Do outro lado da guerra cultural não há voz nem
vontade. O comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder de
convocatória? Não sei, mas a fractura é grande.
1. Vigiam-nos. Estão atentos. Estão de serviço.
Mobilizados pelo pensamento único, uma nova forma de vida. Nunca se cansam. São
ferozes na vigilância, implacáveis na perseguição, sonoros na censura. A nova
cartilha e os seus mandamentos não incluem desvios. A nobre arte de debater, a
esgrima dos argumentos, a relevância da dúvida, o valor da discordância, estão
proibidos pela própria natureza da subversão civilizacional em curso.
Os novos proprietários querem-nos fora de pé,
ao largo de nos próprios, cortados pela raiz do que somos e representamos.
Querem que nos transfiguremos noutros, atraiçoando o nosso “nós” individual e
anestesiando o “nós” colectivo.
Querem-no com ferocidade, não usando de
contemplação: o castigo terá apenas o limite da sua própria obscenidade: a
intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio público,
abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão. A extrema-esquerda,
radical de seu nome próprio, é aliás exímia na aplicação destes instrumentos
que manuseia com a habilidade ácida do ódio. Temo-lo visto. É preciso licença prévia
para pensar e depois dizer alto o que se pensou.
Qualquer “forma mentis” que não encaixe no novo
código de conduta está automaticamente banida do seu direito de cidade, privada
do oxigénio da liberdade e da vitamínica possibilidade da interrogação e
debate. Há uma guerra cultural em curso.
2. Os novos proprietários das
mentes&costumes não valem grande coisa eleitoralmente, nunca governarão
sozinhos, o seu número no país é inversamente proporcional ao eco mediático que
os propaga mas para quem não estiver distraído nada disso tem porém grande
importância. Não tem, porque não é disso que se trata. É mais substancial, mais
fundo, mais grave. Por isso, eles valem pelo que os deixamos conseguir valer.
Valem pelo aparente êxito com que corroem os
alicerces que sustentam o berço civilizacional de onde somos, valem pelo modo
como vão calcinando o que conhecemos como nosso mundo. Valem porque exibem o
fôlego e a mestria dessa demencial empreitada que é o determinarem-nos:
formatando-nos as mentes, anestesiando–nos as reacções, domesticando-nos o
instinto, incutindo-nos o receio de destoar. De ser expulso do coro onde
impuseram uma nota só.
E valem, claro, pela desenvolta segurança de
quem se implantou – cá dentro e lá fora — com estratégia e método. Ocupando
lugares chaves tão relevantes como a Academia e a Media, convocando a Ciência
para o festim, não descurando parte dos sistemas partidários, não esquecendo as
representações parlamentares, cuidando da propaganda e do espectáculo.
Oficializando enfim um novo mapa cultural e um guia moral (?) desconexos,
híbridos, convulsivos, sem raiz. Saídos do nada. Em nome de uma abstrata “culpa
ocidental” abatem-se valores, padrões, referências, história, memória (mas
saberão eles que não há organização social capaz de vencer sem valores e sem
passado?). Abatem-se como árvores, em nome do repúdio pela herança
civilizacional recebida. Os novos proprietários exigem-nos numa palavra, que
mudemos de pele cultural.
3. Lá fora tudo “isto” está em estado de mais
adiantada convulsão mas é fraco consolo: algo nos separa – para pior — do resto
da Europa democrática e dos Estados de Direito a que gostamos de dizer que
pertencemos. Separa-nos uma fractura que agrava a vulnerabilidade da nossa
condição face à dimensão da catástrofe: o caminho está livre (ou parece livre)
para ela, não há entrave, nem resposta aos novos proprietários. Refiro-mo
obviamente a esse imenso espaço (metade do país?) do PS para a direita. Pouco o
representa, poucos dele cuidam a não ser partidos exaustos e envelhecidos e
meia dúzia de respeitáveis (e resistentes) políticos ou intelectuais. Não há
instituições que se reclamem desse espaço, há pouco vigor, são escassas as
iniciativas doutrinadoras ou políticas por ele produzidas. A discordância é
expressa quase em surdina e desastradamente, e basta pensar na CIP para só
citar um exemplo. Quanto à Universidade, faz pagar caro a professores e mestres
fora do reduto da esquerda e agora fora do jardim envenenado do pensamento
único ou da tirania do politicamente correcto.
Desde 1974 que a “media” ignora, despreza ou
suporta mal a “ideia” de direita ou mesmo de centro-direita, troçando ou
destruindo os seus líderes e ajudando a acabar com eles, mesmo que o voto os
legitime. Ao contrário da Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Holanda, e etc.,
em Portugal nunca se impôs, com substância e carácter definitivo, um jornal ou
algo de parecido com um órgão de comunicação social de centro-direita,
conservador ou menos conservador. O qual, como sucede nos países citados,
funcionaria também como catalizador/produtor de opiniões, ideias, movimentos,
debates ideológicos, pensamento político. Mas nem isso: o espaço continua
semi-orfão, inorgânico, mal-amado. É um mistério.
A sociedade civil é tão débil quanto isso? As
elites tão frágeis? A dependência do Estado tão avassaladora? Há metade do país
sem voz nem vontade? O comprometimento deixou de ter significado e perdeu poder
de convocatória? Não sei mas a fractura é grande. Do outro lado da guerra cultural
em curso há quase só anestesia, mutismo, distração, indiferença. E simpatia
até, quem sabe?
Impressiona. Ou não?
4. Posso parecer um daqueles automobilistas que
entram em contra-mão na auto estrada achando que todos os outros estão
enganados. Mas, caro leitor, o pior de tudo seria achar que subitamente exibo
um fatal pessimismo ou que exagero, ao dizer-lhe que o meu mundo não é deste
reino (e o seu, é?). Que me deu para aqui e se calhar acordei mal disposta. Não
se iluda. Não conduzo em contra-mão, não estou fora de pé, sempre pude com os
inimigos e tenho-me livrado, graças a Deus, dos “amigos”. O que não é mais
possível é acordar e constatar que aquilo que na véspera se tinha como normal
afinal não é. Por decreto emitido pelos novos proprietários, deixou de ser.
Far-me-ia por isso alguma impressão não ser
capaz de contribuir para um alerta vermelho de perigo. Perigo sério, porque
isto é a sério.
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