O país falhou porque não teve um Governo
capaz de perceber o que estava a acontecer e de agir em conformidade.
O primeiro-ministro não se deu conta da figura que fez quando falou ao país
na sequência de mais uma tragédia causada pelos fogos florestais. O seu
semblante sentido e carregado induzia dor, solidariedade e respeito pela
memória das vítimas. O ar grave e o discurso pontuado impunham solenidade ao
momento. Mas as palavras que António Costa proferiu naquele momento constituem um dos mais lamentáveis buracos negros da política
recente. Em vez de dar a cara pela dor e pela revolta nacional do momento, o
primeiro-ministro esquivou-se em anúncios sobre o futuro; em vez de dar conta
que houve falhas graves, António Costa empenhou-se em defender o rosto de todas
essas falhas; em vez de se situar na realidade, o primeiro-ministro
projectou-se para a estratosfera. Cabe pois perguntar pela razão dessa fuga
para a frente. Para se chegar a uma constatação óbvia: este Governo sente-se
mal porque não fez tudo o que podia e devia ter feito para evitar a tragédia
deste domingo. Num tempo de emergência nacional em que se exigia visão,
determinação e coragem, o Governo agiu como se vivêssemos um Verão normal. Não
teve rasgo para perceber o perigo nem sentido de urgência para o atacar de
frente. Deu no que deu.
Os incêndios florestais mataram mais 41 pessoas e perante a dor colectiva pouco nos importa que o Governo queira
agora passar “das palavras aos actos”. Bem sabemos que os nossos brandos
costumes nos impedem de vir para a rua protestar contra o Governo como o
fizeram os galegos por estes dias, mas não podemos aceitar que esta brutal
incapacidade do Estado para proteger os seus cidadãos seja menorizada ou
esquecida com a cantilena do futuro. Bem pode a sua ministra falar nos
problemas da “prevenção estrutural” e bem pode o primeiro-ministro prometer
denodo na concretização de “reformas estruturais” que nenhum futuro pode apagar
o passado trágico que vivemos. Falhou o Governo, falhámos todos.
Quando a tragédia de Pedrógão nos entrou pela vida
dentro, ficámos aturdidos com a violência do fogo e tentámos acreditar que esse
episódio nos iria alertar para os efeitos das alterações climáticas, para a
debilidade agravada da floresta ou para as falhas da prevenção e do combate aos
incêndios. Na altura, o Estado falhou mas a falha era tolerável. Falhou por ter
sido apanhado desprevenido, por ter sido incapaz de perceber que após três anos
de seca severa a floresta se tinha convertido num barril de pólvora. Agora,
porém, não há lugar para desculpas sobre a surpresa, sobre o clima, sobre a
debilidade dos bombeiros ou sobre qualquer fragilidade da floresta. O Governo
sabia que isto podia acontecer porque já tinha acontecido. Sabia da iminência
de uma nova tragédia nacional porque nenhuma das condições básicas para a sua
ocorrência em Junho se tinha alterado em Outubro. Pelo contrário.
O Governo fracassou clamorosamente porque foi incapaz de ler a realidade de
Pedrógão e porque não teve nem energia nem coragem para assumir que o desafio
com o qual nos confrontávamos ia muito para lá do “saber durar” equilibrista
que lhe molda a genética. Dois dias depois de Pedrógão, escrevemos que, perante
os perigos que se perfilavam, o país “precisa de uma energia, de uma determinação e de um conjunto de meios para
debelar o problema que parecem estar para lá das nossas capacidades actuais”. O que era fácil de ver nessa altura, antes do período crítico dos fogos
florestais, é que em causa estava uma “ameaça colectiva” que justificava um
estado de excepção e uma atitude de emergência para salvar o nosso mais
importante recurso natural renovável e a vida dos mais esquecidos dos
portugueses – os agricultores pobres e idosos do interior. “A dor colossal dos
mortos em Pedrogão exige um esforço colossal e rápido do país para evitar a sua
repetição”, escrevemos então.
Nada se fez de excepcional perante a excepcional ameaça que se tornara
real. O Governo foi célere em criar fundos para a recuperação dos danos, foi
expedito em aprovar a reforma da floresta, o Ministério da Agricultura teve
arte e sentido de urgência em criar condições para o regresso à vida nas áreas ardidas. Mas fez da gestão corrente uma forma de vida e acreditou que, assim,
podia suster os danos que se adivinhavam. Em vez demitir a ministra da
Administração Interna como sinal de respeito pelas vítimas, em vez de impor às
autarquias o cumprimento dos seus planos de defesa municipal contra incêndios
em prazos curtos, em vez de pedir à engenharia militar que fosse para a
floresta abrir corta-fogos, em vez de determinar as zonas de maior risco e
mobilizar os serviços e as empresas para as limparem, o Governo fez o que mais
gosta de fazer: surfar a onda. Com a morte de mais 41 pessoas, o balanço da sua
inércia, da sua incapacidade em ter um rasgo ou uma determinação corajosa para
erguer o país contra a sua maior ameaça natural em décadas, proíbe qualquer
atitude de condescendência. Isto não tinha de ser assim.
Dizer agora que “é preciso passar das palavras aos actos”, que,
"seguramente", situações como as vividas no domingo "vão
repetir-se" ou, como disse o secretário de Estado Jorge Gomes, “têm de ser
as próprias comunidades a ser proactivas e não ficarmos todos à espera que
apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver os problemas” poderia
fazer sentido se nós víssemos no Governo a segurança e o conforto que resultam
do dever cumprido. Seríamos capazes de aceitar como uma fatalidade a destruição de 230 mil hectares ou
mais e tenderíamos a tornar a ideia de que houve vítimas mais suportável se
percebêssemos que o nosso Governo se empenhou em ler o problema e esteve altura
dos seus desafios. Ficaríamos ao menos com a sensação de que fizemos o que foi
possível fazer. Nada disso aconteceu.
Todas as declarações do primeiro-ministro, da sua ministra da Administração
Interna ou do secretário de Estado Jorge Gomes correm por isso um severo risco
de soarem a falsete. Um Governo não pode falar apenas do futuro quando há
cidadãos que morreram queimados nas suas casas ou nas vias públicas deste país.
Tem de assumir que, quando há mais de 100 mortos na horrível contabilidade do
fogo, muitas coisas falharam. Não pode exigir mais “resiliência às pessoas” sem
dar o peito às balas sobre as inenarráveis faltas de resiliência da Protecção
Civil. Porque só assim o Governo será capaz de nos tranquilizar sobre um futuro
em que, como o próprio António Costa admitiu, fenómenos como o de domingo se
vão repetir. Por estes dias em que a dor nos oprime e se percebe na indignação
dos cidadãos uma raiva inconformada sobre tudo o que aconteceu, não há outra
maneira de levantar a cabeça: o país falhou porque não teve um Governo capaz de
perceber o que estava a acontecer e de agir em conformidade.
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