Nada impede uma criatura de se definir
como da “extrema-esquerda da direita” ou como a “extrema-direita da esquerda”.
A asneira é livre.
Durante a campanha eleitoral os
comentaristas não pararam de falar da “esquerda”, da “direita” e do “centro” e
das combinações que se podiam fazer entre estes “conceitos” sem sentido. O
vocabulário disfarça a ignorância, parece rigoroso e facilita a vida a quem
escreve. Mas não quer dizer nada. Comecemos pela “direita”. Por causa do
exacerbamento ideológico do PREC, ainda hoje ninguém se atreve a reconhecer que
é de “direita” (com a excepção de Paulo Portas). Ser de “direita” ainda hoje
serve de insulto e convoca o desprezo. Pior do que isso, cobre tendências diferentes
de um grande bloco de opinião, que só se define pelo facto de não ser de
“esquerda”. Autoritários, democráticos, liberais, dirigistas cabem todos nesse
grande cesto de opróbrio.
Os políticos portugueses preferem assim
proclamar que pertencem ao “centro” ou mesmo ao “centro-direita” e, por
cerimónia, os jornalistas aceitam submissamente esta descrição. O ponto fraco
desta tese está em que o “centro” não existe, excepto como noção geométrica ou
lugar de compromisso; e oscila para um lado ou o outro conforme as
circunstâncias do momento. É a razão porque em épocas de tensão e de crise
também a “esquerda” gosta de se declarar “centro-esquerda”. Ali naquele lugar
vazio fica mais protegida e menos responsável pelo que der e vier. Claro que
esta brincadeira com as posições de cada um não tem um fim visível ou lógico.
Nada impede uma criatura de se definir como da “extrema-esquerda da direita” ou
como a “extrema-direita da esquerda”. A asneira é livre.
De resto, nunca houve na verdade uma
“esquerda”. Houve desde o princípio facções, com uma caracterização teórica
miudinha, separadas por um odium theologicum, difícil de imaginar para quem não
leu Marx ou Lenine e o rebanho dos seus seguidores. Quem é capaz de explicar o
que separa, por exemplo, o Bloco e o PC? Ninguém; nem sequer, desconfio, os
desmiolados que por lá andam. Ou as divisões do PS não directamente
relacionadas com a carreira e as promoções da militância mais zelosa do seu
próprio interesse? E, no entanto, o sopro romântico da “esquerda” continua eficaz
na sociedade romântica em que vivemos. É essa a sua força essencial, que se
distribuiu ao acaso pelos “corações sensíveis”. Politicamente quase nunca faz
sentido ou é seguramente classificável. Mas persiste na sua barafunda. Ser de
“esquerda” não deixou de ser um certificado de virtude.
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