domingo, 8 de maio de 2016

Uma cidade chamada Porto

 

ALBERTO GONÇALVES
- in: Diário de Noticias
Resolvi dedicar o último fim-de-semana à aventura. Primeiro, pensei no Nepal e na Patagónia. Acabei por alugar um apartamento na Baixa do Porto, a dez quilómetros cá de casa. Nunca o tinha feito. Ainda bem que o fiz. Encontrei uma cidade nova e, para mim, desconhecida. Defeitos? Por onde começo? Há imensos turistas. Há imensas lojas "giras" que vendem tralha para turistas, de galos de Barcelos estilizados a discos de fado genérico e repelente. Há imensos restaurantes de qualidade e preço e estética variáveis. Há alojamentos ditos de "charme" por toda a parte. Há o custo de um café ou de um croissant no Majestic, que se julga o Rainbow Room. Há pastelarias ancestrais transformadas em páginas da Architectural Digest. Há bares com espanhola frequência (nos dois sentidos). Há gente e barulho nas ruas até de madrugada.
Virtudes? Quase todas as descritas acima. Há meia dúzia de anos, ia-se ao Porto com o tipo de disposição antropológica que motivaria uma visita a Detroit: mal o Sol se punha, não se via vivalma ou viam-se almas evitáveis; os estabelecimentos eram escassos e decrépitos; incontáveis edifícios estavam lacrados a tijolo e prontos para o abate; o abandono parecia irremediável. De repente (?), nasceu ali - desculpem lá - um "destino de viagem" a sério. Houve um momento, sábado à tardinha, em que atravessei o Largo de São Domingos e, com provável exagero, decidi que poucos lugares na Europa seriam capazes de derrotar aquele cenário. É verdade que abundavam os clichés, da brisa morna às esplanadas cheias, do trompetista "espontâneo" à confusão de línguas (salvo seja), da conversão de negócios falidos às fachadas "reabilitadas" e lindas. Abençoados clichés: eu não podia estar melhor. E o melhor é que podia, bastando para tal descer à Ribeira e, de caminho, jantar na Adega de São Nicolau, que não precisou do recente despertar portuense para ser, sempre, perfeita. A título de digestivo, o Douro à noite.
O casal de amigos lisboetas nados ou adoptivos que me acompanhava andou dois dias de boca aberta. Eu também, e não só por culpa das empadas da Ribeira, do bife tártaro do Reitoria ou das tripas d"O Buraco (uma humilde divindade com placa de homenagem a Pires Veloso e ao 25 de Novembro no interior). O Porto que imaginavam não se assemelhava em nada à realidade. Não sei porquê, ou prefiro não saber, mesmo hoje as televisões teimam em servi-lo suburbano e rude, exclusivamente habitado por laparotos cujo único tópico de conversa é a bola ou os "temas" sugeridos pelos repórteres dos "telejornais". É como se se mostrasse Lisboa apenas através de Chelas. Ou do dr. Costa.
Se insistirem em felicitar o principal responsável por tudo isto, adianto que não foi nenhum dos pensadores da Porto 2001, ou do Euro 2004, ou de qualquer dos "desígnios" com que os partidos prometem regenerar a plebe e cumprem a regeneração das finanças dos comparsas. O destacado "autor" deste Porto não está na toponímia ou na estatuária local, chama-se Michael O"Leary e é presidente da Ryanair, a companhia aérea que em 2009 plantou uma base em Pedras Rubras e liga directamente a cidade ao mundo. Os restantes responsáveis foram os pequenos, médios e grandes investidores privados, a tradição comercial tolhida por décadas de paternalismo e enxovalhos estatais e que, face à oportunidade e a certa liberdade, acordou. E a Airbnb. E a Booking.com. E, imaginem, a Uber.
Claro que o "renascimento" não é necessariamente definitivo nem se livra de sombras e ameaças. Os poderes públicos, municipais ou centrais, são peritos em "intervir" (espatifar, em português) no que funciona graças à sua relativa omissão. Além disso, temos uma inclinação suicida para ouvir vozes clinicamente alérgicas ao sucesso alheio - quando o sucesso alheio resulta mais do trabalho que da proximidade a quem decide. Já paira no Porto o tipo de "argumentos" avessos ao "excesso de turistas" (bonito é o abandono), à "massificação do comércio" (bonitas são as falências), à "gentrificação do centro" (bonita é a pobreza), à "descaracterização da zona histórica" (bonitos são os graffiti) e ao diabo a quatro (bonitos são os impostos, e os limites à circulação, e o "investimento" em delírios, e a arrogância dos políticos, e as trapaças de autoproclamados "activistas").
O Porto, sendo o Porto, tem tudo para correr bem. Sendo português, não falta o que pode correr mal.


Domingo, 1 de Maio

Um exemplo

Fernando Rosas é um homem notável. Em décadas de carreira pública, nunca lhe descobri uma opinião favorável à liberdade, à democracia e ao progresso, embora encha a boca com esses vocábulos ao ponto da obesidade. O homem parece fossilizado desde os tempos em que dirigia a Luta Popular, onde cantava hossanas, de que nunca mostrou sombra de arrependimento, ao "grande Estaline" (juro) e "ao camarada Mao" (é redundante jurar). Em 1976 ou em 2016, no MRPP ou no BE, boa parte dos horrores totalitários dos últimos cem anos tiveram no dr. Rosas um encarniçado e, admita-se, sincero entusiasta. "Historiador" na vida civil, este devoto de genocidas esforçou-se por explicar o passado e adivinhar o futuro. Em qualquer dos casos, falhou sempre. No dia em que acertar, estamos feitos. O dr. Rosas não serve para coisa nenhuma, excepto de exemplo a fugir. Naturalmente, saiu da universidade jubilado e permanece na sociedade prestigiado, indicadores cabais da dignidade de ambas.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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