Maria de Fátima Bonifácio
in: OBSERVADOR
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O “costismo” significa o
dobre a finados pelo PS fundado por Mário Soares e anuncia o nascimento dum
novo partido pronto a vestir qualquer ideologia que lhe sirva de instrumento
para se alçar ao poder.
Demasiado depressa as
nossas atenções se desviaram da Grécia, do Syrisa e de Tspiras. Tsipras
encontrou-se em Berlim a convite de Merkel, a 23 de Março deste ano. Regressou
a Atenas, aparentemente convertido à realidade, ao realismo e ao pragmatismo.
De facto, nunca deixara de ver a primeira e nunca lhe faltaram estas duas
qualidades. Apenas se fingira romântico e revolucionário. Nunca foi romântico,
e a revolução sempre foi para ele meramente instrumental: um meio de se alçar
ao poder a todo o custo. Isto deveria ter-se tornado evidente logo que, após
aprovação pelo Parlamento do terceiro resgate (14.8.15), em tudo parecido com o
segundo contra o qual insurrecionara a Grécia, de imediato se demitiu (20.8.15)
e convocou eleições para 20 de Setembro. Ganhou-as com 35.5% dos votos e
repetiu a aliança com os Gregos Independentes (3,67%), o que, graças ao
generoso bónus em deputados conferido pela lei grega ao partido mais votado,
lhe permitiu arrebanhar uma confortável maioria absoluta de mandatos.
Ainda antes das eleições,
caiu-lhe do céu a cisão da ala ultra-esquerdista do Syrisa, um pequeno lote de
ingénuos, crentes de que esta generosa coligação de esquerda estava serviço do
povo e da revolução social. Tsipras, reeleito, reocupou o cargo de
primeiro-ministro e fez um governo seu. E o mundo, ou pelo menos Portugal,
deixou-o a ele e à Grécia entregues ao cumprimento obediente do terceiro
resgate, à dolorosa digestão da terceira vaga de austeridade. Uma parte da
nossa esquerda doméstica ficou algo estonteada com a acrobática cambalhota do
herói. Não assim a que já estava e funcionava no mesmo registo de pragmatismo
absoluto. Marisa Matias explicou logo no dia da vitória eleitoral de Tsipras:
“Evitou-se o pior cenário possível, que era pôr no poder as forças partidárias
da Troika.” O pior cenário possível, por conseguinte, não era submeter o
martirizado povo grego ao terceiro resgate, era o radicalismo revolucionário
perder o poder. Eis a grande lição a tirar da experiência grega.
Já tudo foi dito sobre o
desbragado oportunismo de António Costa, cuja urgente e desesperada
sobrevivência política pessoal se sobrepôs a todas as considerações de
prudência estratégica, de coerência política, de um módico de escrúpulo moral e
de salvaguarda do superior interesse do País que, como as peripécias
parlamentares em poucos dias já mostraram, está agora nas mãos do PCP e do
Bloco de Esquerda. Porém, se esta deriva esquerdista do PS surpreendeu o País,
a verdade é que ela só pôde vingar porque não constituiu um implante absolutamente
artificial na configuração ideológica do Partido Socialista. Desde o 25 de
Abril, quando apareceu à luz do dia em solo português, que o PS albergou sempre
no seu interior, desde então e até ao presente, facções ou embriões de facções
de extrema-esquerda de vário pelo. A cisão aberta por Manuel Serra logo no
primeiro Congresso do PS, realizado em Lisboa em Dezembro de 1974, que
pretendia impor uma linha revolucionária a um partido que o não era, foi apenas
a primeira de uma série de afastamentos, auto-exclusões e erradicações de
correntes ou simples grupos radicais e anti-democráticos que germinavam
naturalmente num partido de esquerda democrática por razões não impossíveis de
compreender.
Mário Soares era burguês
e apreciava a “liberdade burguesa” não só para ele e os seus, mas para todos.
Porém, era de esquerda, era socialista, e a liberdade de pensamento e expressão
que reinava dentro do PS podia ser usada, e foi usada, para tentar “obrigá-lo”
a ser de esquerda, e “não burguês”… Muitos dos esquerdistas, trotskistas,
marxistas-leninistas, sindicalistas da CGTP e comunistas desavindos com o PC
beneficiavam de livre-trânsito dentro do PS, até ao limite em que o seu
activismo tocava as raias da conspiração, fazendo perigar os equilíbrios
internos que asseguravam a primazia da linha matricial do partido,
inequivocamente anti-comunista e demo-liberal, social-democrata e socialista
democrática, três colorações de imprecisa diferenciação conceptual cuja mescla
constituiu sempre a essência “anímica” do pluralismo característico do Partido
Socialista, e ao mesmo tempo o delimitava: o PS não era um “saco de gatos” ou
um “albergue espanhol”.
Porém, sucessivas
auto-exclusões ou deliberadas erradicações nunca expurgaram, ao longo dos anos
e das décadas, as raízes profundas da pulsão esquerdista de uma parte, embora
subalterna, do PS. Este fora sempre a fronteira da liberdade… mas, no fundo e
em rigor, a fronteira sempre passou pelo interior do próprio partido. Entre
essas duas partes, intrometeu-se a partir de 2005 uma “cunha socrática”, que
baralhou a divisão grosso modo dicotómica do partido e transtornou os seus
equilíbrios internos. Perdido o poder em 2011, a crise económico-financeira e a
austeridade, na ausência de uma liderança forte, abriram a porta a um reforço
da ala esquerdista, enrijecida pelo pelotão dos órfãos do engenheiro, que não
podiam perdoar a António José Seguro a tentativa de demarcar o PS da herança do
seu “querido líder”. No PS “galambizado” germinaram e desabrocharam os Nunos
Santos. O espaço estava criado, a porta estava aberta e António Costa podia
entrar, na condição de que devolvesse o poder ao partido. Mas um partido que já
não era o Partido Socialista fundado por Mário Soares. A sua tradicional marca
genética anti-comunista foi sacrificada às aflições de António Costa, mas não
só: foi também sacrificada às ambições de um novo esquerdismo de circunstância
que exige dele o poder – a qualquer custo. Na verdade, é mais exacto falar de
um radical pragmatismo travestido de esquerdismo, um pronto-a-vestir ideológico
meramente instrumental e acidental.
A oportunidade de Tsipras
conquistar o poder e fazer do Estado um bastião privado para a sua parentela
surgiu pela direita; o que lhe interessava era esta e o seu próprio poder
autocrático. A de Costa surgiu pela esquerda mas o retorno foi muito mais
“poucochinho”. Tsipras, ao menos para já, não está nas mãos de ninguém. Costa,
como condição de durar, está e estará nas mãos do PCP e do Bloco. O apparatchik
Arménio Carlos ainda hoje ameaçou na capa do Público: “A melhor maneira de este
governo garantir a estabilidade é cumprir as promessas que fez.” António Costa,
com o seu talento “tacticista” que já quase toda a gente lhe reconhece e
enaltece, conseguiu chegar a primeiro-ministro, que era o mínimo indispensável
para se aguentar à frente do partido. Porém, na realidade e ao contrário de
Tsipras, entre a chantagem da extrema-esquerda e as exigências de Bruxelas, tem
muito pouco poder. Mas tem precisamente o único poder de que precisa, que é o
de cartelizar o Estado e distribuir “jobs for the boys”. Não apenas meros
empregos com ordenado mensal, mas também lugares estratégicos para fazer
imediatos ou futuros negócios.
Sempre houve disto? Sim,
mas numa escala muito menor, o que faz a diferença. A semente da desfiguração
ideológica do PS começou com Sócrates. O engenheiro tanto era estatista como
social-democrata ou neo-liberal. Era o que fosse preciso para fazer jorrar
dinheiro a rodos. A “cunha socrática” encravada entre a esquerda e a direita do
PS vive envolta na mesma nebulosa ideológica; hoje dissolveu-se no combustível
que faz mover o “costismo”. Para se perceber bem o que é o “costismo”, para
além da pessoa, dos métodos e das circunstâncias do próprio Costa, basta
atentar na atitude dos barões socialistas ricos de há muito ou ricos de há
pouco. Almeida Santos, essa referência tutelar do PS, assiste a tudo impávido e
sereno; quem cala consente. Jorge Coelho diz de António Costa o pior possível
em privado e enaltece-o na televisão. O “costismo” não os ameaça, favorece-os.
O “costismo” significa o dobre a finados pelo Partido Socialista fundado por
Mário Soares e triunfalmente defendido por Mário Soares contra o Partido
Comunista. E anuncia o nascimento de um novo partido desembaraçado de
identidade ideológica, pronto a envergar qualquer ideologia que lhe sirva de
instrumento para se alçar ao poder. O poder pelo poder, traduzido no deleite de
mandar e simbolizado pelo carro preto com motorista e um cortejo de assessores;
e sobretudo o poder como instrumento e oportunidade para “subir na vida” e
fazer dinheiro.
Le roi est mort. Vive le
roi!
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