domingo, 18 de junho de 2017

Onde se meteu a “correcção política”


Vasco Pulido Valente - OBSERVADOR

Espicaçado por um artigo encomiástico de António Lobo Antunes na última Visão resolvi ler a tradução da Bíblia de Frederico Lourenço. A Bíblia dos Capuchinhos não é uma obra-prima e Portugal precisava de uma versão de confiança numa língua impecável e legível. Bem sei que os portugueses não lêem a Bíblia nem sentem a necessidade de lê-la. A ignorância dos católicos sobre a sua própria fé chega a ser inacreditável. Os políticos citam frases do Novo Testamento, declarando que são ditados populares. Escritores a quem se presumia um módico de educação atribuem descrições, episódios e parábolas a outros escritores ou à sua própria fantasia. E quase ninguém reconhece uma citação directa dos Evangelhos. Dirão que isto é normal num país católico e que de qualquer maneira não tem grande importância. Para quem acha que tem, a tradução de Frederico Lourenço (directamente do grego) veio dar uma grande ajuda à pequena parte dos indígenas que ainda conservam alguma coisa dentro da cabeça.
Dito isto a tradução não me entusiasmou. Admito que Lourenço é um grande gramático, como ele nas notas de pé de página abundantemente prova. Reconheço também que a ideia de tornar os números dos versículos quase imperceptíveis faz reviver a pontuação natural e torna a leitura mais fácil e fluente. Em contrapartida, a estrita adesão aos tempos verbais gregos (segundo me pareceu, porque não tenho autoridade para decidir sobre isso) não permite que o português tome o tom solene e, às vezes, majestático que devia tomar. Lendo Frederico Lourenço nunca se perde a noção de que se está a ler Frederico Lourenço e não Marcos, Lucas ou Mateus. Seria injusto que nesta hora e data alguém lhe pedisse para escrever a Bíblia do Rei James. Mas com certeza que há sucedâneos com mais nobreza do que este.
Sobre isso, para mim, a parte imperdoável desta Bíblia é a tradução de “Filho do Homem” por “Filho da Humanidade”. O próprio Frederico Lourenço confessa que não tem uma justificação estritamente gramatical. Só que a justificação que ele dá e que acha “a mais relevante” não faz sentido algum. É ela a seguinte: não se pode chamar, “em português” (?), a Jesus “Filho do Homem”, porque Jesus, de acordo com o Novo Testamento, “não é filho de nenhum homem: é filho de Deus e de um ser humano, Maria”. Fora que o argumento é absurdo porque a designação “Filho do Homem” se destina precisamente a lembrar a presença simultânea naquela pessoa do divino e do humano. “Filho da Humanidade”, como Frederico Lourenço sabe muito bem, rompe com uma tradição milenar e automaticamente evoca a linguagem anticlerical do século XIX. Pior do que isso, contribui para obscurecer o entendimento da Bíblia, com a sua ressonância das profecias de Daniel, que anunciavam a vinda do “Filho do Homem” e, através dele, uma refundação do Templo e do judaísmo. E que, apesar de apócrifas, eram verdadeiras para toda a gente no século I. Finalmente, Jesus disse com toda a clareza que só vinha para as “ovelhas tresmalhadas” da casa de Israel; e considerava os gentios, ou seja, quase a humanidade inteira, “porcos” (daí as pérolas a porcos) e “cães”. Sim, “cães”.
Porquê então desceu Frederico Lourenço a esta trapalhada? Pelo que havia de ser? Por causa da “sensibilidade de género”, que de resto se manifesta pela tradução inteira: onde aparece “homem”, se possível Lourenço escreve “ser humano”, enquanto as mulheres são sempre mulheres. Esta conformidade estúpida ao “politicamente correcto” data e deforma a tradução, além de a tornar inútil para qualquer construção teológica.
Falta dizer que na sombra pesa o movimento a favor do sacerdócio das mulheres. Tão pesado que até Frederico Lourenço, no recato de uma nota de pé de página, tem de meter na ordem o nosso conhecido Frei Bento Domingues, que pretendeu fazer passar por apóstolos umas servas de Jesus.

Onde se foi meter a “correcção política”?

P.S.: Frederico Lourenço não discute a sério a datação dos Evangelhos e aceita a sequência tradicional: Mateus, Marcos, Lucas e João. Por mim continuo a preferir a prioridade de Marcos, porque o anti-judaísmo (não confundir com anti-semitismo) perceptível em Mateus e agressivo em Lucas os liga a uma época relativamente tardia da expansão do cristianismo helénico; e pelo menos Lucas escreveu depois da destruição de Jerusalém no ano 70. João é um caso mais complicado

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