Zacarias Escarcela e Outros Contos | Agenda Cultural de Lisboa
Dos seis contos que compõem a presente antologia só Zacarias Escarcela e A Bem da Causa (este com cortes da censura, sem conhecimento do autor) foram publicados na revista Novi Mir. Todos os outros foram publicados pela primeira vez fora da URSS, ou internamente em circulação clandestina. Estes textos partilham um sentimento de comunhão com a natureza. Sobre o aroma da macieira escreve Soljenitsin: “Não há no mundo nenhuma comida, nenhum vinho, nem mesmo o beijo de uma mulher que seja para mim mais doce do que este ar inebriante de floração, de humidade, de frescor”. Além da suspeição geral pelas conquistas tecnológicas (patentes em O Patinho ou em Meio de Locomoção), partilham também, num estilo que não abdica da ironia em surdina, a aspiração pelos valores universais da liberdade e da espiritualidade, o que explica a recusa sistemática de publicação, pelo regime soviético, destas magníficas pequenas narrativas, quase todas baseadas em episódios reais.
Dos seis contos que compõem a presente antologia só Zacarias Escarcela e A Bem da Causa (este com cortes da censura, sem conhecimento do autor) foram publicados na revista Novi Mir. Todos os outros foram publicados pela primeira vez fora da URSS, ou internamente em circulação clandestina. Estes textos partilham um sentimento de comunhão com a natureza. Sobre o aroma da macieira escreve Soljenitsin: “Não há no mundo nenhuma comida, nenhum vinho, nem mesmo o beijo de uma mulher que seja para mim mais doce do que este ar inebriante de floração, de humidade, de frescor”. Além da suspeição geral pelas conquistas tecnológicas (patentes em O Patinho ou em Meio de Locomoção), partilham também, num estilo que não abdica da ironia em surdina, a aspiração pelos valores universais da liberdade e da espiritualidade, o que explica a recusa sistemática de publicação, pelo regime soviético, destas magníficas pequenas narrativas, quase todas baseadas em episódios reais.
160 páginas- Tradução de António Pescada
Sobejamente conhecido pelo assombroso livro “À espera no centeio”, uma das mais importantes obras do século XX, J.D. Salinger
explorou o formato conto de forma a transpor, para o papel, pessoas,
sentimentos ou acontecimentos resultantes de uma imaginação cuja
fertilidade bebia alguma da sua irreverência em traços que misturavam a
realidade norte-americana do pós-Segunda Grande Guerra e da década de
1950 com outros apontamentos (sur)reais.
Para além da já referida obra-prima, que tem como principal
personagem o inesquecível Holden Caulfield, Salinger teve ainda espaço
para articular na sua mente peças como “Franny and Zooey” – um conto
originalmente publicado em 1955 no “New Yorker” – ou este “Nove Histórias” (Quetzal, 2014) cuja primeira edição remonta ao ano de 1953.
Um pouco como em toda a sua infelizmente curta obra, Salinger explora
em “Nove Histórias” duas importantes facetas que transporta e reveste
os seus personagens. Falamos da inocência e da hipocrisia, marcas que,
numa linguagem literária única, acabam por ser como a soma das
diferentes partes das pessoas que são os heróis dos contos deste
norte-americano, que chegou a ser apontado como um dos nomes grandes da
contracultura da segunda metade do século XX.
Num contíguo espaço de poucas dezenas de páginas, J.D. Salinger leva o
leitor para um mundo ética e moralmente complexo, cuja atmosfera
deveras ansiosa tem como maior alicerce um humor particular que, em
determinados contos, funciona como uma mescla entre filosofia e
psicoterapia. A sátira social – pode mesmo falar-se em caricatura –
utilizada por Salinger descarna relações sociais, questões políticas ou
comportamentos duvidosos e traz à tona dois elementos muito presentes no
seu trabalho, como o são a solidão e a ausência de amor.
Das vidas “normais” aos estilos mais burgueses ou intelectuais, “Nove
Histórias” explora fraquezas várias de pessoas que são peças do imenso
puzzle que é a sociedade moderna, que há muito deixaram cair por terra o
“sonho” – seja qual for a sua nacionalidade. E é com uma réstia de
esperança que Salinger promove a heróis ocasionais as crianças em
detrimento do espetro adulto, composto por criaturas cínicas e egoístas
refugiadas em cigarros, álcool ou atitudes que, de certa forma, profanam
a inocência dos mais novos.
Personagens como Charles, de “Para Esmé – com amor e sordidez”, o
pequeno narrador de “O homem que ri” ou Lionel de “Em baixo no bote”
vagueiam entre marés oscilantes de inocência e absurdo, todos eles com
uma inata capacidade de esgravatar as várias camadas da perceção que
podem desaguar em rios oníricos ou revestidos de alguma “inverdade” que
possibilite resguardar-se da agressão adulta sob variadíssimas formas –
com destaque para a desilusão, ou apenas ser sinónimo de delicadeza,
ternura e alguma traquinice ou de precoce sapiência, especialmente nos
casos de Charles no supra citado conto “Para Esmé – com amor e sordidez”
e Teddy, do conto homónimo.
Por outro lado, em histórias como “Linda boca e verdes meus olhos” ou
“Pai torcido em Connecticut”, são os diálogos que marcam toda a
cadência e nem mesmo alguns “vícios” da oralidade colocam em causa a
riqueza das conversas mais ou menos, intimas, mais ou menos certas, mais
ou menos interessantes. Esses diálogos são também habilmente
trabalhados por Salinger de forma a reforçar características dos
personagens, que crescem para o leitor através de “gestos” ou tiques que
relatam com detalhe a descrição emocional desses homens e mulheres.
Ler contos como o psicanalítico “Um dia ideal para o peixe-banana”, o
reflexivo “Pouco antes da guerra com os esquimós”, o surreal “O homem
que ri” e o compulsivo e existencialista “A fase azul de De
Daumier-Smith é sentir a literatura no máximo de seu esplendor, abraçar
personagens que crescem, desmoronam ou implodem no limitado espaço de um
conto que pode ser bem mais pertinente, íntegro ou envolvente que
livros com centenas de páginas.
Mais que um coleção de contos, “Nove Histórias” é um livro para ler,
guardar, reler, recomendar e sentir como nosso. Salinger merece essa
homenagem, nós merecemos um escritor assim.