Em tempos, faltava pouco
para que o fervor dos devotos por Sócrates suscitasse imolações pelo fogo. Hoje
assobiam para o lado e preferem que o indivíduo se imole sozinho. Nem a lepra
assustava assim.
Na quinta-feira à noite,
a sra. dona Constança Cunha e Sá explicou na TVI o principal motivo pelo qual a
acusação de José Sócrates não vale a atenção de pessoas ilustres: não trouxe,
cito, “surpresas”. Pelos vistos, trinta e um crimes não bastaram à referida
jornalista, que aparentemente gostaria que o antigo primeiro-ministro fosse
acusado de coisas inusitadas como o abuso de pinguins ou o roubo de tubos de
escape. Na verdade, a sra. dona Constança Cunha e Sá gostaria que José Sócrates
não fosse acusado de todo.
Tratou-se de um raro e
bonito momento de solidariedade para com o menino que sonhava com ventoinhas e
apartamentos em Paris. Em tempos, faltava pouco para que o fervor dos devotos
por José Sócrates suscitasse imolações pelo fogo. Hoje, os devotos assobiam
para o lado e, à cautela, preferem que o indivíduo se imole sozinho. Nem a
lepra assustava assim. Uma rápida consulta às capelinhas virtuais da seita
apenas encontra silêncio e distracções. Enquanto os “media”, com discrição e
fastio, davam as novas da “Operação Marquês”, no blogue do peru emproado que
enfiou o “engenheiro” na Sorbonne discorria-se em volta de “Che” Guevara: em
Outubro de 2017, até a associação a um psicopata parece comprometer menos do
que a intimidade com o “autor” de “A Confiança no Mundo”. E este é um mero
exemplo. Por regra, e à semelhança dos milhões movimentados nas negociatas, os
amigos de José Sócrates sumiram sem rasto nem vergonha.
O facto é tanto mais
notável quanto os amigos de José Sócrates eram imensos. Alguns, fiéis à força,
continuam a fazer-lhe companhia nas quatro mil páginas do processo. A maioria
passeia-se sorridente. Sorridente e amnésica. Se o pacote de acusados constitui
uma amostra razoável da oligarquia que regularmente enxovalha o país, convém
notar que, por definição, as amostras deixam o resto de fora.
E o resto é demasiada
gente. A gente dos “media”, nulidades amestradas que José Sócrates inventou ou
desenterrou para o servir. A gente do comentário “isento”, sob nome próprio ou
pseudónimo, cujas avenças cresciam de modo directamente proporcional à
beatificação do amo e senhor. A gente dos negócios que prosperava à sombra da
criatura e retribuía a prosperidade com juros. A gente da “justiça”, indivíduos
com pilosidade auricular que garantiam a impunidade do benemérito que lhes
arranjou emprego. A gente das “relações pessoais”, um folclórico grupo de
familiares, namoradas e espontâneos que cirandava em redor de dinheiro
facílimo. Sobretudo a gente da política, que subiu com José Sócrates, conspirou
com ele e zelosamente lhe amparava os delírios.
É possível que essa gente
não tenha sabido de nada, dado por nada, reparado em nada, desconfiado de nada,
participado em nada. É possível que essa gente constitua o maior aglomerado
nacional de débeis mentais desde a inauguração de Rilhafoles. É possível, e
nesse caso seria um acto de mera comiseração e humanidade remover essa gente do
convívio com os demais, a bem de uns e dos outros. É possível, e não se deve
ficar tranquilo quando, ao inventariar a tralha “socrática” que continua a
infestar lugares de decisão ou influência, imaginarmos que Portugal pode ser
pasto de idiotas terminais. Ou então não é possível, e a intranquilidade
aumenta.
Se calhar, não é
realmente possível que essa gente não tenha experimentado o vestígio de uma
suspeita, ou estranhado a folia, ou mesmo colaborado nela. E se calhar não é
possível não saber que, além de obviamente ilegal, a folia acontecia à custa
dos cidadãos “comuns” que essa gente finge defender em cada uma das suas
descaradas intervenções. Em qualquer das hipóteses, essa gente não merece andar
por aí em paz, ou porque é clinicamente incapaz disso, ou porque é moralmente
indigna.
E, no entanto, é preciso
repetir: essa gente anda em paz. Para cúmulo, também manda em paz, e com o
exacto tipo de descontracção e alcance que José Sócrates tentou sem conseguir.
Por morrer uma andorinha, ou ser julgada uma quadrilha, não acaba o regabofe. A
acusação do “animal feroz” e fauna restante, do honradíssimo sr. Salgado aos
portentosos gestores Bava e Granadeiro, é, para as suas inúmeras vítimas, um
instante de alívio “formal”. Mas, em última instância, é só uma pedrita leve no
charco de compadrios que aqui passa por regime. Salvo fogachos, na sua
repulsiva natureza o regime está bem e muitos – agora incluindo certamente o
próximo líder do PSD – recomendam-no. E os apreciadores farão, como costumam
fazer, bom proveito.
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