Rui Ramos - OBSERVADOR
A realidade, como explicou Cavaco Silva, acaba
sempre por derrotar a ideologia. Mas a ideologia no poder, como estamos a ver
em Portugal, também tem meios de minar e viciar a realidade.
O professor Cavaco Silva falou na Universidade
de Verão do PSD, e vale a pena atentar no que disse , para além do que a nossa
oligarquia preferiu comentar, incluindo os altos poderes do Estado.
Basicamente, Cavaco Silva explicou como ele e a sua geração de políticos
construíram na Europa um sistema internacional que previne “revoluções
socialistas” e, portanto, anula o confronto ideológico entre “direita” e
“esquerda”. É a essa construção que Cavaco Silva chamou “realidade”. Eis
matéria para uma discussão muito importante.
O objectivo da conferência era ajudar os
jovens, alheados da política, a distinguir entre o que é “falso” e o que é
“verdadeiro”. O “falso”, por exemplo, teria sido a expectativa de que François
Hollande em 2012 ou Alexis Tsipras em 2015 iriam erradicar a consolidação
orçamental nos seus países. No fim, ambos tiveram de “pôr a ideologia na
gaveta”. Porquê?
Porque na União Europeia depois de Maastricht,
as políticas económicas de cada Estado membro são do interesse de todos, e
coordenadas no Ecofin. A “revolução socialista” pressuporia a saída do Euro.
Mas a saída do Euro é uma “loucura” de enormes custos, que nem Tsipras
considerou seriamente. O único país capaz de sair do Euro seria a Alemanha, e
mesmo a Alemanha tem fortes razões para não o fazer. No Euro, os países não
precisam apenas de equilibrar as suas contas. Convém-lhes também ser
competitivos, nomeadamente em termos fiscais, devido à circulação de capitais.
Eis porque a “realidade acaba sempre por derrotar a ideologia”, e porque
Tsipras executa pacotes de austeridade e o actual governo português faz
“cativações”.
A primeira questão é esta: a “realidade”
europeia de Cavaco Silva consubstancia uma opção política — a de uma democracia
pluralista com uma economia social de mercado. Essa opção, porém, está hoje
fixada num quadro europeu onde aparece como um constrangimento exterior à
política, uma espécie de dado quase-natural. Daí a possibilidade de a opor a
outras opções que, por contraste, seriam “ideológicas”. Mas daí, também, a
possibilidade de partidos adeptos de uma “revolução” à venezuelana se
introduzirem na área do poder, desde que com a cautela de respeitar as tecnicalidades
europeias. Como se vê em Portugal.
Argumentarão alguns: mas neste contexto, esses
partidos, quando no poder, estão condenados a farsas como a das “cativações”.
Sim, mas não só. Podem também, como em Portugal, tentar minar instituições como
o Conselho de Finanças Públicas, fazer leis à medida das suas guerras contra
empresas privadas, como parece ir acontecer no caso da PT, ou tomar de assalto
fábricas, como o PCP procura na Autoeuropa. Podem ainda mais: cultivar o
clientelismo em grande escala, reduzindo a economia a uma questão de
distribuição de dinheiro pelo Estado, em vez de criação de riqueza pelos
cidadãos. Ora, tudo isto, neste momento, só é possível pelo oxigénio financeiro
do BCE (e essa é outra razão porque a actual maioria nunca renunciará à moeda
única), e pela sensação de segurança política gerada pela “Europa”.
Cavaco Silva lembrou que Portugal, depois de
quase duas décadas no Euro, não é competitivo. Tem uma carga fiscal superior à
da Espanha e à da média de todos os outros países da Europa do sul e do leste —
uma carga fiscal que, como o ex-presidente explicou muito bem, significa
retirar à sociedade recursos que o Estado não tem capacidade para valorizar.
Mas é o enquadramento europeu que, hoje, perversamente viabiliza este estado de
coisas. Ou seja: a União Europeia é fundamental, mas não basta. Porque se a
“realidade” sempre, até agora, derrotou a “ideologia”, a “ideologia” no poder
tem meios de minar e viciar a “realidade”.
Sem comentários:
Enviar um comentário