As tentativas de
branquear Trotski, como as de Francisco Louçã, em nada diferem das de branquear
Lenine ou Estaline. Todos viam o futuro da URSS sem democracia e sem as mais
elementares liberdades.
Nas vésperas do
centenário da revolução comunista de 1917, alguns políticos e académicos tentam
convencer-nos que, se Lev Trotski vencesse a guerra pelo poder depois da morte
de Lenine, os destinos da União Soviética teriam sido outros. É uma afirmação
que em nada corresponde à verdade e apenas visa branquear um acontecimento que
deu início à morte de milhões de pessoas. O teórico do “terror vermelho” não
iria ser mais tolerante ou aberto do que o ditador Estaline.
“Mesmo na preparação da
Revolução de Outubro, ao passo que Trotski insistia na necessidade de respeitar
a legalidade soviética – era o presidente do Soviete de Petrogrado, em que
tinha sido formado um Comité Militar Revolucionário CMR), a que obedeciam os
sovietes de soldados –, Lenine preferia uma simples decisão partidária. Acabou
por ser vencido nesse tema, sendo o Comité Militar Revolucionário, e não o
partido diretamente, a organizar a insurreição na noite de 25 de 25 para 26 de
Outubro (ou de 6 para 7 de Novembro no calendário ocidental)”, escreve
Francisco Lousã, professor catedrático do ISEG e teórico do Bloco de Esquerda.
Como se depreende das
palavras deste académico, Trotski era um líder mais democrático e legalista do
que Lenine, o que é pura falsificação da história tendo em conta os factos
posteriores.
Primeiro, o CRM não
passava de um órgão dependente e manipulado pelo Partido Social-Democrata Russo
(bolchevique), por isso essa medida de Trotski visou apenas “legitimar” mais um
pouco o golpe de Estado (nome que os bolcheviques deram inicialmente à
revolução) desferido não contra o czarismo (Nicolau II já havia renunciado em
Março de 1917), mas contra um governo provisório democrático que pretendia
convocar uma Assembleia Constituinte para traçar o rumo da Rússia. Recorrendo a
um paralelo, pode dizer-se que se a extrema-esquerda tivesse vencido em
Portugal a 25 de Novembro de 1975, este golpe seria considerado por ela uma
revolução contra o 25 de Abril de 1974, que não teria passado para os comunistas
de uma “revolução burguesa”.
O mesmo académico fala de
“legalidade soviética”, sem explicar o que isso é, porque simplesmente não
existiu também por obra de Trotski e companhia.
À frente do CMR, Trotski
impunha assim a sua “legalidade”: “Dizem que não se pode estar sentado nas
baionetas. Mas sem elas não podemos passar. Precisamos da baioneta aí para
estarmos sentados aqui… Toda essa canalha pequeno-burguesa que hoje não é capaz
de se colocar nem de um lado, nem de outro, passará para o nosso lado quando
souber que o nosso poder é forte… A massa pequeno-burguesa procura força a quem
sujeitar-se. Quem não compreende isto, não compreende nada no mundo, muito
menos no aparelho de Estado”.
Entretanto, a 21 de
Novembro de 1917, o Comité Militar Revolucionário cria uma “comissão para o
combate à contra-revolução”, um antecedente da tenebrosa polícia política
soviética Tcheka, NKVD, KGB. Por ordem de Trotski, o CMR encerrou uma série de
importantes jornais russos, sempre em conformidade com a “legalidade
soviética”.
Mas para os que não
compreenderam ainda este conceito, Trotski explicou-o bem em 17 de Dezembro de
1917: “Devem saber que dentro de um mês, o mais tardar, o terror tomará formas
muito fortes a exemplo dos grandes revolucionários franceses. A guilhotina, e
não só a prisão, espera os nossos inimigos”.
O professor Louçã
“esqueceu-se” também que o conceito de “terror vermelho” foi formulado por Lev
Trotski na obra “Terrorismo e comunismo”, como “arma empregue contra a classe
condenada à morte, que não quer morrer!”.
Claro que toda esta
retórica cruel pode ser “justificada” com a necessidade de derrotar os
“inimigos de classe”, a burguesia, mas o facto é que, durante a mortandade que
foi a guerra civil (1917-1922), as teses defendidas por Trotski serviram para
esmagar também as forças de esquerda que ousavam criticar o bolchevismo. Este
já não precisava de aliados.
O levantamento de
Kronshtadt, de 26 de Fevereiro de 1921, foi realizado por marinheiros de várias
correntes políticas de esquerda, nomeadamente militantes que tinham abandonado
o partido bolchevique e anarquistas.
Eles não exigiam a
restauração do capitalismo, mas apenas eleições livres para os Sovietes,
liberdade de expressão e imprensa para “operários e camponeses, anarquistas,
partidos socialistas de esquerda”. No fundo, eles queriam que fosse respeitada
a palavra de ordem lançada por Lenine em 1917: “Todo o poder aos Sovietes!” e
fosse posto fim à “ditadura dos bolcheviques”.
E qual foi a resposta do
dueto Lenine-Trotski? O esmagamento implacável da revolta, com um resultado que
se iria tornar habitual na história soviética: milhares de mortos e de feridos
de ambos os lados. Depois, os vencedores, para darem mais uma lição aos que
ainda não tinham compreendido a “legalidade soviética”, fuzilaram 2103 pessoas
e 6459 foram condenadas a diversas penas de prisão.
Por isso as tentativas de
branquear Trotski em nada diferem das de branquear Lenine ou Estaline. Todos
eles viam o futuro da URSS sem democracia, sem as mais elementares liberdades,
embora estivessem escritas em todas as constituições soviéticas.
Lev Trotski pode-se ter
mais tarde arrependido de muitos dos seus erros (crimes), mas já estavam
feitos, e de forma metódica e consciente.
José Neves, professor da
Universidade Nova de Lisboa, escreve: “Comunistas como Trotski, por exemplo,
viram logo no estalinismo a antítese de Outubro. Em 1936, antes mesmo dos
terrivelmente célebres Processos de Moscovo, já escrevia um livro
sugestivamente intitulado A Revolução Traída”. Ora, a revolução comunista não
foi traída, mas continuada da única forma possível: através da violência. Sem a
repressão o regime soviético não sobreviveria muito tempo. Prova disso foi que
a URSS ruiu logo que Mikhail Gorbatchov permitiu uma frincha no sistema
repressivo.
Branquear a revolução
comunista significa justificar o fim dos mais elementares direitos humanos em
prol de uma utopia que teve sempre resultados tenebrosos, independentemente do
país onde se tenha tentado a sua realização.
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