José António Saraiva - in jornal Sol |
Nas poucas sessões da Quadratura
do Círculo a que assisti, Pacheco Pereira era 'o intelectual', Lobo Xavier 'o
pragmático' e António Costa 'o político'.
Costa tem de construir uma nova
'narrativa' onde encaixem as suas afirmações na Póvoa
Pacheco Pereira era normalmente o
primeiro a falar, e fazia-o com mais coração do que razão, isto é, com mais emotividade
do que racionalidade.
É claro que, sendo um homem erudito,
arranjava argumentos racionais para defender a sua tese - mas a posição de
partida estava carregada de emoção e subjectivismo.
Lobo Xavier falava habitualmente
a seguir, e punha ordem na conversa.
Contra o voluntarismo um tanto
ingénuo de Pacheco, fazia o debate descer à terra e colocava as questões com a
frieza de um médico legista a dissecar um cadáver.
Quanto a António Costa,
mantinha-se calado enquanto os outros peroravam, com um sorriso enigmático e
vagamente irónico nos lábios, só intervindo no fim.
E aí falava em geral pouco e
nunca dizia nada de marcante - o que era interpretado como uma vontade de não
se expor, dadas as suas ambições políticas.
Durante o consulado de José
Sócrates também não se ouviu Costa dizer algo de extraordinário, quer como
ministro ou presidente da Câmara de Lisboa.
Em geral debitou o discurso
oficial do partido e nunca se demarcou do primeiro-ministro, mesmo na fase
final, em que o país caminhava para o desastre.
E chegou a atacar com violência
quem se 'atreveu' a publicar notícias incómodas para Sócrates nos processos
Freeport e Face Oculta.
Poderia dizer-se que o fazia por
lealdade ao líder.
O futuro encarregar-se-ia, porém,
de desmentir esta hipótese: ao avançar contra António José Seguro, António
Costa mostrou que a fidelidade ao líder do partido não estava na primeira linha
das suas preocupações.
Apesar deste percurso um tanto
cinzento e em que nunca verdadeiramente se revelou, António Costa foi elevado à
condição de D. Sebastião do PS e recebido em delírio pelos militantes.
Agora é que ele vai mostrar o que
vale! - pensavam todos.
Só que Costa continuou sem dizer
nada de especial.
Como líder da oposição, foi-se
limitando a repetir monocordicamente uma frase estafada: «A austeridade
falhou».
Até que, ao perfazer cem dias na
liderança, decidiu sair da casca e, perante uma plateia de chineses, fez uma
afirmação surpreendente: Portugal está melhor do que há quatro anos.
Caiu o Carmo e a Trindade.
Ele apressou-se a explicar que,
ao dirigir-se a estrangeiros, põe os interesses do país à frente dos interesses
partidários.
Mas o 'mal' estava feito e vai
persegui-lo até às eleições.
Muita gente no PS sentiu-se
compreensivelmente traída - e a restante começou a interrogar-se quanto às
reais qualidades do líder que elegeu triunfalmente há três meses e meio.
Alfredo Barroso, um militante
histórico, desfiliou-se com estrondo.
As redes sociais encheram-se de
comentários e a comunicação social explorou o episódio ao máximo.
Por isso mesmo, era dispensável o
barulho feito à volta do assunto por parte da direita.
Esta teria feito bastante melhor
se se tivesse deixado estar quieta, assistindo caladinha às guerras dos
socialistas entre si e aos ecos na imprensa, rádio e TV, em lugar de tentar ridicularizar
o líder socialista.
Teria sido mais eficaz e não
transmitiria uma desagradável sensação de oportunismo político.
A questão essencial, contudo, tem
que ver com o próprio PS.
E aí julgo que António Costa
pecou por já não ter feito aos portugueses, com algumas nuances, o discurso que
fez aos chineses.
Há muito tempo que Costa deveria
ter dito: «É verdade que o país está melhor do que em 2011, mas ainda tem
graves problemas e o PS está mais bem colocado do que este Governo para os
resolver».
E, depois disto, referiria os
problemas e apresentaria as respectivas soluções.
Isto, sim, seria um discurso
credível.
Pois não é evidente para qualquer
pessoa mediana que o país está melhor do que em 2011?
É certo que o desemprego
aumentou, que muitas empresas faliram, que muita gente perdeu salários e
reformas.
Mas não será também verdade que
renasceu a esperança?
Que em 2011 Portugal era um país
de rastos, sem dinheiro nos cofres públicos, sem ninguém disposto a
emprestar-lho, sem qualquer credibilidade no exterior - e hoje é um país com
reservas para mais de um ano, que se financia a juros nunca vistos, e
internacionalmente respeitado?
Hoje, Portugal pode olhar para
cima - enquanto em 2011 só podia olhar envergonhadamente para baixo.
Querer tapar o sol com a peneira,
negar as evidências, nunca compensa.
Mesmo antes de Costa ter dito aos
chineses que o país está diferente para melhor, já não pegava o seu discurso
assente na ideia de que «a austeridade falhou».
Ao ouvirmos isto, parecía
que estávamos na RTP Memória - até
porque, lá fora, Portugal começava a ser apontado como um caso de sucesso.
Mas agora, António Costa tem
mesmo de mudar o disco.
Se o país está melhor, é porque a
austeridade não falhou.
Daqui não há fuga possível.
Assim, o líder socialista precisa
de elaborar uma nova 'narrativa' onde esta ideia encaixe.
Falta saber se ainda vai a tempo.
P.S. - Sinto-me inibido para
escrever sobre o caso da dívida de Passos Coelho à Segurança Social, pois tenho
a convicção de que, se fossem vasculhar o meu passado de relações com o fisco,
Segurança Social e administração pública em geral, haveria algumas faltas. E
pergunto: isso impedir-me-ia, para o resto da vida, de exercer funções
públicas? É uma pergunta que milhões de portugueses poderão fazer a si
próprios.
Sem comentários:
Enviar um comentário