Um ministro da Economia pedir que se
desobedeça às leis universais da teoria económica por civismo é tão fútil e
pueril como pedir a engenheiros que violem as leis da termodinâmica por amor à
Natureza
Foi noticiado o apelo que o Ministro da
Economia teria feito ao civismo dos portugueses. Abasteçam o combustível em
Portugal, não em Espanha, teria sido o cerne da sua mensagem. Quando os
portugueses vão atestar a Espanha “estão a pagar impostos a Espanha em vez de
pagarem a Portugal, mesmo tendo um desconto”, teria alegado. No entanto, “para
financiar serviços públicos é preciso pagar impostos.” Por isso, argumenta que
“por civismo é de pedir às pessoas que evitem” comprar gasolina e gasóleo do
outro lado da fronteira.
Apesar dos erros nas premissas e da
invalidade da conclusão, o argumento aponta um caminho válido, merece ser
levado a sério e deve ser posto em prática.
Comecemos pela parte fraca. Ninguém vai às
compras por civismo ou patriotismo. Por civismo não deitamos lixo na rua, e
também por civismo vamos votar, mesmo que convencidos que não serve para nada:
sabemos que as moscas mudam mas que a porcaria é sempre a mesma. Por
patriotismo os benfiquistas apoiam o Sporting nas competições internacionais e
vice-versa. Mas quando se vai às compras só duas coisas interessam: a qualidade
do produto e o seu preço. E quando um produto é homogéneo só uma coisa
interessa: o preço. O imposto que “está dentro” do preço é irrelevante: tendo
decidido comprar um produto depois de ter avaliado a sua qualidade e ter
conhecido o seu preço ninguém se preocupa pela percentagem do preço que é
matéria-prima, nem a que é trabalho, nem a que é margem de lucro, nem a que é
imposto. Note-se, de passagem, que esta indiferença universal à percentagem do
preço que é tributação é o grande entrave à expansão do movimento libertário e
um dos principais garantes da ordem pública.
De entre os muitos dogmas que existem na
teoria económica nenhum é tão venerável, nem tão poderoso, como aquele que
postula que, ceteris paribus, isto é, em igualdades de todas as outras
circunstâncias, o agente económico prefere sempre, mas sempre, o produto que
apresenta o preço mais baixo. Assim o “desconto” referido pelo responsável
governamental, isto é, a diferença de preço entre dois produtos extremamente
semelhantes, é a única coisa que interessa a quem vai às compras, neste caso, a
quem tem de abastecer o depósito. Um ministro da Economia apelar ao civismo dos
cidadãos para que eles desobedeçam às leis universais da teoria económica por
civismo é tão fútil e pueril como o ministro da indústria apelar aos
engenheiros para que violem as leis da termodinâmica por amor à Natureza.
E se o problema está em os portugueses
financiarem o Estado espanhol em vez de financiarem o Português indo comprar
gasolina a Espanha, a solução é simples: uma redução para, digamos, metade da
atual tributação dos combustíveis atuará na consciência cívica dos
automobilistas nacionais como nenhuma campanha de propaganda governamental
conseguiria, e criaria ainda, como bónus, o desejo a muitos espanhóis de se
voluntariar para financiar os serviços públicos portugueses vindo cá abastecer.
Mas continuemos ainda mais um pouco na
parte fraca do argumento, com a falácia de que “para financiar serviços
públicos é preciso pagar impostos.” O fato é que impostos não são mais que uma
das modalidades possíveis para financiar serviços que são distribuídos
gratuitamente ao público e, de entre todas as possibilidades, é provavelmente a
pior. É a pior porque é coerciva, violando a liberdade individual de crença e
religiosa: com impostos um pacifista é obrigado a financiar o serviço público
da defesa nacional que viola a sua consciência e uma freira é obrigada a
financiar pornografia, assim que classificada como arte pelo Ministério, que
revolta os seus princípios religiosos. É a pior porque é anacrónica, uma
herança de regimes tirânicos e antidemocráticos, com raízes na antiguidade
asiática, que não foi abolida juntamente com a restante estrutura repressiva do
ancien-regime. E é a pior porque é ineficiente, consumindo mais recursos por
volume de financiamento que as alternativas.
Qual é então a parte válida do apelo
ministerial? É sugerir que os serviços públicos também podem ser financiados
por contribuições cívicas e voluntárias dos cidadãos, que não requerem o
dispendioso aparato da administração fiscal e tributária, que se regem por
princípios modernos, que apelam ao sentimento patriótico e responsável dos
cidadãos a quem pertence a república, e a quem esses serviços se dirigem.
Exemplos não faltam que demonstram que é possível “financiar” quase tudo com
contribuições voluntárias. São inúmeras as organizações que “financiam” as suas
atividades, que são verdadeiros serviços públicos, quase exclusivamente com
donativos, sejam instituições ainda verdes como o Greenpeace ou já maduras como
a Igreja Católica. É preciso um navio de monotorização da cobertura de gelo do
Antártico? O Greenpeace “financia-o” com uma subscrição pública, que é
voluntária. É preciso construir um centro paroquial para a terceira idade? O
pároco “financia-o” exclusivamente, em quase todo o mundo, com donativos dos
fiéis, que são voluntários. E que não se argumente que isto só é possível para
instituições de reduzida dimensão: nem o Greenpeace nem a Igreja Católica são
chafarricas de esquina. O apelo do Ministro da Economia é pois um marco na
história das finanças públicas nacionais ao reconhecer que solicitações à boa
vontade do povo são um meio viável e alternativo, para financiar a provisão dos
serviços públicos.
Seria uma pena ficarmos só com o marco.
Agora é preciso levar o apelo ministerial às suas consequências lógicas, e ser
consistente na aplicação do princípio invocado. Uma sugestão: que tal retirar
já o “financiamento” da Assembleia da República do Orçamento de Estado e
começar a “financiá-la” com contribuições voluntárias?
Professor de Finanças, AESE
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