sábado, 19 de março de 2016

Financiamento voluntário do Estado


José Miguel Pinto dos Santos - Observador

Um ministro da Economia pedir que se desobedeça às leis universais da teoria económica por civismo é tão fútil e pueril como pedir a engenheiros que violem as leis da termodinâmica por amor à Natureza

Foi noticiado o apelo que o Ministro da Economia teria feito ao civismo dos portugueses. Abasteçam o combustível em Portugal, não em Espanha, teria sido o cerne da sua mensagem. Quando os portugueses vão atestar a Espanha “estão a pagar impostos a Espanha em vez de pagarem a Portugal, mesmo tendo um desconto”, teria alegado. No entanto, “para financiar serviços públicos é preciso pagar impostos.” Por isso, argumenta que “por civismo é de pedir às pessoas que evitem” comprar gasolina e gasóleo do outro lado da fronteira.
Apesar dos erros nas premissas e da invalidade da conclusão, o argumento aponta um caminho válido, merece ser levado a sério e deve ser posto em prática.
Comecemos pela parte fraca. Ninguém vai às compras por civismo ou patriotismo. Por civismo não deitamos lixo na rua, e também por civismo vamos votar, mesmo que convencidos que não serve para nada: sabemos que as moscas mudam mas que a porcaria é sempre a mesma. Por patriotismo os benfiquistas apoiam o Sporting nas competições internacionais e vice-versa. Mas quando se vai às compras só duas coisas interessam: a qualidade do produto e o seu preço. E quando um produto é homogéneo só uma coisa interessa: o preço. O imposto que “está dentro” do preço é irrelevante: tendo decidido comprar um produto depois de ter avaliado a sua qualidade e ter conhecido o seu preço ninguém se preocupa pela percentagem do preço que é matéria-prima, nem a que é trabalho, nem a que é margem de lucro, nem a que é imposto. Note-se, de passagem, que esta indiferença universal à percentagem do preço que é tributação é o grande entrave à expansão do movimento libertário e um dos principais garantes da ordem pública.
De entre os muitos dogmas que existem na teoria económica nenhum é tão venerável, nem tão poderoso, como aquele que postula que, ceteris paribus, isto é, em igualdades de todas as outras circunstâncias, o agente económico prefere sempre, mas sempre, o produto que apresenta o preço mais baixo. Assim o “desconto” referido pelo responsável governamental, isto é, a diferença de preço entre dois produtos extremamente semelhantes, é a única coisa que interessa a quem vai às compras, neste caso, a quem tem de abastecer o depósito. Um ministro da Economia apelar ao civismo dos cidadãos para que eles desobedeçam às leis universais da teoria económica por civismo é tão fútil e pueril como o ministro da indústria apelar aos engenheiros para que violem as leis da termodinâmica por amor à Natureza.
E se o problema está em os portugueses financiarem o Estado espanhol em vez de financiarem o Português indo comprar gasolina a Espanha, a solução é simples: uma redução para, digamos, metade da atual tributação dos combustíveis atuará na consciência cívica dos automobilistas nacionais como nenhuma campanha de propaganda governamental conseguiria, e criaria ainda, como bónus, o desejo a muitos espanhóis de se voluntariar para financiar os serviços públicos portugueses vindo cá abastecer.
Mas continuemos ainda mais um pouco na parte fraca do argumento, com a falácia de que “para financiar serviços públicos é preciso pagar impostos.” O fato é que impostos não são mais que uma das modalidades possíveis para financiar serviços que são distribuídos gratuitamente ao público e, de entre todas as possibilidades, é provavelmente a pior. É a pior porque é coerciva, violando a liberdade individual de crença e religiosa: com impostos um pacifista é obrigado a financiar o serviço público da defesa nacional que viola a sua consciência e uma freira é obrigada a financiar pornografia, assim que classificada como arte pelo Ministério, que revolta os seus princípios religiosos. É a pior porque é anacrónica, uma herança de regimes tirânicos e antidemocráticos, com raízes na antiguidade asiática, que não foi abolida juntamente com a restante estrutura repressiva do ancien-regime. E é a pior porque é ineficiente, consumindo mais recursos por volume de financiamento que as alternativas.
Qual é então a parte válida do apelo ministerial? É sugerir que os serviços públicos também podem ser financiados por contribuições cívicas e voluntárias dos cidadãos, que não requerem o dispendioso aparato da administração fiscal e tributária, que se regem por princípios modernos, que apelam ao sentimento patriótico e responsável dos cidadãos a quem pertence a república, e a quem esses serviços se dirigem. Exemplos não faltam que demonstram que é possível “financiar” quase tudo com contribuições voluntárias. São inúmeras as organizações que “financiam” as suas atividades, que são verdadeiros serviços públicos, quase exclusivamente com donativos, sejam instituições ainda verdes como o Greenpeace ou já maduras como a Igreja Católica. É preciso um navio de monotorização da cobertura de gelo do Antártico? O Greenpeace “financia-o” com uma subscrição pública, que é voluntária. É preciso construir um centro paroquial para a terceira idade? O pároco “financia-o” exclusivamente, em quase todo o mundo, com donativos dos fiéis, que são voluntários. E que não se argumente que isto só é possível para instituições de reduzida dimensão: nem o Greenpeace nem a Igreja Católica são chafarricas de esquina. O apelo do Ministro da Economia é pois um marco na história das finanças públicas nacionais ao reconhecer que solicitações à boa vontade do povo são um meio viável e alternativo, para financiar a provisão dos serviços públicos.
Seria uma pena ficarmos só com o marco. Agora é preciso levar o apelo ministerial às suas consequências lógicas, e ser consistente na aplicação do princípio invocado. Uma sugestão: que tal retirar já o “financiamento” da Assembleia da República do Orçamento de Estado e começar a “financiá-la” com contribuições voluntárias?

Professor de Finanças, AESE

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