É
tentador para os políticos alegar que a maioria dos cidadãos só poderá obter
rendimentos e serviços através do Estado, e que bastará votarem nos partidos
certos para terem tudo garantido.
A propósito de um artigo que escrevi aqui no Observador, Vasco Pulido Valente perguntou
que sentido faz falar do “clientelismo” dos partidos políticos. Não foi sempre
assim? Sim, as “clientelas”, se quisermos usar a nomenclatura romana, terão até
tido mais relevância noutras épocas, quando para um bacharel em direito havia
poucos empregos condignos fora da política e da administração. Quem leu Camilo
Castelo Branco, Júlio Diniz, Eça de Queirós ou Oliveira Martins aprendeu pelo
menos isso. Também não terá esquecido a história do “carneiro com batatas” que
os caciques serviam aos eleitores no século XIX. Mas o país mudou. Em 1870, os
políticos usavam o Estado para controlar um eleitorado rural e analfabeto, e
absorver uma pequena classe de letrados. A questão hoje é outra: o modo como
uma parte da oligarquia elevou a dependência dos cidadãos em relação ao Estado
à condição de ideal, e pretende fazer assentar nessa dependência o seu domínio
político do país.
A dependência do Estado nunca teve as
dimensões actuais. O Estado paga hoje 655 mil salários e 3,6 milhões de pensões.
A despesa pública vale 51,7% do PIB. Já não se trata de uma refeição num dia de
eleições. Para muitos portugueses, o seu modo de vida decorre do rendimento e
dos serviços prestados pelo Estado. É tentador para a classe política alegar
que nunca obteriam esses rendimentos e serviços de outra maneira, e que os
podem garantir de um modo muito simples: votando nos partidos certos, sem mais
esforços. Foi o que Alexis Tsipras fez na Grécia, e que António Costa e os seus
parceiros parlamentares fazem em Portugal.
Este ideal de dependência tem pelo menos
duas dificuldades. A primeira é que a dependência interna produz, em Portugal
tal como na Grécia, dependência externa. O Estado português, mesmo depois de
quatro anos de ofegante consolidação orçamental e de vinte anos de agravamento
incansável de impostos, continua a gerar um défice equivalente a 3% do PIB
(desde 1995, que nunca o défice desceu abaixo desse valor). Ora, essa
diferença, devido à insuficiente poupança nacional, tem de ser largamente
financiada no exterior, sujeitando-nos àquelas condições a que chamamos
“austeridade”.
A consequência deste sistema de
dependência não é só a dívida e a austeridade: é também uma economia estagnada
e um desemprego que subiu quase todos os anos desde 2001. Quem culpa o Euro por
tudo isto está apenas a admitir que a solução seria a desvalorização do escudo,
isto é, o empobrecimento. Não haverá meio de obter outros resultados? Muitas
organizações internacionais recomendam-nos que baixemos os impostos e
racionalizemos a burocracia e as regulações, de modo valorizar o estudo, o
trabalho e o investimento. Mas isso implica discutir o Estado e o papel do
Estado. Não basta “cortar gorduras”, como a oligarquia gosta de dizer. Seria
mesmo preciso conceber a relação dos cidadãos com o poder político noutros
termos, que não os da dependência actual.
Vasco Pulido Valente lembrou que a cultura
literária portuguesa alberga uma velha tradição de nojo pela política nos
sistemas representativos. Muita desse nojo viveu da expectativa do poder
absoluto de um salvador, ou da mitificação de um povo pronto a assumir
directamente o governo. Não pretendo imaginar uma política sem políticos, nem
tão pouco contestar as credenciais democráticas do actual regime: desde 1975
que nunca houve dúvida que os presidentes, deputados e autarcas eleitos foram
mesmo eleitos, em eleições limpas. O que está em causa aqui é isto: tem a
classe política capacidade para estabelecer outra relação com os cidadãos, que
não seja a de uma dependência cada vez mais perversa? As coisas já não são como
eram, mas ainda têm de mudar.
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