sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Donzília Martins e o seu Espólio de saudade








 Um artista, seja da palavra, da música ou da pintura, tem duas vidas: a primeira é aquela que  lhe pertence e a segunda é aqueloutra que pertence aos seus leitores e admiradores. Naquela realiza-se, desdobra-se, gera-se e cumpre-se no ciclo existencial como ser finito que é. Nesta distribui-se, entrega-se e perpetua-se no processo gerativo da maturação universal. A aldeia global não é mais do que a amálgama daquilo que Lavoisier purificou na máxima: na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. 
 Depois da leitura de mais este pequeno-grande livro – Espólio de Saudade - de Donzília Martins,  fica-se com a ideia de que esta escritora, nasceu, formatou-se e cumpriu o seu ciclo de vida,  preparando-se para nos legar as moléculas da sua formatação multimodal. Não será o universo o somatório desse processo criativo que se chama progresso?
  Rainer Maria Rilke insistiu em afirmar que o importante daquilo que se cria, não é através dos grandes mistérios mas sim na obtenção de algo que se retire da vulgaridade.
 Ocorre-me lavrar este introito quando me chega às mãos este Espólio de Saudade, ora em prosa ora em verso, abordando temática comum a todos os viventes, de qualquer espaço e tempo. Em 128 páginas de texto corrido, aqui e ali, ilustrado com fotos, a preto e branco, que a própria autora obteve, Donzília Martins convida-nos para o repasto desta recolha que arrasta consigo, desde que nasceu, em 25 de Setembro de 1942, na vila de Murça. O que fez ela para se realizar, profissional e familiarmente na vida, já quase todos nós conhecemos pelos jornais, revistas e livros. Gastou-a a aprender e a ensinar. Constituiu família e também nisso foi admirável. Dois filhos amorosos e três netinhas encantadoras.
  «Estendo as mãos à lareira apagada e a fogueira da infância ainda me aquece a alma. Cada lembrança é um tijolo a construir a minha vida. Através da escrita quero eternizar a minha memória para que não morra. Por isso regresso, para guardar o que de belo existiu na minha infância» - confessa  a autora
Donzília Martins, depois desta jornada sócio-profissional de eleição, deu largas à sua imaginação fértil de bondade, rica de humanismo e transbordante de amor telúrico. Já depois de aposentada e da Família, positivamente, estruturada, voltou-se para as artes e as letras. Uma boa dúzia de livros, em prosa e poesia, garantiram-lhe acesso ao convívio dos eleitos que em certames literários, em encontros formais e associações de classe, lhe granjearam estatuto de escritora de pleno direito. Na página 5 desta sua mais recente obra, explica a razão deste seu último livro. Nas primeiras 33 páginas memoriza, em desabafos intimistas, esses diálogos que tantas vezes travou com os irmãos e familiares mais próximos. Decora as paredes  da casa paterna com versos saudosos que respiram «doces prazeres, suaves alegrias, balidos de pastores, carrilhões dos cavalos e aromas de flores»
 Já na 2ª parte mais doze tempos, visitas ou estações,  a justificarem «estas recordações do passado, este espólio de saudade que me ajudam a viver, me dão alento e ânimo para a caminhada que se aproxima do fim. São vários os quadros que moldam os recantos da minha memória, as telas da minha lembrança que me construíram a vida» (pp.36).
  Na terceira parte  a autora rememora cada canto do seu berço, inspirada no escalonamento que o Prof. Ricardo Vieira,  fez quando caracterizou «uma casa na Província». Uma espécie de via-sacra àquele calvário que Donzília Martins protagoniza, agora, desde a página 39 à 88. Constitui um prazer espiritual, ajoelhar em cada uma destas estações, numa espécie de oração penitencial.
   A terceira parte deste Espólio de Saudade, desde a página 91 à 128.  É uma espécie de regresso do filho pródigo ao lar que teve tanta vida, tanta gente e tanto sonho, quando já  nada mais existe do que solidão, silêncio, vazio sepulcral.
 O Sentimentalismo fala mais alto: «As portas rangem! Nem interessa fecharem bem!/... fecham (agora) devagar, dolentes, em vozes mortiças./ Passo-lhes a mão. Sorriem para mim como quem pega a cruz/...»
Esta autora Transmontana, declaradamente, merece palmas pelo seu roteiro existencial. Por razões profissionais radicou-se em Paredes. Mas a vila de Murça orgulha-se de tê-la ao lado Frei Diogo de Murça, de António Borges Coelho e de alguns outros que já merecem ter o seu «panteão». As obras que já editou, os reflexos da sua produção literária e o seu mediatismo em tantos e tão diversificados palcos, já mereciam um lugar ao sol na praça onde se mostra o herói nacional que é o Soldado Milhões. E porque não municipalizar a Casa-Museu com o espólio da Família Donzíla Martins?  Seria uma simbólica prenda para os seus 73 anos  de vida, prenhe de autenticidade, de fraternidade e de saber.

                                                                          Barroso da Fonte

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