01/12/2015 - in: Jornal Público
Há quem diga que António
Costa não vai ter direito a estado de graça. Discordo. Ele já está em estado de
graça. Pelo país inteiro, celebra-se a libertação do jugo passista como os franceses
festejaram a libertação de Paris. Um novo David, munido de poucos votos mas
muita pontaria, conseguiu derrubar o malvado Golias, que oprimia os pobres e
desvalidos através da terrível austeridade. Basta olhar para a felicidade
estampada nos textos de tanta gente: foi melhor assim do que se o PS tivesse
ganho as eleições. Mais inesperado. Mais cruel. E, por isso mesmo, mais justo.
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Qual Profeta do Antigo Testamento! |
Para encontrarmos bons
exemplos desse estado de graça basta ler o PÚBLICO dos últimos dias. José
Pacheco Pereira, que tanto aprecia anunciar ao mundo a sua frígida lucidez,
desta vez escreveu uma crónica onde todos os parágrafos padecem de acne
juvenil, só pelo prazer de poder gritar: “Acabou!!!!”. E reparem que não é um
“acabou!!!!” qualquer. É um “acabou!!!!” nascido de dezenas de conversas com o
povo oprimido da Marmeleira. Um “acabou!!!!” afinado com a luta antifascista.
Escreve ele: “um alto e sonoro ‘acabou’ como antes do 25 de Abril se chegava ao
‘às armas’ da Portuguesa e de repente toda a gente gritava a plenos pulmões”. O
estado de graça é isto.
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O Diderot das "esquerdas" |
Rui Tavares, no seu texto
de ontem, preferiu valorizar uma questão simbólica: “Não foram mencionados os
títulos académicos dos novos ministros e secretários de Estado durante a tomada
de posse do novo Governo. A ser verdade, é uma revolução.” Note-se que ele não
faz a coisa por menos. “Uma revolução.” Deixar de tratar Augusto Santos Silva
por “professor doutor” é “uma revolução”. Eu cá trocava alegremente a
permanência de “professor doutor” pela impermanência de Augusto Santos Silva.
Assim de repente, parecer-me-ia coisa muitíssimo mais revolucionária. Mas isso
deve ser porque sou de direita. O imenso povo de esquerda, que nunca precisou
de muito para se entusiasmar, acredita que a abolição dos títulos académicos é
apenas o primeiro passo para a abolição de todas as desigualdades. O estado de
graça é isto.
Também no dia de ontem,
num texto intitulado “A estratégia de um governo que quer ir além da política
de rendimentos”, Paulo Pena explica as razões do “incomum afastamento do
ministro das Finanças, Mário Centeno, do ‘pódio’ da hierarquia governamental”.
A tese, acompanhando os discursos de António Costa, é a de que as questões
financeiras são agora assumidas como “instrumentais”, e não “estratégicas”, e
de que esta nova “visão” é aquela que irá ser vendida na Europa, certamente
para grande espanto dos burocratas de Bruxelas, que nunca ouviram falar em tal
coisa. De facto, só um génio se lembraria de que o grande problema português
não está na dívida mas na falta de competitividade da economia. Estou certo que
mal acabe de explicar isto a Wolfgang Schäuble, António Costa, expelindo
sonoros ulos de “eureka!!!!”, irá provar ao mundo que é mais fácil empurrar um
cilindro do que um paralelepípedo.
Mas Paulo Pena tem fé: se
Costa for capaz de levar a sua avante, “talvez a expressão ‘um tempo novo’, que
prometeu no discurso de tomada de posse, faça sentido”. E conclui: “Mesmo que o
não consiga, mais fácil parece ser a promessa que deixou aos seus ministros e
secretários de Estado, na sala dos Embaixadores, no Palácio da Ajuda: ‘Foi para
um projecto entusiasmante que vos convidei.” Entusiasmante, de facto. O mal
foi vencido. A esperança vive. O estado de graça é isto.
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