Os bem-pensantes pensavam que a
tolerância se fazia por decreto e retórica. Tiveram triste surpresa. A
brutalidade de Trump respondeu ao ressentimento acumulado da populaça. Agora,
teremos de o aturar
Terça-feira
Com o alarido de Trump, passou quase
inteiramente despercebido o livro de dois jornalistas franceses, Gérard Navet e
Fabrice de Llomme, que contam através de 100 horas de gravações directas o que
foi o mandato do Presidente da França, François Hollande (“Un président ne
devrait pas dire ça…”). O ambiente do Palácio do Eliseu era desde o primeiro
dia um ambiente de hipocrisia, de calúnia, de intriga, de mentira e de grossa
traição. Para já não falar das cenas conjugais (não estou a falar de sexo) que
Hollande conduzia em público, na maior indignidade e que envolveram zaragatas
notórias entre as sucessivas senhoras que caíram na asneira de se envolver com
ele. Nos dias normais, ministros, secretários de Estado e representantes dessa espécie
imunda que dá pelo nome de assessores, não faziam outra coisa senão tentar
liquidar o próximo pelos métodos mais torpes da cartilha. Isto não é novo. O
que é novo é que Hollande se achasse um grande chefe militar e, nessa exaltada
qualidade, não hesitasse em intervir na Líbia, no Mali, na Somália e na Síria.
Ou que desse ordens (que se cumpriram) aos serviços secretos para assassinar
uns tantos indivíduos, que ele julgava perniciosos. Tinha uma lista, como
abertamente se gabou. Mas, para portugueses, o melhor são as reuniões cúmplices
e alegres em que ele combinava jocosamente com Merkel e com Juncker falsificar
as contas do défice francês (que excedia largamente os 3 por cento) para ajudar
a pôr os pequenos países na ordem. Hollande estava convencido que prestava
assim um grande serviço à Europa. Parece que Marine Le Pen sobe nas sondagens.
Como não subiria?
Quarta-feira
Antes da revolução, a cultura dominante
transbordava de “corações sensíveis” (incluindo o de Maria Antonieta), devotos
da razão e de gente “honesta”, que não roubava ninguém e se vestia com
austeridade para se distinguir da aristocracia da Corte. A tolerância era
universal e os costumes brandos. Ninguém via como a sociedade e o mundo podiam
evoluir de outra maneira. Isto em 1789. Em 1794, esta nata de bem-pensantes,
com a sua tolerância e o seu grande amor à liberdade, estava toda no exílio ou
na guilhotina do Terror. Ninguém naquele cintilante e humano grupo percebera
que não passava de uma minoria pretensiosa, que ofendia o povo, a
pequena-burguesia, a classe média e a nobreza tradicional e conservadora.
Ninguém percebera também que a sua opinião era uma opinião, mas não era a
opinião. Ao contrário do que pensavam, em Paris como na província, a
generalidade das pessoas detestava o arzinho de superioridade daquele
“modernismo” célebre, virtuoso e geralmente de algibeiras cheias. Quando chegou
a altura não houve piedade com ele.
Trump escapou ao que escapou, não apesar
do que disse na campanha, mas por causa do que disse na campanha. A boa da
plebe andava farta de “valores” e de elevados sentimentos: só os censores do
jornalismo e da política os levavam a sério. O resto da América sofria no
campo, na “cintura da ferrugem” ou nas ruas da violência, onde, com ou sem
Obama, começava uma guerra civil larvar. No meio deste caos, apareceu um
primitivo que começou a berrar o indizível: sobre raça, sobre a igualdade de
género, sobre homossexualidade e por aí fora. Os bem-pensantes pensavam que a
tolerância se fazia por decreto e retórica. Tiveram uma triste surpresa. A
brutalidade de Trump respondeu ao ressentimento acumulado da populaça. E a
pouca política que, do lado dele, entrou na campanha foi uma exibição quase
hitleriana de ódio, de raiva e de vingança. Agora, teremos de o aturar e, pior
ainda, sem saber para onde ele na sua loucura nos levará. Descobrir uma
coerência qualquer na série de enormidades de que o homem se aliviou é
impossível. Só nos resta esperar, resignadamente, que a América se farte dele
(a baixo custo) e que por milagre nós consigamos passar entre os pingos da
chuva.
Sábado
Como é que a salvação do maior banco
português, por ser público e carregar as culpas de alguns governos já bem
mortos e quase esquecidos, criou um problema político e jurídico, que
provavelmente o vai prejudicar e, com ele, todo o sistema financeiro? Para mim
o mistério desta história toda está em que não há um único culpado para o
imbróglio. Parece que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças não tiveram
nada com isso e que as manadas de juristas da Presidência do Conselho e da
administração central estavam a dormir. Ninguém confessou um erro, uma
inadvertência, uma confusão. Só os partidos (tirando o PS) se esganiçaram,
segundo o seu hábito e vocação, a proclamar a sua virtude e a santa defesa do
contribuinte. Como, aliás, Marcelo Rebelo de Sousa, que perpassa por detrás
desta história toda, esperou para abrir a boca que o sarilho estivesse
consumado: não lhe dizem nada? e ele não pergunta nada?
Mas como querem estes senhores que os
levem a sério, quando um governo normal e um Presidente normal teriam tratado
do assunto em meia dúzia de dias, sem desentendimentos, sem conflitos, sem a
exaltada polémica que por aí consola e alimenta os comentadores? Que o problema
de nomear um nova administração para a Caixa Geral de Depósitos sirva de causa
e de pretexto para pôr o país num estado de indignação geral (quer a favor de
Domingues, quer a favor da lei) é um sintoma da nossa incapacidade nacional e
da crescente deterioração do regime em que infelizmente vivemos.
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