Espicaçado
por um artigo encomiástico de António Lobo Antunes na última Visão resolvi ler
a tradução da Bíblia de Frederico Lourenço. A Bíblia dos Capuchinhos não é uma
obra-prima e Portugal precisava de uma versão de confiança numa língua
impecável e legível. Bem sei que os portugueses não lêem a Bíblia nem sentem a
necessidade de lê-la. A ignorância dos católicos sobre a sua própria fé chega a
ser inacreditável. Os políticos citam frases do Novo Testamento, declarando que
são ditados populares. Escritores a quem se presumia um módico de educação
atribuem descrições, episódios e parábolas a outros escritores ou à sua própria
fantasia. E quase ninguém reconhece uma citação directa dos Evangelhos. Dirão
que isto é normal num país católico e que de qualquer maneira não tem grande
importância. Para quem acha que tem, a tradução de Frederico Lourenço (directamente
do grego) veio dar uma grande ajuda à pequena parte dos indígenas que ainda
conservam alguma coisa dentro da cabeça.
Dito
isto a tradução não me entusiasmou. Admito que Lourenço é um grande gramático,
como ele nas notas de pé de página abundantemente prova. Reconheço também que a
ideia de tornar os números dos versículos quase imperceptíveis faz reviver a
pontuação natural e torna a leitura mais fácil e fluente. Em contrapartida, a
estrita adesão aos tempos verbais gregos (segundo me pareceu, porque não tenho
autoridade para decidir sobre isso) não permite que o português tome o tom
solene e, às vezes, majestático que devia tomar. Lendo Frederico Lourenço nunca
se perde a noção de que se está a ler Frederico Lourenço e não Marcos, Lucas ou
Mateus. Seria injusto que nesta hora e data alguém lhe pedisse para escrever a
Bíblia do Rei James. Mas com certeza que há sucedâneos com mais nobreza do que
este.
Sobre
isso, para mim, a parte imperdoável desta Bíblia é a tradução de “Filho do
Homem” por “Filho da Humanidade”. O próprio Frederico Lourenço confessa que não
tem uma justificação estritamente gramatical. Só que a justificação que ele dá
e que acha “a mais relevante” não faz sentido algum. É ela a seguinte: não se
pode chamar, “em português” (?), a Jesus “Filho do Homem”, porque Jesus, de
acordo com o Novo Testamento, “não é filho de nenhum homem: é filho de Deus e
de um ser humano, Maria”. Fora que o argumento é absurdo porque a designação
“Filho do Homem” se destina precisamente a lembrar a presença simultânea
naquela pessoa do divino e do humano. “Filho da Humanidade”, como Frederico
Lourenço sabe muito bem, rompe com uma tradição milenar e automaticamente evoca
a linguagem anticlerical do século XIX. Pior do que isso, contribui para
obscurecer o entendimento da Bíblia, com a sua ressonância das profecias de
Daniel, que anunciavam a vinda do “Filho do Homem” e, através dele, uma
refundação do Templo e do judaísmo. E que, apesar de apócrifas, eram
verdadeiras para toda a gente no século I. Finalmente, Jesus disse com toda a
clareza que só vinha para as “ovelhas tresmalhadas” da casa de Israel; e
considerava os gentios, ou seja, quase a humanidade inteira, “porcos” (daí as
pérolas a porcos) e “cães”. Sim, “cães”.
Porquê
então desceu Frederico Lourenço a esta trapalhada? Pelo que havia de ser? Por
causa da “sensibilidade de género”, que de resto se manifesta pela tradução
inteira: onde aparece “homem”, se possível Lourenço escreve “ser humano”,
enquanto as mulheres são sempre mulheres. Esta conformidade estúpida ao
“politicamente correcto” data e deforma a tradução, além de a tornar inútil
para qualquer construção teológica.
Falta
dizer que na sombra pesa o movimento a favor do sacerdócio das mulheres. Tão
pesado que até Frederico Lourenço, no recato de uma nota de pé de página, tem
de meter na ordem o nosso conhecido Frei Bento Domingues, que pretendeu fazer
passar por apóstolos umas servas de Jesus.
Onde
se foi meter a “correcção política”?
P.S.:
Frederico Lourenço não discute a sério a datação dos Evangelhos e aceita a
sequência tradicional: Mateus, Marcos, Lucas e João. Por mim continuo a
preferir a prioridade de Marcos, porque o anti-judaísmo (não confundir com
anti-semitismo) perceptível em Mateus e agressivo em Lucas os liga a uma época
relativamente tardia da expansão do cristianismo helénico; e pelo menos Lucas
escreveu depois da destruição de Jerusalém no ano 70. João é um caso mais
complicado
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