A crise catalã começou
com as habilidades à António Costa de políticos falhados. Foi assim que a
extrema-esquerda se tornou no árbitro da política catalã, e o separatismo a
agenda do governo local.
Para começar, não há um
problema entre a Catalunha e a Espanha. Há um problema de políticos falhados
que, em risco de perder o seu poder na Catalunha, onde não têm a maioria,
recorrem ao mais velho de todos os truques: uma guerra de independência contra
o governo de Madrid.
A Catalunha foi terra de
repressão no tempo de Franco. Mas foi também uma das maiores beneficiárias da
unidade de Espanha, que a brindou com um grande mercado protegido para as suas
indústrias. Em democracia, os partidos catalães exerceram uma influência
desproporcionada em Madrid, onde frequentemente fizeram diferença nas maiorias
de governo. Em 1978, a Constituição refundou a Espanha como Estado de
comunidades autónomas, e deu à Catalunha um governo próprio, que pôde promover
a língua catalã e marginalizar a castelhana. Eis como a Catalunha, sempre em
Espanha, se transformou numa das regiões mais ricas da Península, com uma
identidade própria agressivamente fomentada pelas autoridades locais.
O actual problema começou
com a queda da aliança nacionalista, Convergencia i Unió, que governou a
Catalunha nos anos 80 e 90. A CiU juntava os equivalentes locais do PSD e do
CDS. Em 2003, venceu as eleições, mas os socialistas catalães, numa manobra à
António Costa, aliaram-se à esquerda separatista para tomar o governo. Por fim,
uma parte da CiU, entretanto dissolvida, decidiu dar um salto igual para se
apossar do poder, e também ela se ligou à extrema-esquerda (como se o PSD, para
voltar ao governo, propusesse uma geringonça ao BE e ao PCP). A base desta nova
aliança foi a separação de Espanha, que os socialistas catalães, comprometidos
com o partido em Madrid, não tinham podido oferecer. As habilidades à António
Costa tornaram assim a extrema-esquerda no árbitro da política catalã, e
fizeram do separatismo a agenda do governo local.
Muita gente pergunta
porque não pode acabar tudo com uma amena votação à escocesa. É não perceber o
que se passa. O referendo interessa aos separatistas, não como meio de dar voz
aos cidadãos, mas precisamente porque, segundo a Constituição (aprovada por
mais de 90% dos votantes da Catalunha em 1978), o referendo é ilegal. Os
separatistas suspeitam que, numa população de origens variadas, lhes falte a
maioria. Por isso, o objectivo não é contar votos, mas criar uma situação de
confronto na rua, em que o Estado seja obrigado, ou a ceder, perdendo a
autoridade, ou a recorrer à força, deixando o separatismo clamar que não há
democracia. Nesta estratégia, as esquerdas revolucionárias são fundamentais,
como técnicos da luta de rua (a kale borroka, como se diz no País Basco). Este
é o maior golpe contra a democracia em Espanha desde a conspiração militar de
23 de Fevereiro de 1981.
O problema da Catalunha
não é diplomático. É político: este independentismo oportunista de políticos
fracassados está a corroer o Estado de direito, a substituir o debate pela
intimidação, o compromisso pelo ódio, os procedimentos regulares pelo golpismo,
o voto pela rua, a lei pelo arbítrio. Talvez os governantes de Barcelona
imaginem que controlam o processo. Mas esta é a hora de todos os aventureiros,
a começar pelas esquerdas revolucionárias. Ainda não são o governo, mas o
governo, embora dirigido pelos conservadores e liberais da ex-CiU, dependerá
cada vez mais dos métodos e das organizações da extrema-esquerda, à medida que
se agrave a crise institucional. Foi assim que, na guerra civil de 1936-1939,
os comunistas chegaram a ter tanta influência no campo republicano. Um dia,
talvez os revolucionários possam dispensar os habilidosos da ex-CiU.
Como é que isto pode
acabar? Temos de admitir todas as possibilidades. E uma delas, é a de um
território onde o poder venha a assentar na rua e nos referendos selvagens do
chavismo — uma Venezuela na costa mediterrânica da Península. Veremos se
habilidades análogas não instalam outra na costa atlântica.
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