Quando um conflito a nível mundial aparece nas
páginas dos jornais, logo surge a opinião respeitada (e bem paga, diga-se)
deste ou daquele comentador. O que mais incomoda, no caso de Portugal (mesmo
nos diversos países), é o tipo de análise redutora. Sempre com pano de fundo a
questão militar e a questão estratégica (a que juntam sempre os aspectos
económicos). Neste tipo de análise nunca é considerado o aspecto histórico,
sociológico ou religioso. E da etnografia nada se diz.
Este intróito vem a propósito dos conflitos
recentes, sobretudo do que diz respeito à Ucrânia (mas serve na mesma para os
outros).
Quando os analistas abordam apenas a questão da estratégia, incorrem num erro
crasso de cultura redutora.
A 24 de Abril de 2008, depois da última Cimeira
da NATO em que George W. Bush participou, em Bucareste, Vladimir Putin virou-se
para o então Presidente dos Estados Unidos da América e disse-lhe: “Tu não
estás a entender, George, a Ucrânia nem sequer é um Estado, parte do seu
território pertence à Europa de Leste, mas a parte maior foi uma oferta que lhe
fizemos”.
Vladimir não estava a falar de estratégia, nem de
economia, nem de interesses. Estava simplesmente a falar da História. E dos
aspectos sociológicos e etnográficos.
O erro de Vladimir é que conhece muito pouco a
História do seu país. A Grande Rússia é um enorme território composto de
geografias anexadas ou conquistadas, Foram os casos de territórios consideráveis que apenas se tornaram independentes depois do desmembramento da antiga URSS em 1989, mas sobre os quais mantém muita influência: o Cazaquistão (1854), o Turquestão
(1873), a Província do Amur (1859), o Pamir (1895), metade da Moldávia – para
eles a Bessarábia (1821).
Deixemos, portanto, todo o extenso território
conquistado no século XVII, a partir de Tomsk (1604) que se alongou por toda a
Sibéria. Foquemo-nos apenas na Ucrânia.
Em meados do século X (948), Menahem ibn Saruq, um judeu a viver no
extremo ocidental do mundo conhecido, em tinta feita de bílis, endereçou uma
missiva a outro judeu na extremidade oriental, o rei José. Menahem apenas
cumpria a missão que lhe fora confiada pelo seu patrono e senhor, Hasdai ibn
Shaprut, homem considerado indispensável por Abdarramão III, califa de
Al-Andalus, na Península Ibérica.
José era o rei dos Cazares, um imenso reino
judaico situado nas elevadas pradarias da Ásia Ocidental, banhado pelo curso
inferior do Volga, tendo como fronteira a leste o mar Cáspio (conhecido à época
por mar Jorjan), o mar Negro, ou “Constantino” a oeste, e as montanhas do
Cáucaso a norte. A ele pertencia toda a Crimeia e (supõe-se) a cidade de Kiev.
Esta história vem soberbamente descrita nos
fragmentos descobertos por Solomon Schechter no imenso depósito de Geniza do
Cairo e agora recontada por Simon Schama no seu mais recente livro: A
História dos Judeus.
Este reino durou um século. Em meados do século
XI, juntou-se às crónicas das catástrofes judaicas. Acossado pelos exércitos
dos Rus de Kiev (Rus é a Primeira Rússia, note-se), compostos por Escandinavos e Eslavos e, com alguma
regularidade pelos Bizantinos, seria arrasado e a sua capital real de Atil
completamente pilhada.
A partir daqui a história deste território foi-se
confundindo com o da própria Rússia. Umas vezes conquistado, outras anexado.
Importa porém, revisitando os fragmentos, acrescentar o seguinte: Quando os Bizantinos
derrotaram os Persas em meados do século VII, estava em vigor a política de
conversão do imperador Heraclio. Muitos dos judeus que falavam grego, fugiram
dos Balcãs e da Crimeia, junto do Bósforo (principalmmente da cidade de
Pantikapeum), onde haviam prosperado durante vários séculos, transpondo o
Cáucaso em direcção à segura Cazária ainda pagã. Foram bem recebidos e aí
permaneceram durante gerações, unindo-se por casamento às populações locais.
Com o tempo, esses judeus deixaram de se distinguir do resto da população, e um
deles tornou-se bek dos seus exércitos, nomeado rei após uma vitória de
assombro. Esse primeiro rei judaico chamado Bulan, casado com uma judia ,
Serakh, adoptaria o nome teofórico de Sabriel e daria origem a uma dinastia
judaica. Sucederam-lhe mais seis reis judaicos: Obadia, Ezequias, Menashe,
Benjamim, Aarão e, finalmente, José.
Se Vladimir conhecesse a História do seu país,
não teria sido tão imprudente com o
presidente americano em 2008.
Armando Palavras
Post-scriptum
No dia da independência, os pró-russos,
humilharam prisioneiros de guerra afectos a Kiev. Uma clara violação de dois
artigos da III Convenção de Genebra: o 13º que protege os prisioneiros de guerra
de “insultos e curiosidade pública”, e o 14º que lhes garante o “respeito da
sua pessoa e da sua honra”.
Ao violarem estes dois artigos deixaram de ser
combatentes para serem terroristas.
Quando o ás dos ases da aviação da Primeira
Guerra, o alemão Manfred von Richthofen, o mítico Barão Vermelho, foi abatido,
um caça inglês deixou cair uma mensagem sobre as linhas alemãs, onde constava o
seguinte: “ O cavalheiro barão Manfred
von Richthofen morreu em combate a 21 de abril de 1918 e foi sepultado com todas as honras militares”.
von Richthofen morreu em combate a 21 de abril de 1918 e foi sepultado com todas as honras militares”.
Foi o que aconteceu. Embora inimigos,
respeitavam-se.
Actualizado em 27 de Agosto
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