José Eduardo Agualusa é o vencedor do International DUBLIN Literary Award
O
romance Teoria Geral do Esquecimento valeu ao escritor angolano o
maior prémio literário para uma obra de ficção publicada em inglês.
“É uma alegria grande”, diz
José Eduardo Agualusa ao PÚBLICO, a partir de Dublin, pouco depois de ser
conhecida a notícia de que é o primeiro autor de língua portuguesa a vencer um
dos mais prestigiados prémios literários mundiais, o International DUBLIN
Literary Award, atribuído à edição em inglês do romance Teoria Geral do
Esquecimento (D. Quixote, 2012). "Uma alegria por haver muito bons livros
em competição, porque a atribuição é decidida pelas bibliotecas públicas, o que
me parece excelente, e porque é uma forma de dar visibilidade a culturas
periféricas, já que as obras escolhidas não têm de ser escritas originalmente
em língua inglesa, apenas publicadas em inglês”, concretizou o escritor. Clique
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José Eduardo Agualusa: “Há pessoas em Angola que
tomaram o gosto pela crueldade”
O escritor angolano diz que o regime de Eduardo
dos Santos acaba quando terminar o dinheiro. E o dinheiro está a acabar.
Os orixás, segundo reza Agualusa, não
são bons nem maus. Podem fazer, à vez, o mal e o bem. Em Angola, as pessoas
podem ter desejado o bem, mas muito mal foi feito. O último livro de José
Eduardo Agualusa, “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, é um ajuste de
contas com a realidade e uma tentativa de os sonhos derrubarem os pesadelos.
Um dos
personagens principais do seu livro, uma espécie de Luaty de saias, diz, a
certa altura, qualquer coisa assim: “Durante muito tempo pensei que todos os
angolanos viviam em condomínios fechados, depois pensei que bebiam cervejas com
os amigos e diziam mal de tudo, e não ligavam ao dinheiro, porque o tinham, e a
certa altura descobri os outros 90% dos angolanos que ligavam muito ao dinheiro
porque não o tinham.” Qual dessas três Angolas o escritor e cidadão Agualusa
conhece melhor: os ricos, os intelectuais ou os pobres?
Eu sou mais
velho que a personagem do livro, já tinha 15 e 16 anos durante a independência.
Eu assisti ao nascimento dos condomínios. Atravessei tudo isso. Vi de tudo.
Esta nova geração, mais da minha filha que do meu filho, é que pode viver
dentro das paredes de um condomínio e acreditar que Angola é isso. Eu não tive
essa experiência: vi-os nascer e sei que eles apareceram nos últimos 15, 20
anos. Eu não me posso enquadrar aí, porque vivi as diferentes realidades de Angola.
Tanto essa
rapariga do teu livro como Luaty Beirão estão na elite angolana, naqueles que
meteram a mão na massa da repressão em 27 de maio de 77 e que agora têm a mão
cheia de massa. Como se pode tomar consciência nesse meio?
Há diferenças
entre a minha personagem e o Luaty. No caso da minha personagem, ela vem de
família ligadas ao poder, mas estas famílias não têm participação direta na
repressão. Além disso, o Luaty é meu amigo, mas não conheço toda a família
dele. Vou falar da minha personagem, porque essa eu conheço melhor.
Eu estava a
falar do Luaty porque, num artigo que escreveu sobre ele no “Expresso”, dizia
que tanto o pai como o tio eram da polícia política angolana e tinham estado
muito envolvidos na repressão de maio de 77.
Mas não
conheço a mãe dele. No caso do meu personagem, um dos progenitores é um
jornalista, de uma classe muito diferente da mãe. Representa um conjunto de
pessoas em Angola que fica um bocadinho em cima do muro: às vezes tomam uma
posição, outras vezes preferem não tomar posição. Há várias maneiras e vários
percursos. Alguns dos jovens que nascem nos condomínios, nessas condições
protegidas, não tomam nunca consciência da situação do país porque ficam
limitados àquelas paredes, têm um círculo de amigos que não saem daí. Outros
tomam porque têm essa curiosidade pelo resto do país. No caso do Luaty, por
razões artísticas. Fazia um tipo de música de protesto que implicava a
saída dele fisicamente para outros ambientes de Angola. E isso existe e
acontece. Há até quem se interesse por esse tipo de música, conheça outras
realidades e, depois, não dê o passo seguinte de contestação. No caso da minha
personagem, ela dá esse passo de revolta. O grupo do Luaty surge no início dos
processos da Primavera Árabe, já lá vão uns anos, e coincide comigo a escrever
este livro.
O livro tem
como razão de ser esse processo que envolveu aquele grupo de jovens angolanos
em que estava Luaty Beirão?
Comecei a
escrever motivado por aquilo que estava a passar-se em Angola, na sequência da
Primavera Árabe. E, evidentemente, ainda mais depois da prisão dos jovens, que
foi uma coisa que eu acompanhei de perto e na qual me envolvi pessoalmente.
Esta prisão dá origem a um movimento espontâneo de contestação. E esse
movimento é extraordinário, alarga-se muito e consegue contaminar muitos
setores da sociedade angolana. Muitos dos jovens que dão o rosto – artistas,
etc. – são jovens que pertencem a esses círculos perto do poder.
No seu livro
resolve a coisa com uma espécie de onda humana de “V de Vingança” em que toda a
gente participa. Mas o drama dos movimentos de contestação em Angola não é que
estão mais envolvidos os filhos dos ricos que a população em geral, que tenta
sobreviver?
Não é o caso
dos jovens que foram presos. A maioria são pessoas de origem muito humilde. Mas
é verdade que, a uma escala maior, se pensarmos em movimentos revolucionários
em todo o mundo, normalmente são os filhos dessas classes que se revoltam,
desde o Che Guevara até ao Fidel Castro. Mesmo em Angola, a maioria das pessoas
que começaram o processo nacionalista vinham de uma classe média.
Provavelmente,
isso é mais verdade no chamado Terceiro Mundo que no Primeiro, onde existem
movimentos oriundos do movimento operário. Em Portugal, muitos dirigentes
anarquistas e comunistas são operários, como Bento Gonçalves.
Não conheço
tão bem. Mas o PS está cheio de aristocratas, desde o Manuel Alegre. Mas em
todo o mundo há muitos filhos das classes opressoras que se passam para o outro
lado quando são jovens.
Não acha que
há uma situação em que as pessoas, mais do que conseguirem protestar, apenas se
preocupam com a sua sobrevivência?
Isso acontece
sobretudo com as pessoas mais velhas. O que o movimento que se seguiu à prisão
dos jovens gerou foi uma maior participação da juventude ou, se quisermos, uma
não participação das gerações anteriores. Quem dá o rosto naquele movimento de
resistência são quase só jovens. Por exemplo, não conseguimos depoimentos de
pessoas das gerações anteriores nos vídeos que fizemos.
De alguma
maneira coloca isso no livro quando o pai, reagindo a comentários na rua sobre
a prisão da filha, diz que os jovens não sabem esperar e que o país esteve em
guerra até há pouco tempo.
Era uma
desculpa muito usada: “Esses miúdos não sabem o que é a guerra e estão a
acender a fogueira outra vez.”
E não é um
argumento verdadeiro?
Não me
parece, porque em momento nenhum houve a possibilidade e nem sequer houve a
intenção, por parte dos jovens, de aceder a armas. Não havia nenhuma intenção,
nem possibilidade, de desencadear uma guerra. Acho que foi sempre um espantalho
agitado pelo regime.
Mas olhando
para a Síria, também não havia armas na oposição, e depois da repressão
violenta às manifestações seguiu-se a guerra civil.
Mas isso
aconteceu sobretudo porque esses regimes não perceberam o que estava a
acontecer, e o Kadhafi, que teve tempo mais do que suficiente para isso: fazer
uma transição pacífica para a democracia. Marrocos deu esses passos, percebeu o
que estava a acontecer e abriu o regime. Kadhafi não percebeu e foi morto na
rua. Desde o início, nos protestos nos países árabes e em vários locais de
África – não foi só Angola –, os jovens que protestavam garantiram sempre que
queriam fazer protestos pacíficos. Deram corpo ao manifesto e apanharam
pancada. Apanharam de forma extremamente violenta. O regime criou milícias que
avançavam sobre os manifestantes com paus e ferros. Havia milícias armadas pelo
regime. Do lado dos manifestantes não houve sequer a intenção de utilizar a
violência, pelo contrário, eram sempre manifestações pacíficas.
Em muitos dos
seus romances em que trata a realidade angolana, fala desse processo de
sucessiva corrupção das pessoas. O que é curioso é que as coloca mais cruéis
quando acreditam numa ideia do que quando deixam de acreditar e é só roubar,
porquê?
É uma visão
interessante. O meu personagem mais interessante, que é o Monte, um agente da
segurança do Estado, atravessa quatro ou cinco romances, ele passa por essas
fases. Eu conheci pessoas assim, que participaram na repressão de uma forma
muito intensa e que depois se desiludiram. Sentiram-se abandonadas, era quase
órfãos porque, de repente, estão numa situação em que os seus patrões, que lhes
davam ordens, mudaram de campo: passaram do campo socialista para o capitalista
sem nenhum problema. Tudo aquilo que eles tinham feito, morto e torturado, em
nome de um ideal socialista, tinha deixado de ter sentido. De repente, os
dirigentes tinham-se convertido ao capitalismo e todo aquele sangue tinha sido
para nada. Essas pessoas sentem, algumas delas são muito atormentadas. Outras
não. Outras também mudaram de lado com os patrões. Mais uma vez há aqui
diferentes situações, há pessoas que se habituaram à violência e tomaram o
gosto pela crueldade.
Isso é por a
guerra ter durado muito tempo?
Não foi só a
guerra, o que destruiu o país foi muito mais que isso.
Digo isso
porque coloca num homem que foi da UNITA um pensamento em que ele diz:
começamos a matar, porque estamos a combater o comunismo, e a certa altura
estamos a matar porque gostamos de matar.
O problema é
esse. Mais do que isso, depois da guerra, é o próprio regime. Esse desprezo
pela vida que se generalizou, essa negação do outro. É uma coisa que passou a
caracterizar a vida em Angola, essa incapacidade de aceitar o outro, esse culto
do inimigo em que não se procura nunca uma aproximação e um diálogo.
Havia um rio
alternativo a esse ou era inevitável chegar-se a essa situação?
Claro que
havia. Mesmo no partido no poder havia outras correntes. O MPLA não foi sempre
assim. E os primeiros dirigentes do MPLA, o Joaquim Pinto de Andrade, o Gentil
Viana e muitos outros, que eu conheci bem, eram pessoas de uma grande
generosidade. Mas essas pessoas foram logo afastadas, mesmo antes da independência.
Nos últimos dias têm-se falado muito do 27 de Maio de 1977, mas as matanças
começaram antes. Agostinho Neto começou a mandar matar ainda no tempo da
guerrilha e a afastar os seus camaradas de armas, portanto não surpreende que,
ao alcançar a independência, isso continuasse.
Apesar disso,
no comício a favor dos jovens presos que descreve no livro há gente que declama
poemas de Agostinho Neto. Não é contraditório?
Há várias
razões para isso. Primeiro, ainda há muita gente que não percebeu a real participação
de Agostinho Neto, sobretudo no processo do 27 de Maio. Em Angola cada vez se
fala mais, é difícil ficar de fora a ignorar. Mas ainda há um culto a Agostinho
Neto, é um culto extenso e alargado. Apesar de contestarem o regime, as pessoas
tentaram salvar Agostinho Neto. Ainda há pessoas que dizem “o Agostinho Neto
teve estas responsabilidades, mas eu gosto da poesia dele”.
Não se pode
também ver isso de um outro prisma: a personalidade de Agostinho Neto é
multifacetada, tem momentos bons e outros como o 27 de Maio?
Com certeza.
Nada no mundo é a preto e branco. As pessoas não são totalmente boas nem
totalmente más. Essa ideia absoluta é muito ocidental. Quem cresce com o
candomblé sabe que os orixás não são bons nem maus. São forças que têm os dois lados,
podem ir para o bom e podem ir para o mau. Aqui, no Ocidente, as pessoas têm
muito essa ideia: é-se bom ou mau. E não é verdade, as pessoas são ao mesmo
tempo boas e más.
E sente-se
ocidental ou africano?
Sou muito
mais africano nessas coisas. Até porque, enquanto escritor, o meu papel é
sempre tentar compreender o outro e entrar na sua pele. É uma das coisas boas
que a literatura tem. Por isso é que acredito que a literatura melhora as
pessoas. Acredito piamente que ler romances e ficções torna as pessoas
melhores, porque as obriga a serem o outro. Pelo menos durante um certo tempo,
enquanto leem um livro, são um outro e colocam-se na pele de um
outro.
Por acaso li
um trabalho interessante sobre a biblioteca de Estaline, creio que num livro
sobre a sua vida privada, que desmente a sua tese ou desmente que ele fosse má
pessoa. Estaline lia compulsivamente e lia também muitos romances.
Lia romances?
Por acaso, isso é um assunto que me interessa, e vi que o Hitler tinha uma
enorme biblioteca, mas não lia quase romances. Lia apenas livros de História.
E, como
reafirma no seu livro, era vegetariano. O Estaline comia carne e lia ficção.
Salvou, por exemplo, Bulgakov, autor de “Margarida e o Mestre”, de uma das
inumeráveis purgas do seu poder.
Lia ficção?
Curioso. Mas acho, do meu ponto de vista, que é mais uma exceção que uma regra.
Acho que os ditadores não leem romances.
A sua tese é
que quem lê ficção é obrigado a colocar-se no lugar do outro; logo, é mais
difícil fazê-lo sofrer [algo que negaria a letra do “Fado Tropical”: “Sabe, no
fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa
dosagem de lirismo ( além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos
estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e
sinceramente chora...” (acrescento na transcrição)]?
Exatamente.
No geral, as pessoas que leem mais ficção têm mais empatia.
Mas
aparentemente só resulta na ficção. Havia guardas de campo de concentração que
tocavam em casa, quartetos de cordas e piano de música clássica, antes de
pegarem ao serviço.
São coisas
diferentes. O Hitler não era inculto. Ele lia bastante, tinha uma boa
biblioteca. Não lia era ficção. Isto é uma convicção minha, não tenho a certeza
de nada, mas parece-me ser confirmado pela realidade.
Disse-me que
em 1975 tinha 15 anos e que viveu intensamente a independência. Em alguma
parte do processo está ao lado do MPLA?
Do MPLA, não.
A maior parte dos meus amigos eram da extrema-esquerda e foram pessoas que
foram presas. O Orlando Sérgio foi preso com 16 anos, conheço pessoas que foram
presas com 15 anos.
Nasceu no
Huambo, vivia numa região maioritariamente da UNITA. Como via nesse
processo histórico o MPLA e a UNITA, como dois movimentos gémeos ou um pior que
o outro?
Na origem,
não são movimentos iguais. São muito diferentes do ponto de vista cultural. A
UNITA representa um certo pensamento rural, pouco urbano. É formada por pessoas
de origem camponesa, criadas e educadas em missões protestantes. É essa a base
cultural da UNITA. E o MPLA é claramente um movimento urbano, formado por
intelectuais com uma grande mundividência. Isso separa muito os dois
movimentos. Mas se me disser que têm em algumas circunstâncias comportamentos
iguais, é verdade. Mas também tinham muitas diferenças. Nas zonas da UNITA, que
eu visitei durante a guerra como jornalista, não havia nem sombra de
democracia. Eu preferia ter sido governado pelo José Eduardo dos Santos do que
pelo Savimbi. Não tenho a menor dúvida a esse respeito. Não acho que Savimbi tivesse
dado melhor presidente que José Eduardo dos Santos.
A maior parte
da população pensou o mesmo, até porque Eduardo dos Santos ganhou as eleições a
Savimbi.
Não ganhou.
Não houve segunda volta.
Mas na
primeira volta ganhou.
Toda a gente
sabe que ganhou a primeira volta. Mas não houve segunda volta e, por isso, não
se sabe se teria ganho as eleições ou não. Não se sabe porque começou a guerra
e os dois lados têm responsabilidades. José Eduardo dos Santos nunca ganhou
eleições nenhumas.
No seu livro
diz que basta as pessoas sonharem com isso e acreditarem que José Eduardo dos
Santos cai, porque está completamente isolado. Isso não é colocar os desejos à
frente da realidade e uma espécie de pensamento mágico?
Às vezes, não
é assim. Zé Eduardo dos Santos não tem apoio real. Ninguém segue Zé Eduardo dos
Santos por razões ideológicas. Ninguém o segue pelo carisma. Ninguém segue por
amizade, não tem amigos. Quase não sai do palácio. Então porque o seguem? Por
dinheiro?
Isso,
atualmente, é uma excelente base para seguirem alguém neste mundo.
Fora disso,
não existe nada. Se isso desaparecer, nada o aguenta. E está a desaparecer. O
dinheiro é escasso. Por isso está-se a ver a crise política.
Há um diálogo
no seu livro em que se diz que o interesse é mais duradouro que a paixão e,
noutra parte, um homem das secretas aborda um personagem hostil ao governo
dizendo-lhe: “Onde é que pensa que arranjou dinheiro para fazer o seu negócio?”
Isso não é uma boa base de sustentação de um poder, comprar as pessoas?
Sim, é. Tem sido.
O Zé Eduardo tem conseguido isso. Recentemente, um responsável da Odebrecht
[uma das maiores construtoras do mundo, com sede no Brasil, e que foi apanhada
nas teias da Lava Jato], que está a ser julgado no Brasil, contava que tinha
recebido instruções de José Eduardo dos Santos para darem dinheiro a um certo
número de generais para os transformarem em empresários. Isto ocorreu de forma
deliberada. Mas quando o dinheiro acabar, acaba o regime.
E o dinheiro
acabou?
O dinheiro
está a acabar. É um fim de época.
O seu livro
será editado em Angola?
Ultimamente,
os meus livros não têm sido editados em Angola. Não porque ninguém impeça que
isso aconteça, mas por razões comerciais. É mais fácil importar uma série de
livros de Portugal do que estar a editá-los.
Pode dizer-se
que em alguns círculos é uma pessoa relativamente odiada em Angola?
Depende. Nos
círculos do poder, certamente. Mas volto a insistir, tenho livros editados em
Angola, tenho editora angolana. Não há nenhuma dificuldade para me lerem lá.
Isso acontece comigo e com outros. Saiu recentemente em Angola um livro com os
perfis dos vários assassinos do 27 de Maio de 1977, e alguns deles estão no
poder. A esse nível, não há problemas.
Aquilo a que
chama uma ditadura é então pouco ditadura em alguns aspetos?
É uma
ditadura muito especial. Este regime nunca se preocupou muito com os livros
porque sabe que os livros chegam a poucas pessoas. Há é uma preocupação com as
entrevistas e colunas de opinião. Eu fazia uma coluna num jornal angolano e
alguém do regime comprou o jornal e afastou os cronistas incómodos.
Há jornais,
com pequena circulação, que dizem do governo o que Maomé não dizia do toucinho
e coisas que, em Portugal, poderiam levar os jornais a ser processados.
Mas têm, como
diz, pouca circulação. Mais uma vez, o regime não se preocupa com o que chega a
poucas pessoas. Devo dizer, aliás, que a única vez que tive problemas com a
liberdade de expressão foi em Portugal, e não em Angola.
Porquê?
Publiquei um
texto numa revista da TAP, a convite deles, que se chama “O dia em que
prenderam o Pai Natal”, é o meu conto mais traduzido. Uma senhora que já lá não
está pediu-me o texto. E foi esta mesma pessoa que me contou, incomodadíssima,
que o meu texto tinha sido vetado pela direção da TAP com medo de incomodar
alguns passageiros angolanos. E o texto não entrou. Não aconteceria em Angola.
Portugal sempre foi mais papista que o papa.
Põe, aliás,
uma personagem a dizer: “Não fujam para a embaixada de Portugal.”
Exatamente.
Eu nunca pediria asilo político à embaixada portuguesa, com medo de ser
entregue à polícia política pelo embaixador.
De alguma
forma, não existe uma vergonha retroativa do colonialismo e medo de ofender?
Há é medo de
perder negócios. Isso é dito pelo próprio ministro dos Negócios Estrangeiros de
Portugal, que foi a Angola pedir desculpa pelas investigações em Portugal.
Há forças
políticas que não têm negócios, como o PCP, e têm dificuldades em condenar o
MPLA, devido a um passado comum.
Não têm? Quem é que garante que eles não têm negócios? Se não têm, ainda é
mais grave. O PCP devia ter vergonha de apoiar um regime totalitário de direita
que representa as forças mais reacionárias do grande capital em Angola.
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