Felizmente, à revelia da
propaganda que tenta “vender” os transportes públicos a título de amigos do
ambiente ou da circulação urbana, há jornalistas sem medo de os denunciar como
os amigos do deboche
Só
entravam nele passageiros, jovens bem bonitos e solteiros
Logo
a seguir noutra paragem, entrou uma moça na viagem
Olhando
para todos perguntou, que carro é este em que eu vou?
É
o autocarro do amor, logo respondeu o revisor
O Autocarro do Amor (Os
Taras e Montenegro, 1969)
Naturalmente, um assunto
desta gravidade não podia ficar por aqui, para cúmulo quando a gravidade raia o
inominável. A polémica, como é típico das polémicas, instalou-se. E, de acordo
ou em desacordo com a segregação, os testemunhos pungentes sucederam-se. Nas
“redes sociais”, uma arguta jornalista de investigação, célebre por ter
namorado com um trapaceiro sem suspeitar de nada, escreveu: “quero q (sic) as
miúdas (sic) d (sic) 11 possam andar na rua sem lhes pedirem broches. não (sic)
quero q (sic) andem em autocarros so (sic) p (sic) meninas. quero (sic) q (sic
– tenham paciência) a lei as proteja”. Em resposta a este apelo angustiado,
outra alegada jornalista, filha do presidente da Assembleia da República
(juro), acrescentou: “Quero que andem de autocarro sem receio de que um gajo
qualquer se encoste a elas para se vir entre uma paragem e outra.”
Embora não penetre (vade
retro) um autocarro desde 1989, não me passa pela cabeça duvidar de gente
séria. Parece-me evidente que alguma coisa medonha acontece na Carris e
similares, cujos veículos estão aparentemente repletos de exibicionistas
apreciadores de fellatio e ejaculadores precoces. Não me parece evidente a
maneira de as referidas jornalistas chegarem a informação tão detalhada. Sugiro
duas hipóteses. A primeira é o recurso a fontes qualificadas: as senhoras nunca
entram em autocarros, mas convivem diária e proximamente com depravados que o
fazem com propósitos sórdidos e, desculpem o jargão científico, heterobadalhocos.
A segunda hipótese é a observação directa: as senhoras frequentam os ditos
autocarros e são, elas próprias, alvo dos pervertidos agora denunciados. Em
qualquer dos casos, as senhoras deviam rever o rumo das respectivas vidas. Em
qualquer dos casos, os poderes políticos deviam actuar com a pressa e o vigor
adequados.
Falo, evidentemente, da
abolição dos transportes públicos. Mesmo sem a presença de maluquinhos
desejosos de repetir as proezas do filme erótico da CMTV da noite anterior,
viajar encostado a resmas de desconhecidos é actividade assaz desagradável e
avessa a uma existência sadia. Na presença dos maluquinhos, então, torna-se uma
aventura de alto risco, que urge erradicar. Por mim, sempre desconfiei que o
lóbi dos transportes públicos, que berra há décadas contra o bom e velho
automóvel, era coisa de tarados. Não imaginava que o fosse literalmente.
Perante isto, é ainda
mais assustadora a simpatia que o citado lóbi colhe junto de governos,
autarquias, energias “renováveis” e activistas “verdes” ou maduros. Se já
deprimia o empenho fiscal e legislativo e policial com que se tenta demover os
cidadãos de viajar na propriedade privada e na privacidade devida, é grotesco
que semelhante empenho esteja, afinal, ao serviço de líbidos desarranjadas.
Felizmente, à revelia da propaganda que procura “vender” os transportes
públicos a título de amigos do ambiente ou de amigos da circulação urbana, há
jornalistas sem medo de os denunciar como os amigos do deboche que de facto
são.
Convém mostrar-lhes que
não estão sozinhas. De hoje em diante, sentarmo-nos ao volante do nosso carro
deixará de ser um simples pormenor quotidiano. Será, sobretudo, um gesto de
solidariedade para com as mulheres assediadas e de resistência aos vastos
interesses do assédio, desses que se movem na sombra ou debaixo da gabardina.
No sossego do Audi ou do Fiat, os únicos tarados – ou, em prol da igualdade,
taradas – são aqueles que convidamos. E as únicas vítimas são as que pagam
impostos.
Notas de rodapé
1. Não me aborrece viver
num país cujos governantes abandonam entrevistas à primeira pergunta
“incómoda”, como agora aconteceu com o sr. Costa na Rádio Renascença. Mas é
triste viver num país cujos jornalistas ainda comparecem a entrevistas com
espécimes assim. Refiro-me, claro, aos jornalistas que mantêm uma réstia de
vergonha. Os restantes cumprem exacta e escrupulosamente o papel deles.
2. A propósito da
“polémica” dos livrinhos de exercícios “para o menino” e “para a menina”,
recentemente aberta por analfabetos funcionais, o gabinete de comunicação da
Porto Editora enviou-me um e-mail a esclarecer que os ditos livrinhos voltaram
às livrarias, “no quadro”, cito, “do exercício pleno da liberdade de expressão
da autora e das ilustradoras, bem como da liberdade de edição, respeitando
estes valores fundamentais numa sociedade livre e democrática”. Fica a nota, o
aplauso à Porto Editora e a suspeita de que a referência à sociedade livre e
democrática é força de expressão. Nem tudo está bem quando acaba bem, sobretudo
se começa demasiado mal.
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