É
difícil, por estes dias, não pensar o pior de António Costa. A razão do
fenómeno está no próprio Costa, nos limites, agora postos à vista de toda a gente,
da sua percepção das coisas como estadista.
É
difícil, por estes dias, não pensar o pior de António Costa. Era sem dúvida
possível, e do meu ponto de vista sensato, pensar mal da sua visão política
antes. Mas as razões para isso, por fortes que fossem, encontravam-se ainda
ligadas por inteiro justamente à política no sentido banal e corrente da
palavra. Podia-se discutir a forma como chegou ao poder, aliando-se a partidos
cujo programa político implica a concepção da democracia parlamentar como algo
de provisório a ser superado por formas mais elevadas de organização política.
Mas a ascensão ao poder deu-se inequivocamente no quadro legal. Podia-se
criticar as opções tomadas nos vários sectores da governação e julgá-as
ruinosas. Mas tais críticas eram ainda críticas originadas em concepções
políticas particulares e dirigidas contra outras concepções políticas. Podia-se
julgar que a tão falada “paz social” tinha sido obtida através de negociações
com os parceiros políticos, nomeadamente o PCP, em benefício das clientelas
políticas destes, e que era inteiramente artificial e, dadas as suas
consequências, danosa para o país. Mas, que se saiba, a Constituição não proíbe
estes arranjos. Podia-se julgar isto e muito mais. Tudo mudou.
No
final dos anos cinquenta, Jack Arnold realizou um dos mais maravilhosos filmes
de ficção científica de todos os tempos, The Incredible Shrinking Man. Conta a
história de um homem que, num passeio de barco, é envolto por uma estranha
nuvem que depois desaparece. A pouco e pouco, Scott (é o nome do homem) começa
a minguar a olhos vistos. O filme relata o progresso da diminuição do seu corpo
e da mudança de percepção das coisas do mundo que essa diminuição acarreta.
Quase no fim, a cena do encontro do seu corpo minúsculo com um gato é
particularmente memorável. Em momento algum do filme o cómico, que aparece aqui
e ali, silencia o que há de verdadeiramente angustiante no destino do
personagem. E essa angústia prende-se em primeiro lugar com a alteração
constante da percepção do mundo que o rodeia.
A
ouvir Costa por estes dias, lembrei-me do filme de Jack Arnold. Como no filme,
Costa tem minguado a olhos vistos. A razão do fenómeno não é qualquer nuvem
misteriosa, mas sim os fogos que mataram pelo menos 64 pessoas em Pedrógão
Grande e que se arriscam a matar mais, nos tempos que vêm, por esse país fora.
Ou melhor: a razão do fenómeno está no próprio Costa, nos limites, subitamente
postos à vista de toda a gente, da sua percepção das coisas como estadista. Ou
ainda: da absoluta ausência da dimensão de estadista que ele exibiu de forma
concludente.
Não
me estou a referir ao rol de decisões passadas de Costa, algumas bem recentes,
relevantes para o criminoso caos presente. José Manuel Fernandes elencou
algumas ontem, num seu artigo neste jornal (“Se isto é um
primeiro-ministro”).
Aquilo de que falo tem mais a ver com o que, também no Observador, Rui Ramos
escreveu terça-feira (“A ignorância de
Estado”),
e que sugere uma total incapacidade de Costa para assegurar o bem público. Face
a uma catástrofe, tudo aquilo de que Costa é capaz é de recorrer a toda a
espécie de malabarismos que lhe granjearam a dúbia fama de político
excepcionalmente habilidoso. Só que, confrontado com uma realidade não moldável
aos exercícios circenses a que nos habituou e que tanta admiração provocam nos
aficionados da política, a tal habilidade revelou-se aquilo que na sua essência
radicalmente é: um puro jogo destinado a preservar o poder sem qualquer
princípio que respeite verdadeiramente ao bem público. Quer dizer: uma coisa
oca produzida pelo vazio.
António
Costa minguou aos olhos de todos – e minguou também aos seus próprios olhos,
por mais que tente disfarçar este aspecto das coisas. A sua percepção da
realidade tenta adaptar-se em vão àquilo para o qual se encontra radicalmente
impreparado, já que a situação exige uma concepção da política muito diferente
daquela que é a sua, restrita à sabedoria mundana de todos os truques e
truquezinhos conducentes à ascensão ao poder e à sua manutenção.
E ele
percebeu patentemente isso. A inacreditável brutalidade que, depois das
piedades da praxe, mostrou na reacção à catástrofe, como se tudo não passasse
de um detalhe burocrático, é sinal disso, sinal só aparentemente paradoxal
dessa debilidade descoberta. O repetido “já está tudo esclarecido”. O
rocambolesco episódio do “segredo de justiça” relativamente ao número e à
identidade dos mortos. A denúncia de um aproveitamento político “absolutamente
lamentável” por parte da oposição, que (a linguagem, logo retomada por Pedro
Nuno Santos, é eminentemente significativa) faz “acusações parvas”. “Parvas”
(Pedro Nuno Santos acrescentou “tontas”)? É linguagem que, no contexto, se use?
E a oposição não está ali para, bem ou mal, criticar o governo quando julga que
este merece críticas? Não era isso que o PS (e o Bloco e o PC) dantes fazia?
“Parvas”? Vejam o nível da coisa e o que revela sobre aquelas cabeças. A
criação da “lei da rolha”, em que, a partir de Carnaxide, a comandante Patrícia
Gaspar, da Autoridade Nacional da Protecção Civil, se especializou a, com o
beneplácito de Costa, transmitir informações desmentidas por aquilo que se
passa no terreno. Tudo isso são maneiras desesperadas de lidar com a situação
que visam trazer os problemas para o reino das aparências, o único que ele
conhece e em que se sente bem. Mas ele sabe que já não é possível, que a coisa
passou para uma escala onde esses artifícios são vãos.
A
incapacidade de adaptar os seus hábitos de percepção à realidade leva Costa a
produzir declarações espantosas e, no limite, obscenas. No outro dia, facto não
suficientemente notado, afirmou que (cito de cor, mas não falho a ideia) a dimensão
da tragédia não se mede pelo número de vítimas. Como? A dimensão da tragédia
não se mede pelo número de vítimas? Percebe-se bem, é verdade, onde queria
chegar. Em pânico pela discussão criada pela descoberta de uma 65ª vítima
revelada pelo Expresso (há quem diga que haverá mais), Costa decidiu proclamar
o seu grande humanismo: a perda de uma só vítima é já uma tragédia inteira. É
muito bonito falar assim, mas é voluntariamente esquecer, ou pretender ocultar,
que o número de vítimas tende com quase certeza inteira a acentuar a
responsabilidade humana (e a responsabilidade política de Costa) em toda esta
história e que a totalidade do número de vítimas acrescenta, se possível, uma
dimensão ainda mais grave a cada tragédia individual. Não dou exemplos da
falácia do argumento de Costa porque o seu número é legião.
Não
tenho a mínima dúvida que Costa tem plena consciência que a sua reacção a toda
a catástrofe dos fogos provou a sua incapacidade como homem de Estado para
defender o bem público. E não serão a presumível escalada da sua agressividade
verbal ou o aumento das sortidas tentativas de criar uma aparência
incoincidente com a realidade que me farão pensar o contrário. Ele sabe. Sabe
que minguou. O cinto protector do PS e do PC e do Bloco (Catarina Martins não
resistiu a invocar o “aquecimento global”, um argumento espúrio e estapafúrdio)
não lhe vão adormecer a consciência. Ele sabe. Tirará daí alguma consequência?
Perceberá que a sua minguada percepção da realidade o torna inconveniente para
o cargo que ocupa? Claro que não.
António
Costa é um homem perigoso. Mesmo muito perigoso.
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