terça-feira, 10 de março de 2015

A Quadratura do Círculo - José António Saraiva

José António Saraiva - in jornal Sol
Nas poucas sessões da Quadratura do Círculo a que assisti, Pacheco Pereira era 'o intelectual', Lobo Xavier 'o pragmático' e António Costa 'o político'.
Costa tem de construir uma nova 'narrativa' onde encaixem as suas afirmações na Póvoa
Pacheco Pereira era normalmente o primeiro a falar, e fazia-o com mais coração do que razão, isto é, com mais emotividade do que racionalidade.
É claro que, sendo um homem erudito, arranjava argumentos racionais para defender a sua tese - mas a posição de partida estava carregada de emoção e subjectivismo.
Lobo Xavier falava habitualmente a seguir, e punha ordem na conversa.
Contra o voluntarismo um tanto ingénuo de Pacheco, fazia o debate descer à terra e colocava as questões com a frieza de um médico legista a dissecar um cadáver.
Quanto a António Costa, mantinha-se calado enquanto os outros peroravam, com um sorriso enigmático e vagamente irónico nos lábios, só intervindo no fim.
E aí falava em geral pouco e nunca dizia nada de marcante - o que era interpretado como uma vontade de não se expor, dadas as suas ambições políticas.
Durante o consulado de José Sócrates também não se ouviu Costa dizer algo de extraordinário, quer como ministro ou presidente da Câmara de Lisboa.
Em geral debitou o discurso oficial do partido e nunca se demarcou do primeiro-ministro, mesmo na fase final, em que o país caminhava para o desastre.
E chegou a atacar com violência quem se 'atreveu' a publicar notícias incómodas para Sócrates nos processos Freeport e Face Oculta.
Poderia dizer-se que o fazia por lealdade ao líder.
O futuro encarregar-se-ia, porém, de desmentir esta hipótese: ao avançar contra António José Seguro, António Costa mostrou que a fidelidade ao líder do partido não estava na primeira linha das suas preocupações.
Apesar deste percurso um tanto cinzento e em que nunca verdadeiramente se revelou, António Costa foi elevado à condição de D. Sebastião do PS e recebido em delírio pelos militantes.
Agora é que ele vai mostrar o que vale! - pensavam todos.
Só que Costa continuou sem dizer nada de especial.
Como líder da oposição, foi-se limitando a repetir monocordicamente uma frase estafada: «A austeridade falhou».
Até que, ao perfazer cem dias na liderança, decidiu sair da casca e, perante uma plateia de chineses, fez uma afirmação surpreendente: Portugal está melhor do que há quatro anos.
Caiu o Carmo e a Trindade.
Ele apressou-se a explicar que, ao dirigir-se a estrangeiros, põe os interesses do país à frente dos interesses partidários.
Mas o 'mal' estava feito e vai persegui-lo até às eleições.
Muita gente no PS sentiu-se compreensivelmente traída - e a restante começou a interrogar-se quanto às reais qualidades do líder que elegeu triunfalmente há três meses e meio.
Alfredo Barroso, um militante histórico, desfiliou-se com estrondo.
As redes sociais encheram-se de comentários e a comunicação social explorou o episódio ao máximo.
Por isso mesmo, era dispensável o barulho feito à volta do assunto por parte da direita.
Esta teria feito bastante melhor se se tivesse deixado estar quieta, assistindo caladinha às guerras dos socialistas entre si e aos ecos na imprensa, rádio e TV, em lugar de tentar ridicularizar o líder socialista.
Teria sido mais eficaz e não transmitiria uma desagradável sensação de oportunismo político.
A questão essencial, contudo, tem que ver com o próprio PS.
E aí julgo que António Costa pecou por já não ter feito aos portugueses, com algumas nuances, o discurso que fez aos chineses.
Há muito tempo que Costa deveria ter dito: «É verdade que o país está melhor do que em 2011, mas ainda tem graves problemas e o PS está mais bem colocado do que este Governo para os resolver».
E, depois disto, referiria os problemas e apresentaria as respectivas soluções.
Isto, sim, seria um discurso credível.
Pois não é evidente para qualquer pessoa mediana que o país está melhor do que em 2011?
É certo que o desemprego aumentou, que muitas empresas faliram, que muita gente perdeu salários e reformas.
Mas não será também verdade que renasceu a esperança?
Que em 2011 Portugal era um país de rastos, sem dinheiro nos cofres públicos, sem ninguém disposto a emprestar-lho, sem qualquer credibilidade no exterior - e hoje é um país com reservas para mais de um ano, que se financia a juros nunca vistos, e internacionalmente respeitado?
Hoje, Portugal pode olhar para cima - enquanto em 2011 só podia olhar envergonhadamente para baixo.
Querer tapar o sol com a peneira, negar as evidências, nunca compensa.
Mesmo antes de Costa ter dito aos chineses que o país está diferente para melhor, já não pegava o seu discurso assente na ideia de que «a austeridade falhou».
Ao ouvirmos isto, parecía que  estávamos na RTP Memória - até porque, lá fora, Portugal começava a ser apontado como um caso de sucesso.
Mas agora, António Costa tem mesmo de mudar o disco.
Se o país está melhor, é porque a austeridade não falhou.
Daqui não há fuga possível.
Assim, o líder socialista precisa de elaborar uma nova 'narrativa' onde esta ideia encaixe.
Dito de outro modo, Costa tem de fazer a quadratura do círculo.
Falta saber se ainda vai a tempo.


P.S. - Sinto-me inibido para escrever sobre o caso da dívida de Passos Coelho à Segurança Social, pois tenho a convicção de que, se fossem vasculhar o meu passado de relações com o fisco, Segurança Social e administração pública em geral, haveria algumas faltas. E pergunto: isso impedir-me-ia, para o resto da vida, de exercer funções públicas? É uma pergunta que milhões de portugueses poderão fazer a si próprios.


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