Alípio morreu esta
semana e repousa agora no Alvito. Lembrá-lo não tem data, é coisa de hoje e do
futuro.
Já aqui se falara
dele, este ano, a propósito de uma homenagem e de um livro. Agora haverá outra
homenagem, em forma de concerto, mas póstuma. Alípio de Freitas morreu.
Fisicamente perdemo-lo, num final sereno, mais uma batalha por ele ganha aos
males que por desumana tirania quase sempre infligem dor.
Quem é Alípio de
Freitas? As notícias apresentaram-no como jornalista, mas isso é uma ínfima
parte do seu trabalho. Porque, como escreveu anteontem a direcção da Associação
José Afonso (de que foi um dos fundadores e à qual chegou a presidir), “entre
muitas outras coisas [ele] foi padre, fundador das Ligas Camponesas no Brasil,
militante político, cooperante em Moçambique, jornalista na Rádio Televisão
Portuguesa, professor universitário. Foi, também co-fundador da Casa do Brasil
em Lisboa, membro da Comissão Coordenadora do Tribunal Mundial sobre o Iraque
(Audiência Portuguesa), Presidente da Direcção da Associação José Afonso.”
Nascido Alípio
Cristiano de Freitas em Bragança,, no dia 17 de Fevereiro de 1929,
foi ordenado padre em 1952 e desde então manteve ligação estreita com as camadas
mais pobres. Primeiro como pároco de Guadramil e Rio de Onor, depois no Brasil,
no Maranhão, para onde foi exercer e leccionar a convite do arcebispo local.
Iniciou-se na política brasileira, participando em protestos públicos e
juntando-se às Ligas Camponesas, o que lhe valeu ser sequestrado pelo exército
durante cinquenta dias e, mais tarde, já depois do golpe militar de 1964, preso
e torturado (esses tempos recorda-os ele no livro Resistir é Preciso, com
edição brasileira da Record, em 1981, e editado em Portugal este ano pela
Âncora).
O acirrar da
ditadura levou-o a exilar-se no México e a receber treino militar em Cuba,
integrando depois movimentos guerrilheiros na América Latina e no Brasil, onde
esteve preso de 1970 a 1979, período em que José Afonso, sem o conhecer
pessoalmente, lhe dedicou uma canção que diz assim: “Baía da Guanabara/ Santa
Cruz na fortaleza/ está preso Alípio de Freitas/ Homem de grande firmeza”. A
canção, Alípio de Freitas, foi gravada em 1976 no disco Com as Minhas Tamanquinhas,
mas só anos mais tarde os dois viriam a conhecer-se. Libertado no Brasil, no
dia em que completou 50 anos, Alípio viria depois a trabalhar em Moçambique, em
projectos agrícolas, só regressando a Portugal em 1984 (três anos antes de José
Afonso morrer). Aqui foi jornalista na RTP (até 1994) e exerceu cargos em
diversas associações, algumas já mencionadas, recebendo em 1996 a condecoração
de Grande Oficial da Ordem da Liberdade da República Portuguesa.
Apesar do seu
envolvimento em guerrilhas, no reverso de violências ditatoriais, Alípio foi
sempre um humanista e o seu pensamento esteve e está (porque permanece, para lá
da sua extinção física) nos antípodas das carnificinas dos terrorismos, antigos
ou modernos. A sua firmeza, de que fala a canção, é a de um homem que acredita
que a dignidade do ser humano pode resistir à mais bárbara das provações. No
livro citado, ao descrever uma das sessões de tortura a que foi sujeito, Alípio
escreveu (pág. 33): “Senti o meu fim próximo e alegrei-me. Uma alegria calma e
serena de quem parte por vontade própria. A alegria do combatente que deixa o
campo de batalha depois de, em luta desigual, ter derrotado a soberba dos
inimigos. Assim eu partia.” Enganou-se, viveria ainda mais quase meio século.
Partiu esta semana, serenamente, e os pensamentos que em 1970 dirigiu aos
algozes poderia agora tê-los dirigido à doença.
No dia 17 há um
concerto-homenagem no Fórum Lisboa, às 21h30, com nomes como Ariel Rodriguez,
Luanda Cozetti (filha de Alípio), Filipe Raposo, Janita Salomé, Mauro
Ciavattini, Nilson Dourado, Chullage, Selma Uamusse, Vitorino ou Uxia (a Galiza
era outra paixão sua). Estava marcado e não foi desconvocado: ficará em sua
memória. Alípio morreu no dia 13 e repousa agora no Alvito, terra à qual se
dedicou e onde em vida procurou a paz. Lembrá-lo não tem data, é coisa de hoje
e do futuro.
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