quarta-feira, 22 de abril de 2015

Ressonar em democracia numa ante-visão do inferno

Barroso da Fonte
Os católicos aprenderam, em criança, que há dois  espaços possíveis depois da vida terrena: céu e inferno. E que, entre estes dois  estados de alma, existem mais dois para a purificação das penas leves: o limbo para aqueles morrem sem serem batizados  e o purgatório que se destina àqueles que, merecendo o céu, têm de expiar os pecadilhos no purgatório, antes de lá chegarem. Declaro que sou católico a meio tempo e que no começo desta crónica já terei escandalizado algum mais fervoroso que sabe ter eu frequentado durante dez anos, o Seminário de Vila Real.  A vida prática colheu desta minha passagem pelo seminário: a disciplina, a organização e o  respeito pelos valores supremos da existência humana que o Estado Novo consignou na trilogia: Deus, Pátria e Família.
Pessoalmente respeito estes três princípios básicos. Mas a filosofia que elegi para tema permanente da minha formação académica e existencial, sobretudo no tocante a Deus, garante-me que alguém superior ao homem, criou o mundo e ordenou-o para que cumpra os seus desígnios. O homem é fruto da criação do mundo e da evolução cujo processo evolutivo, Charles Darwin, desenvolveu e já foi aceite pela Comunidade Científica.
 Chamei este introito ao tema metafórico do título para simbolizar o drama que envolve a sociedade portuguesa. Para uma boa parte dos cidadãos, durante o Estado Novo Portugal vivia no «inferno». Era tudo mau, vivia-se com fome, não havia liberdade, eram monstruosas as diferenças sociais.  Só os ricos estudavam e ocupavam os empregos públicos. Enfim, Portugal era um «inferno».
 A PIDE era o diabo e diabolizava tudo e todos. Só um golpe armado poderia atemorizar, neutralizando, aquela polícia política. Obviamente, só os profissionais das armas, podiam liderar esses processo. Ao longo da história dos povos foi assim que aconteceu. A classe civil e a classe militar.  Aquela produzia riqueza, geria a sociedade, fazia as leis e aplicava-as. Estoutra fazia cumprir essas leis, mediante o recurso à força das armas. Eis o que aconteceu em 25 de Abril de 1974. A força das armas justificou-se mediante a passagem social do «inferno» para o «céu».
 Quarenta anos depois o que vemos?
A única coisa boa foi esta liberdade de poder escrever este relato e ter a certeza de que, na próxima edição do jornal, onde pretendo que saia, ele aparecer lá, tal-qual o mandei.
 Mas atenção: a liberdade tem limites. E eu também não posso dizer tudo o que sei. Porque só devo escrever aquilo que, em meu entender, corresponde aos factos que podem ser demonstrados. Daí que se viva numa liberdade condicionada. E também não é líquido que se diga tudo porque a censura que existia, tolerava  o corte, mas muitas vezes, perguntava em que contexto se escrevera. E, quando dadas explicações aceitáveis, a tesourada saía mesmo. Era uma questão de saber dar a volta ao texto. Obviamente falo por experiência própria.
  Numa altura em que se confrontam realidades, entre o que era e o que é o país, não podemos concluir que se vive no «céu». Ou antes: o «céu» de hoje existe apenas para quem é desonesto, para quem não quer trabalhar, para quem faz tábua rasa da normalidade.   
 A normalidade social  consiste em viver bem, respeitando os outros. Em produzir riqueza e receber o prémio justo do seu trabalho. Em ser  frontal e possuir idoneidade suficiente para assumir os erros e a responsabilidade pelo que se faz.
Ora nestes quarenta anos  houve de tudo e do seu contrário. A corrupção, a mentira,  a imoralidade, a ignorância, o salve-se quem puder, o quanto pior melhor, são evidências latentes, hora a hora, dia a dia, ano a ano.
 Em todas as classes sociais há exemplos do que de pior se pode imaginar. A começar pelos políticos de proa. Todos prometem o céu e a terra. Quando chegam aos cargos a que se candidatam, envergonham mais quem se deixou seduzir, do que eles próprios. Já tivemos exemplos reais em quase todas as forças políticas. E que péssimos exemplos temos a comprovar esta lastimável evidência! Do mesmo modo: em  todas as classes sócio-profissionais, mesmo daquelas que nunca imaginaríamos que adviessem, esses escândalos, essas deploráveis excrescências aparecem escarrapachadas nas televisões, nas rádios e nos jornais. Perdeu-se a vergonha, perdeu-se o bom senso, perdeu-se a noção da responsabilidade singular e coletiva.
Mente-se hoje com a mesma coragem e convicção com que há meio século se diferenciavam a verdade da mentira. Mata-se hoje um ser humano, com a mesma frieza com que se matavam moscas, ratos ou toupeiras. Rouba-se o rico e o pobre, como se não houvesse fronteiras entre o crime e a normalidade. Chamar gatuno, ladrão, filho deste ou daquele são palavrões que tinham uma carga ética quase ao nível do crime de morte e que hoje se proferem, olhos nos olhos, se escrevem nas paredes da casa, onde se vive, nos cartazes que percorrem ruas, se gravam em filmes televisivos e em mensagem que circulam nas redes sociais, como se não existissem regras ao bom nome cívico do ser humano.
                                                                   Barroso da Fonte



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