
em terras de Leiria, chegou ao ponto de, acerca do modo como investia no
sistema educativo estadual e desinvestia nas escolas privadas com contrato de
associação, se exprimir como se fosse proprietária do tesouro público e o seu
poder arbitrário de investir fosse igual ao de um magnata capitalista. Compreende-se
que no Governo a tenham mandado calar; mas não é certo que a tenham corrigido
no que anda a fazer.
6. Mesmo nestes últimos
dias, tivemos uma outra declaração governamental, simultaneamente a mais
infeliz e a mais eloquente de todas, do secretário de Estado da Administração
Interna, quando recomendou (citando sempre de memória e em resumo) que os
cidadãos deveriam eles cuidar da sua própria segurança, isto falando no
contexto dos incêndios florestais. Ora, como é sabidíssimo, a segurança pública
(é dessa que se trata no combate aos incêndios florestais, e é dessa que o
Ministério da Administração Pública trata), compete em exclusivo ao Estado,
como função de soberania que é. E imaginemos. Se o dito secretário de Estado,
em vez de ser da Administração Interna, fosse da Educação Escolar, área esta
que não pertence ao monopólio do exercício de poderes de soberania, alguém
admite que ele, por exemplo perante uma falha de escolas, recomendasse que os
cidadãos deveriam eles próprios cuidar da rede escolar, suprindo as falhas do
Estado? Conclusão. Aqui, em matéria de segurança pública, que entra nas funções
de soberania, os cidadãos são estimulados a competir com o Estado. Ali, em
matéria de educação escolar, que não é monopólio de soberania, o Estado discrimina
negativamente a iniciativa dos cidadãos e discrimina-a ostensivamente. E nem se
diga que o referido Secretário de Estado é uma voz isolada e dissonante. Parece
que partidos que entre nós se arrogam como os mais estrénuos defensores do
Estado social, se sentem agora algo indecisos sobre a cobertura financeira da
solidariedade social devida aos que sofreram terrivelmente com os incêndios.
Perante esta evidência,
poderá alguém dizer, à primeira vista: há aqui uma contradição. Pois bem, a
contradição é apenas aparente, porque afinal esconde uma coerência, que é a da
guerra do Estado contra a Sociedade Civil. No primeiro caso, é guerra pela
negativa, quando nega ou regateia o que sabe que só ele pode dar: a segurança
pública. No segundo caso, é guerra pela positiva, quando impõe ou privilegia a
iniciativa estadual contra a iniciativa dos cidadãos, que aqui também a podem
tomar, de direito e de facto: a educação escolar.
7. Este ponto merece
reflexão crítica. Com efeito, só o Estado pode exercer as funções soberanas de
segurança e de justiça públicas. Para isso, cobra impostos. E o que vemos? Que
nem a segurança pública nem a justiça pública são bastantes e são inteiramente
gratuitas. O Estado tem vindo a externalizar (é o termo) a prestação destas
funções, na medida do que lhe é possível. Hoje, os chamados serviços de
segurança privada (se bem que não exerçam poderes públicos) suprem, em medida
significativa, a insuficiência da segurança pública, que é dever do Estado
garantir inteira e gratuitamente. Quanto à justiça legal pública, alguém pode
dizer que é totalmente gratuita? E que, por não ser suficientemente pronta, é
suficiente? O que tem vindo a suceder é que o próprio Estado também aqui
facilita uma externalização da justiça, designadamente por via da instituição
das comissões de arbitragem. Os privados, sabedores das delongas, e dos imensos
custos correspondentes, na justiça pública civil, que aliás não é inteiramente
gratuita, optam pelas comissões de arbitragem, assim custeando e suprindo em
parte as funções estaduais da justiça pública.
Entretanto, é raro o dia
em que os partidos e sindicatos do estatismo não reivindiquem mais Estado e
menos iniciativa privada nas prestações sociais do sistema nacional de
solidariedade social, a ponto de, até na linguagem corrente, este sistema, se
chamar «Estado social» — quando, na verdade, na Constituição e na realidade,
ele é um sistema da República toda inteira, nas suas três fundamentais esferas:
privada, pública e estadual, grosso modo (mas significativamente) em
correspondência à esfera da família, da sociedade civil e do Estado. Anote-se
que são aqueles três os domínios da República, segundo os melhores
constitucionalistas do chamado neo-constitucionalismo, ou do Estado
Constitucional, por exemplo, o alemão Peter Häberle e o italiano Paolo Ridola.
E não apenas dois, como dizemos no discurso corrente entre nós, que distingue o
privado para a Sociedade Civil e o público para o Estado. Reside aqui uma
questão determinante da nova teorização constitucional, que se foca na relação
entre a Sociedade Civil, que é constitucionalmente pluralista, e o Estado
Constitucional «neutro». Rigor e razão têm, por isso — diga-se em aparte — os
ex-ministros da Educação, Roberto Carneiro, Marçal Grilo, Oliveira Martins e
Nuno Crato, quando defendem publicamente que as escolas privadas podem e devem
também ser integradas no serviço público de educação escolar. Porque a esfera
pública da educação escolar pertence à Sociedade Civil, não é a esfera
estadual.
8. O princípio da
subsidiariedade. Ora, é precisamente aqui que o princípio da subsidiariedade
social entra como princípio regulador das iniciativas, quer sejam
pessoais-privadas, pessoais-civis-públicas, ou entidades-políticas-estaduais,
quando visam cumprir a justiça e a solidariedade entre membros da Sociedade
republicana. Para que não suceda, com o Estado, como no caso do escuteiro que
obrigou a velhinha a atravessar a rua para ele cometer uma boa acção. Pior
ainda se, paradoxalmente, como no caso dos incêndios recentes, o Estado diz aos
cidadãos que tratem de si mesmos, quando isso, como no caso, lhes é impossível
em medida decisiva.
9. A exposição geralmente
considerada como a melhor para definir o princípio da subsidiariedade social é
a do Papa Pio XI, na sua Encíclica “Quadragesimo Anno” (de 15 de Maio de 1931),
que diz assim: «Tal como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem
efectuar com a sua própria iniciativa e trabalho, para o confiar à
colectividade, do mesmo modo é uma injustiça, um grave dano e perturbação da
sociedade e da boa ordem social, passar para uma sociedade maior e mais elevada
o que comunidades menores e inferiores podem realizar. O fim natural da
sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem
absorvê-los». E desta definição retirou o mesmo Papa uma recomendação à
superior autoridade pública, para que respeite o princípio de deixar ao cuidado
preferencial das associações inferiores, na escala da vida civil e política, o
que elas podem fazer, desse modo se realizando a si próprias e libertando-se
assim a instância política mais elevada, o Estado, de questões que a
absorveriam e a impediriam de desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente «o
que só a ela compete, porque só ela o pode fazer», por exemplo, regular
superiormente, superintender, vigiar, estimular e reprimir, conforme os casos e
as necessidades requeiram. E conclui a recomendação por estas palavras:
«Persuadam-se todos os que governam que quanto mais perfeita ordem hierárquica
reinar entre as várias associações, segundo este princípio da função
subsidiária [sublinhado nosso], tanto maior serão a autoridade e a eficácia
sociais, e tanto mais feliz e fecundo será o estado na nação».
Assim enunciado, não é
difícil compreender o princípio da subsidiariedade social na sua fundamental
razão de ser, isto é, como princípio regulador de todas as acções de
cooperação, de solidariedade e de autoridade, tendo sempre em vista a
finalidade primacial entre todas, que é sempre a promoção respeitosa do direito
fundamental de auto-realização de cada pessoa humana. Que implica que ela possa
não apenas usufruir dos seus direitos fundamentais, mas também cumprir os seus
deveres fundamentais — garantida e apoiada, sim, mas sem ser desnecessariamente
impedida nem substituída pelo Estado, nem numa coisa nem noutra.
10. Na Constituição
Portuguesa, o princípio da subsidiariedade foi consagrado pela revisão de 1997.
Mas, apesar desta consagração constitucional, ele continua quase clandestino na
vida pública portuguesa. Ao contrário do que, por exemplo sucede em Itália.
Neste país, que com a Alemanha tem merecido à escola jurídica e constitucional
portuguesa uma grande e merecida consideração, teve lugar (em 2001) uma
importante revisão constitucional, manifestamente já num quadro doutrinário
mais avançado de Estado Constitucional. A nova redacção do Título V da
Constituição, que é dedicado à organização política e administrativa («Le
Regioni, le Province, i Comuni»), veio inovar substantivamente pela consagração
do princípio da subsidiariedade. Merecem destaque duas novas orientações
constitucionais.
Uma, a que a doutrina
italiana chama de «subsidiariedade vertical», reconhece aos municípios uma
competência de certo modo prioritária, precisamente em função do princípio da
subsidiariedade. Diz assim: «As funções administrativas são atribuídas aos
Municípios (Comuni) salvo quando, para lhe assegurar o exercício unitário,
sejam conferidas a Províncias, Cidades metropolitanas, Regiões e Estado, na
base dos princípios de subsidiariedade, diferenciação e adequação» (art. 118, §
1).
E outra, a que a doutrina
chama de «subsidiariedade horizontal», nestes termos: «Estado, Regiões, Cidades
metropolitanas, Províncias e Municípios favoreçam a iniciativa autónoma dos
cidadãos, singulares e associados, para o desenvolvimento de actividades de
interesse geral, na base do princípio da subsidiariedade» (art. 118º, § 4).
Isto é: a começar pelo Estado e a acabar pelos municípios, todas as
instituições políticas da República devem observar o princípio da subsidiariedade,
dando prioridade à iniciativa dos cidadãos e dos corpos da Sociedade Civil.
11. Aqui fica um exemplo
muito inspirador de incorporação, mais forte constitucional, do princípio da
subsidiariedade, aliás em desenvolvimento da doutrina constitucional da União
Europeia. Designadamente contida no artigo 5.º, n.º 3, do Tratado da União
Europeia (TUE), que diz assim: «3. Em virtude do principio da subsidiariedade,
nos domínios que não sejam da sua competência exclusiva, a União intervém
apenas se e na medida em que os objectivos da acção considerada não possam ser
suficientemente alcançados pelos Estados-Membros, tanto ao nível central como
ao nível regional e local, podendo contudo, devido às dimensões ou aos efeitos
da acção considerada, ser mais bem alcançados ao nível da União.» «Mutatis
mutandis», o que vale no âmbito das relações entre a União e os Estados
membros, vale nas relações políticas internas dos Estados membros, porque o
princípio é universal, em função da dignidade da pessoa humana. E um Estado
honesto não pode ser adepto deste princípio, que é universal, só quando «lucra»
com ele.
Professor Catedrático
Jubilado do ISCTE e da Universidade Católica Portuguesa.
‘Caderno de Apontamentos’
é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor
convidado.
Sem comentários:
Enviar um comentário