Impressionismo em abundância,
superficialidade e incipiência, eis o que se lê. Depois de doze anos de escola
em Portugal, o que é que se aprendeu de verdadeiramente útil a Português?
Ao
contrário do que sucedeu em anos anteriores, e particularmente com o impacto
que foi a presença de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen na prova do
ano transacto e os respectivos “cenários de resposta” propostos pelo IAVE, não
houve (ainda) qualquer manifestação de professores, alunos e pais relativamente
ao Exame Nacional de Português do 12º ano deste ano. Talvez isso se deva à
impressão (equívoca, julgo) de que um exame em que se avaliam saberes e
competências quanto à obra de Sttau Monteiro, Felizmente Há Luar!, é mais
fácil. Todavia, para quem, como é o meu caso, tenha sido brindado com cerca de
cinco dezenas de exames para corrigir, talvez seja absolutamente claro o
seguinte: mesmo com um Grupo I dedicado a um excerto dessa obra do autor de
Angústia para o Jantar, o que se verifica é que a expressão escrita da maioria
dos alunos é muito má. E, diga-se em abono da verdade, piorou nos últimos anos.
Num
tempo como o nosso tão dado a estatísticas, e seguindo com rigor os critérios
de correcção emanados do IAVE, é sintomático que em cinquenta exames corrigidos
o número de negativas ascenda a mais de 40%. Destes 40% mais de metade são
provas com níveis inferiores a sessenta pontos em duzentos. É grave e, por
muito que se fale em rigor e exigência, como é que podemos calar (nós,
professores) a preocupação e a revolta quanto ao actual estado a que a língua
portuguesa chegou? O rigor e a exigência são fruto de uma prática pedagógica
que, no caso do Português, depende do conhecimento e compromisso do professor
quanto ao que significa ensinar a ler e a escrever: a ler o texto literário, a
escrever num registo científico, analítico e frio, objectivo e claro. A nossa
preocupação e revolta são legítimas: que competências de redacção e
interpretação do texto literário e não literário têm os alunos depois de doze
anos de ensino? Que alterações de facto ocorreram nas escolas nos últimos
quinze anos a vinte anos no que tange à didáctica do Português? Para consolidar
a expressão escrita e o universo cultural dos jovens não deveria ser
obrigatória a disciplina de História e mesmo a de História da Cultura e das
Artes? O Grupo III do Exame Nacional de Português, o que é senão um item em que
se avalia a capacidade de o aluno dissertar sobre temas de história e de
cultura?
À
saída do 12º ano o que vemos hoje é a incapacidade para responder de forma
analítica e pertinente, com base na linguagem dos textos em presença, às
questões mais básicas do Exame; questões, diga-se, que não pediam leitura
integral da obra de Sttau Monteiro ou dos sonetos de Camões, conteúdo do 10º
ano. Três perguntas com verbos simples e cujo sentido os alunos deveriam saber:
na primeira questão do Grupo I, o verbo “Explicar” (“Explique o sentido das antíteses
e das interrogações retóricas no início do monólogo de Matilde”); na segunda
pergunta o verbo “Explicitar” (“Explicite essa alteração [remetia a pergunta
para a mudança do estado de espírito de Matilde, a qual recorda os dias felizes
que viveu com Gomes Freire] no estado de espírito de Matilde.”) e, na última
questão sobre o texto A do Grupo I, o verbo “Interpretar” (“Interprete as
seguintes palavras de Matilde, tendo em consideração [...]” (estava em causa
compreender as metáforas das árvores e dos arbustos: no tempo da acção,
Beresford, Principal Sousa e Miguel Forjaz, meros “arbustos”, gente mesquinha e
invejosa, mas detentores do poder, mandaram “cortar” a árvore, isto é, Gomes
Freire, numa alusão evidente ao modo como Sttau Monteiro critica também o
Estado Novo). As respostas dos alunos não podiam senão ter em conta a linguagem
do excerto. O que se vê? Digressões sobre a história de Portugal, com
manifestos erros de facto: Salazar mandou matar Gomes Freire, ou então a
extraordinária ideia de que Gomes freire era filho de Matilde e a isso se devia
as suas tristeza e saudade! Noutros casos, podendo estar parcialmente correctas
no plano do conteúdo, as respostas dos alunos são verdadeiros labirintos
sintácticos: os alunos não dominam a subordinação, colocam a partícula “que” a
propósito de tudo e de nada, usam lugares comuns retirados da gíria
futebolística (Matilde estava revoltada e triste por não conseguir “atingir os
seus objectivos”), sem esquecer o léxico incipiente, até mesmo infantil: “os
maus são os arbustos e os bons são as árvores”. Acresce a este panorama outro
dado relevante: desconhecem-se as regras da acentuação e não estão consolidados
quer a estrutura do parágrafo, quer o uso do hífen, quer ainda as regras de
colocação de vírgulas e pontos finais (a vírgula entre sujeito e predicado é
erro comum e reiterado).
Outros
erros ainda: no texto B desse primeiro grupo, avaliando-se as competências da
escrita e da leitura a partir de um soneto de Camões (“Oh! Como se me alonga de
ano em ano”), confunde-se quase sempre autor empírico com sujeito poético.
Chega-se a colocar artigo definido masculino do singular (“o Camões”), sem se
compreender que, à luz da convenção poética renascentista/maneirista, o poeta
se vê a si mesmo como alguém “peregrino, vago, errante”, porquanto é de
figuração que se trata e não de mero registo autobiográfico quando se trata de
ler a poesia camoniana. Mas, perguntemos, conhecem os alunos os ensaios de
Vítor Aguiar e Silva e Rita Marnoto a este respeito? Havendo excertos críticos
insertos nos manuais escolares a propósito dos modos de ficcionalização do
texto lírico, é prática corrente o comentário e a análise desses textos
críticos? Saber-se-á que é um erro metodológico grave transferir aspectos do
mundo empírico para o mundo literário? Quer isto dizer que as duas perguntas
desse grupo implicavam algum domínio acerca (no exame escrevem os alunos “à
cerca”) de questões de literariedade. Muitas respostas foram exercícios
opinativos sobre a falta de saúde de Camões, o qual só podia lamentar-se de ter
uma “vida breve”, não porque esse seja um tópico da poética clássica,
greco-latina (a “Vita brevis”, expressão consagrada na retórica antiga e que a
tradição ocidental fixou em moldes proverbiais: arte longa, vida breve), de
inspiração bíblica, mas porque – pasme-se! – Camões estava velho quando
escreveu esse soneto e não praticava desporto, para além de se entregar a uma
existência dissoluta (o mito romântico do Camões boémio permanece vivo, fiel às
fantasias que se lêem nos livros sobre a “vida oculta” do poeta).
Impressionismo
em abundância, superficialidade e incipiência, eis o que se lê. Podemos, bem
vistas as coisas, perguntar: depois de doze anos de escola em Portugal, o que é
que se aprendeu de verdadeiramente útil a Português? Se, lendo Sttau Monteiro e
Camões, são óbvias a ignorância e o desleixo com que se abordam os textos, não
deveria ser este o momento para repensar as práticas pedagógicas em curso,
nomeadamente no que respeita às competências da escrita e da leitura? Sejamos
claros: sem a presença da literatura e da crítica e ensaio especializados,
articulando saberes de disciplinas várias, nenhum aluno pode sentir-se
preparado para as exigências de um mundo onde, cada vez mais, se pede uma
cultura integral.
Professor
e crítico literário
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