terça-feira, 15 de agosto de 2017

O padrinho


José António Saraiva - jornal Sol

Acusa-se Passos Coelho por ter deixado cair Salgado, dizendo-se que teria sido menos gravoso para o país aguentá-lo artificialmente. Mas aguentá-lo até quando?


Esclarecimento prévio: o título não se refere ao tipo de padrinho da máfia napolitana, mas ao ‘padrinho’ como nós, portugueses, o entendemos: bem instalado na vida, com vários afilhados que ajuda e protege (e que em troca lhe fazem serviços).
Ricardo Salgado é um padrinho à portuguesa.
Nada tenho pessoalmente contra ele, pelo contrário.
Em tempos, quando eu ainda estava no Expresso, houve um diferendo entre o jornal e o seu grupo.
Almocei então com Hélder Bataglia, alto quadro do BES, na Comenda, restaurante do CCB, e esse encontro contribuiu para derreter algum gelo.
Depois, Salgado e Balsemão encontraram-se também à mesa num almoço decisivo, e o contencioso foi ultrapassado.
Mais tarde, quando o SOL estava para nascer, Ricardo Salgado convidou-me para almoçar na sede do BES, na Av. da Liberdade, onde fui acompanhado pelo editor de economia, jornalista António Costa (não confundir com o atual primeiro-ministro), encontro este que decorreu em ambiente cordial e muito afável.
Ricardo Salgado tem uma pose institucional por excelência.
Sempre deu poucas entrevistas – e, quando as dá, não diz praticamente nada.
Usa a estratégia do silêncio, que é muito eficaz, pois nunca se sabe bem o que ele pensa (e até o que ele sabe mas não quer dizer).
Salgado sempre se resguardou.
Mesmo depois da queda do Grupo Espírito Santo, nunca abandonou a sua atitude pública de alguma sobranceria e enfado em relação aos outros mortais – e continuou a falar pouco e a dizer ainda menos.
O que se sabe acerca dele é através de outros.
Na semana passada o SOL publicou uma notícia sensacional: inúmeras reuniões da Portugal Telecom tinham lugar na sede do BES, e Salgado chamava regularmente à sua presença os líderes da PT, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro.
Ou seja: as duas figuras mais importantes da maior empresa do país iam ter com Salgado para receber ‘instruções’!
Mas estes eram apenas dois ‘afilhados’ entre muitas outras pessoas.
Para exercer o seu poder, Salgado tinha os seus ajudantes, os seus funcionários, os seus acólitos, os seus homens de mão.
Homens que recebiam instruções dele e as executavam.
Nuno Vasconcellos, por exemplo.
Vasconcellos criou a Ongoing, um grupo fantasma financiado pelo BES, que chegou a querer dominar a Impresa, de Francisco Balsemão.
Da Ongoing era sócio o espanhol Rafael Mora, personagem enigmática, e lá trabalhavam outras figuras suspeitas, como o ‘superespião’ Jorge Silva Carvalho.
O próprio primeiro-ministro José Sócrates também fazia parte do grupo que girava à volta de Ricardo Salgado.
Sócrates era um ‘protegido’ de Salgado e, em troca, fazia-lhe todas as vontades.
Funcionava como uma espécie de ‘capataz’ do banqueiro para a área política, e agia de acordo com os seus interesses.



Assim, deu ordens à CGD para chumbar a OPA da Sonae (que, a ter sucesso, poria a PT fora da influência de Salgado).
E depois, sempre na ânsia de ajudar o ‘padrinho’, Sócrates foi enterrando sucessivamente a PT, até à sua destruição final.
José Sócrates tornou-se uma peça fundamental para a estratégia de Ricardo Salgado, pois, além de ser primeiro-ministro e tomar as decisões políticas, tinha gente sua em todas as áreas: na banca (Santos Ferreira, Armando Vara, Francisco Bandeira), na imprensa (Joaquim Oliveira, do Grupo Global Notícias, que fazia tudo o que Sócrates queria, além de jornalistas como Afonso Camões, Emídio Rangel e Paulo Baldaia), na Justiça (Proença de Carvalho, Noronha do Nascimento, Pinto Monteiro), nas empresas (António Mexia, José Penedos, Joaquim Barroca, Carlos Santos Silva), na política (Pedro Silva Pereira, Vieira da Silva, João Galamba) e até no futebol (Rui Pedro Soares, Rui Mão de Ferro).
José Sócrates deu a Ricardo Salgado a ajuda política que ele nunca verdadeiramente tinha tido.
E por essa função cobrou-lhe, segundo o processo Marquês, muitos milhões de euros.
Imagino que Salgado tivesse por Sócrates um profundo desprezo.
Um primeiro-ministro que se vende por dinheiro, como pensam os investigadores, não pode suscitar a admiração de ninguém, nem daqueles que o corrompem.
Mas Sócrates também tinha ambições pessoais próprias, até para dispor de alguma autonomia.
A certa altura, era mesmo difícil dizer até onde ia o poder de Salgado e onde começava o poder pessoal de Sócrates.
O certo é que os interesses de ambos se estendiam a Angola, onde Salgado tinha muitos negócios (geridos por homens que depois o abandonaram, como Bataglia e Álvaro Sobrinho) e onde Sócrates tinha um primo que participava no circuito do dinheiro.
E estendiam-se igualmente ao Brasil, onde o BES chegou a manobrar através da Ongoing, e Sócrates tinha amizades políticas (Lula).
Quem acabou por tramar todo o esquema foi um homem chamado Pedro Passos Coelho.
Com as suas falinhas mansas, começou por derrotar José Sócrates nas urnas e depois negou a Ricardo Salgado o apoio que este solicitou encarecidamente.
Acusa-se Passos Coelho por ter deixado cair Salgado, dizendo-se que teria sido menos gravoso para o país aguentá-lo artificialmente.
Mas aguentá-lo até quando?
Por tempo indefinido?
O Grupo GES estava todo minado, mais cedo ou mais tarde ruiria, e transformar-se-ia num poço sem fundo para o Estado e os contribuintes.
E além disso estava mergulhado em fraudes.
Como esconder tudo isso?
O tempo que chegou ao fim com as quedas quase simultâneas de Ricardo Salgado e José Sócrates foi um período muito triste da nossa história, que alguns teimaram em não perceber em toda a sua plenitude.
Portugal esteve mesmo à beira do abismo. Felizmente, arrepiou caminho.

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