A educação é cada vez
mais pautada pela doutrina da sociedade de consumo e os alunos são cada vez
mais orientados para os desejos que a orgia da publicidade fomenta.
Pelo Expresso de
22 de Outubro, fiquei a saber que está criada uma “fábrica de líderes” (sic) em
Cascais. A matéria-prima para a fabricação são 10 mil alunos de 50 escolas de
Cascais. Diz a notícia que se trata do “maior programa municipal de empreendedorismo
nas escolas” e afirma o obreiro mor, vereador Nuno Piteira Lopes, que quer
“despertar o espírito empreendedor dos mais novos, dando-lhes ferramentas para
encararem a criação de negócio próprio”. A iniciativa é da DNA Cascais,
dita pelos costumes como associação sem fins lucrativos, mas verificada, de
facto, como uma emanação da Câmara Municipal de Cascais. Com efeito, os
associados fundadores são empresas municipais e a própria câmara e os órgãos
sociais confundem-se, ora com políticos do PSD, ora com elementos da autarquia.
Tudo em casa, pois, com a municipalização da Educação a passar de fininho, sob
a égide da geringonça.
“Softkills” (é talvez um
acto falhado, mas é assim que está escrito no texto que cito) e “coaching”, são
dois instrumentos pedagógicos com que o despertador de espíritos, Piteira
Lopes, conta para catequisar 10 mil indígenas. O presidente da Câmara Municipal
de Óbidos, o primeiro que se chegou à frente logo que a municipalização deu os
primeiros passos, aquele que anunciou filosofia para os alunos do 1º ciclo do
básico, yoga para os do jardim-de-infância
e golf e eco design para os do secundário, não está mais só
em matéria de arrojo. Já só faltam 306 contributos das restantes câmaras do
país, no prometedor caminho da municipalização da Educação, para termos o
curriculum nacional transformado numa empreendedora nave de loucos.
Em matéria de parceiros,
Cascais tem um de peso: a Junior Achievement Portugal, aquela associação
que foi acusada por um grupo de mães e pais de andar a “doutrinar crianças
a ver a família como unidade de consumo e produção”.
A educação é cada vez
mais pautada pela doutrina da sociedade de consumo e os alunos são cada vez
mais orientados para os desejos que a orgia da publicidade fomenta. O nosso
sistema de ensino deixa-os sem tempo para serem crianças, porque lhes define
rotinas e obrigações segundo um modelo de adestramento que ignora as suas
necessidades vitais de crescimento. A compreensão simples do que é uma criança
é constantemente distorcida. E, digo-o com pesar, se não tivéssemos demasiados
professores a não fazerem o seu trabalho, isto é, apanhando a onda em vez de a
questionarem, deixando-se envolver por ideias neoliberais, devidamente
higienizadas por discursos modernistas, a probabilidade destes discursos
morrerem à nascença era bem maior que a possibilidade de granjearem adesões
cúmplices.
Com consciência operante
umas vezes, de modo acéfalo outras, há uma comunicação social dominante, que
usa técnicas de propaganda para formatar a opinião pública. Com peças
persuasivas, na ausência de contraditório, é ver como fraudes e agressões
passam por virtudes, trazendo consentimento para onde deveria existir
questionamento, senão rejeição.
Correndo o risco de
divergir da festa cascalense, permitam-me que complemente a peça do Expresso
com quatro notas sobre a moda do empreendedorismo: cerca de 40% dos nossos
activos são empresários em nome próprio ou labutam em empresas que têm menos de
uma dezena de trabalhadores (o que mostra que não nos falta iniciativa para criar
“negócios”); quanto mais atrasados são os países, mais elevados são os níveis
de empreendedorismo dos seus cidadãos (o auto-emprego na Noruega não chega a
10%, mas no Bangladesh pula para 75%); o grosso dos activos dos países
desenvolvidos trabalha em grandes organizações, que não em pequenos “negócios”;
concluindo, promovamos um sistema de ensino que liberte as capacidades
criadoras dos jovens (que só acrescentam valor relevante quando aproveitadas
por organizações altamente profissionais e eficazes) em vez de iludir a chaga
do desemprego com o folclore do empreendedorismo e criação do próprio
“negócio”.
* Professor do ensino
superior (s.castilho@netcabo.pt)
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