Um artista, seja da palavra, da música ou da
pintura, tem duas vidas: a primeira é aquela que lhe pertence e a segunda é aqueloutra que
pertence aos seus leitores e admiradores. Naquela realiza-se, desdobra-se,
gera-se e cumpre-se no ciclo existencial como ser finito que é. Nesta
distribui-se, entrega-se e perpetua-se no processo gerativo da maturação
universal. A aldeia global não é mais do que a amálgama daquilo que Lavoisier
purificou na máxima: na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.
Depois da leitura de mais este pequeno-grande
livro – Espólio de Saudade - de Donzília Martins, fica-se com a ideia de que esta escritora,
nasceu, formatou-se e cumpriu o seu ciclo de vida, preparando-se para nos legar as moléculas da
sua formatação multimodal. Não será o universo o somatório desse processo
criativo que se chama progresso?
Rainer Maria Rilke insistiu em afirmar que o
importante daquilo que se cria, não é através dos grandes mistérios mas sim na
obtenção de algo que se retire da vulgaridade.
Ocorre-me lavrar este introito quando me chega
às mãos este Espólio de Saudade, ora em prosa ora em verso, abordando temática
comum a todos os viventes, de qualquer espaço e tempo. Em 128 páginas de texto
corrido, aqui e ali, ilustrado com fotos, a preto e branco, que a própria
autora obteve, Donzília Martins convida-nos para o repasto desta recolha que
arrasta consigo, desde que nasceu, em 25 de Setembro de 1942, na vila de Murça.
O que fez ela para se realizar, profissional e familiarmente na vida, já quase
todos nós conhecemos pelos jornais, revistas e livros. Gastou-a a aprender e a
ensinar. Constituiu família e também nisso foi admirável. Dois filhos amorosos
e três netinhas encantadoras.
«Estendo as mãos à lareira apagada e a
fogueira da infância ainda me aquece a alma. Cada lembrança é um tijolo a
construir a minha vida. Através da escrita quero eternizar a minha memória para
que não morra. Por isso regresso, para guardar o que de belo existiu na minha
infância» - confessa a autora
Donzília Martins, depois
desta jornada sócio-profissional de eleição, deu largas à sua imaginação fértil
de bondade, rica de humanismo e transbordante de amor telúrico. Já depois de
aposentada e da Família, positivamente, estruturada, voltou-se para as artes e
as letras. Uma boa dúzia de livros, em prosa e poesia, garantiram-lhe acesso ao
convívio dos eleitos que em certames literários, em encontros formais e
associações de classe, lhe granjearam estatuto de escritora de pleno direito.
Na página 5 desta sua mais recente obra, explica a razão deste seu último
livro. Nas primeiras 33 páginas memoriza, em desabafos intimistas, esses
diálogos que tantas vezes travou com os irmãos e familiares mais próximos.
Decora as paredes da casa paterna com
versos saudosos que respiram «doces prazeres, suaves alegrias, balidos de
pastores, carrilhões dos cavalos e aromas de flores»
Já na 2ª parte mais doze tempos, visitas ou
estações, a justificarem «estas
recordações do passado, este espólio de saudade que me ajudam a viver, me dão
alento e ânimo para a caminhada que se aproxima do fim. São vários os quadros
que moldam os recantos da minha memória, as telas da minha lembrança que me
construíram a vida» (pp.36).
Na terceira parte a autora rememora cada canto do seu berço, inspirada
no escalonamento que o Prof. Ricardo Vieira,
fez quando caracterizou «uma casa na Província». Uma espécie de
via-sacra àquele calvário que Donzília Martins protagoniza, agora, desde a
página 39 à 88. Constitui um prazer espiritual, ajoelhar em cada uma destas
estações, numa espécie de oração penitencial.
A terceira parte deste Espólio de Saudade,
desde a página 91 à 128. É uma espécie
de regresso do filho pródigo ao lar que teve tanta vida, tanta gente e tanto
sonho, quando já nada mais existe do que
solidão, silêncio, vazio sepulcral.
O Sentimentalismo fala mais alto: «As portas
rangem! Nem interessa fecharem bem!/... fecham (agora) devagar, dolentes, em
vozes mortiças./ Passo-lhes a mão. Sorriem para mim como quem pega a cruz/...»
Esta autora Transmontana,
declaradamente, merece palmas pelo seu roteiro existencial. Por razões
profissionais radicou-se em Paredes. Mas a vila de Murça orgulha-se de tê-la ao
lado Frei Diogo de Murça, de António Borges Coelho e de alguns outros que já
merecem ter o seu «panteão». As obras que já editou, os reflexos da sua
produção literária e o seu mediatismo em tantos e tão diversificados palcos, já
mereciam um lugar ao sol na praça onde se mostra o herói nacional que é o
Soldado Milhões. E porque não municipalizar a Casa-Museu com o espólio da
Família Donzíla Martins? Seria uma
simbólica prenda para os seus 73 anos de
vida, prenhe de autenticidade, de fraternidade e de saber.
Barroso da Fonte
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