terça-feira, 19 de julho de 2016

O que se escreve e como se escreve nos exames nacionais de português

 António Carlos Cortez  - jornal Público

Impressionismo em abundância, superficialidade e incipiência, eis o que se lê. Depois de doze anos de escola em Portugal, o que é que se aprendeu de verdadeiramente útil a Português?

Ao contrário do que sucedeu em anos anteriores, e particularmente com o impacto que foi a presença de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen na prova do ano transacto e os respectivos “cenários de resposta” propostos pelo IAVE, não houve (ainda) qualquer manifestação de professores, alunos e pais relativamente ao Exame Nacional de Português do 12º ano deste ano. Talvez isso se deva à impressão (equívoca, julgo) de que um exame em que se avaliam saberes e competências quanto à obra de Sttau Monteiro, Felizmente Há Luar!, é mais fácil. Todavia, para quem, como é o meu caso, tenha sido brindado com cerca de cinco dezenas de exames para corrigir, talvez seja absolutamente claro o seguinte: mesmo com um Grupo I dedicado a um excerto dessa obra do autor de Angústia para o Jantar, o que se verifica é que a expressão escrita da maioria dos alunos é muito má. E, diga-se em abono da verdade, piorou nos últimos anos.
Num tempo como o nosso tão dado a estatísticas, e seguindo com rigor os critérios de correcção emanados do IAVE, é sintomático que em cinquenta exames corrigidos o número de negativas ascenda a mais de 40%. Destes 40% mais de metade são provas com níveis inferiores a sessenta pontos em duzentos. É grave e, por muito que se fale em rigor e exigência, como é que podemos calar (nós, professores) a preocupação e a revolta quanto ao actual estado a que a língua portuguesa chegou? O rigor e a exigência são fruto de uma prática pedagógica que, no caso do Português, depende do conhecimento e compromisso do professor quanto ao que significa ensinar a ler e a escrever: a ler o texto literário, a escrever num registo científico, analítico e frio, objectivo e claro. A nossa preocupação e revolta são legítimas: que competências de redacção e interpretação do texto literário e não literário têm os alunos depois de doze anos de ensino? Que alterações de facto ocorreram nas escolas nos últimos quinze anos a vinte anos no que tange à didáctica do Português? Para consolidar a expressão escrita e o universo cultural dos jovens não deveria ser obrigatória a disciplina de História e mesmo a de História da Cultura e das Artes? O Grupo III do Exame Nacional de Português, o que é senão um item em que se avalia a capacidade de o aluno dissertar sobre temas de história e de cultura?
À saída do 12º ano o que vemos hoje é a incapacidade para responder de forma analítica e pertinente, com base na linguagem dos textos em presença, às questões mais básicas do Exame; questões, diga-se, que não pediam leitura integral da obra de Sttau Monteiro ou dos sonetos de Camões, conteúdo do 10º ano. Três perguntas com verbos simples e cujo sentido os alunos deveriam saber: na primeira questão do Grupo I, o verbo “Explicar” (“Explique o sentido das antíteses e das interrogações retóricas no início do monólogo de Matilde”); na segunda pergunta o verbo “Explicitar” (“Explicite essa alteração [remetia a pergunta para a mudança do estado de espírito de Matilde, a qual recorda os dias felizes que viveu com Gomes Freire] no estado de espírito de Matilde.”) e, na última questão sobre o texto A do Grupo I, o verbo “Interpretar” (“Interprete as seguintes palavras de Matilde, tendo em consideração [...]” (estava em causa compreender as metáforas das árvores e dos arbustos: no tempo da acção, Beresford, Principal Sousa e Miguel Forjaz, meros “arbustos”, gente mesquinha e invejosa, mas detentores do poder, mandaram “cortar” a árvore, isto é, Gomes Freire, numa alusão evidente ao modo como Sttau Monteiro critica também o Estado Novo). As respostas dos alunos não podiam senão ter em conta a linguagem do excerto. O que se vê? Digressões sobre a história de Portugal, com manifestos erros de facto: Salazar mandou matar Gomes Freire, ou então a extraordinária ideia de que Gomes freire era filho de Matilde e a isso se devia as suas tristeza e saudade! Noutros casos, podendo estar parcialmente correctas no plano do conteúdo, as respostas dos alunos são verdadeiros labirintos sintácticos: os alunos não dominam a subordinação, colocam a partícula “que” a propósito de tudo e de nada, usam lugares comuns retirados da gíria futebolística (Matilde estava revoltada e triste por não conseguir “atingir os seus objectivos”), sem esquecer o léxico incipiente, até mesmo infantil: “os maus são os arbustos e os bons são as árvores”. Acresce a este panorama outro dado relevante: desconhecem-se as regras da acentuação e não estão consolidados quer a estrutura do parágrafo, quer o uso do hífen, quer ainda as regras de colocação de vírgulas e pontos finais (a vírgula entre sujeito e predicado é erro comum e reiterado).
Outros erros ainda: no texto B desse primeiro grupo, avaliando-se as competências da escrita e da leitura a partir de um soneto de Camões (“Oh! Como se me alonga de ano em ano”), confunde-se quase sempre autor empírico com sujeito poético. Chega-se a colocar artigo definido masculino do singular (“o Camões”), sem se compreender que, à luz da convenção poética renascentista/maneirista, o poeta se vê a si mesmo como alguém “peregrino, vago, errante”, porquanto é de figuração que se trata e não de mero registo autobiográfico quando se trata de ler a poesia camoniana. Mas, perguntemos, conhecem os alunos os ensaios de Vítor Aguiar e Silva e Rita Marnoto a este respeito? Havendo excertos críticos insertos nos manuais escolares a propósito dos modos de ficcionalização do texto lírico, é prática corrente o comentário e a análise desses textos críticos? Saber-se-á que é um erro metodológico grave transferir aspectos do mundo empírico para o mundo literário? Quer isto dizer que as duas perguntas desse grupo implicavam algum domínio acerca (no exame escrevem os alunos “à cerca”) de questões de literariedade. Muitas respostas foram exercícios opinativos sobre a falta de saúde de Camões, o qual só podia lamentar-se de ter uma “vida breve”, não porque esse seja um tópico da poética clássica, greco-latina (a “Vita brevis”, expressão consagrada na retórica antiga e que a tradição ocidental fixou em moldes proverbiais: arte longa, vida breve), de inspiração bíblica, mas porque – pasme-se! – Camões estava velho quando escreveu esse soneto e não praticava desporto, para além de se entregar a uma existência dissoluta (o mito romântico do Camões boémio permanece vivo, fiel às fantasias que se lêem nos livros sobre a “vida oculta” do poeta).
Impressionismo em abundância, superficialidade e incipiência, eis o que se lê. Podemos, bem vistas as coisas, perguntar: depois de doze anos de escola em Portugal, o que é que se aprendeu de verdadeiramente útil a Português? Se, lendo Sttau Monteiro e Camões, são óbvias a ignorância e o desleixo com que se abordam os textos, não deveria ser este o momento para repensar as práticas pedagógicas em curso, nomeadamente no que respeita às competências da escrita e da leitura? Sejamos claros: sem a presença da literatura e da crítica e ensaio especializados, articulando saberes de disciplinas várias, nenhum aluno pode sentir-se preparado para as exigências de um mundo onde, cada vez mais, se pede uma cultura integral.

Professor e crítico literário

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