A primeira Rússia, sob o nome de
“Rus”, foi constituída pelo Estado de Kiev entre 860 e o século XII. E
nesse período conheceu uma era gloriosa, mas sob o domínio dos mongóis da
“Horda de Ouro”. Em 1380 dá-se um episódio decisivo na história daquela que
mais tarde se passou a designar Moscovía:
a batalha de Kulíkovo, chefiada pelo grande principe Dmitri Ivánovich de
Moscovo. À frente de uma coligação de forças russas, derrota o Kan Mamay.
Os tártaros (como eram conhecidos
os mongóis) são assim, praticamente esmagados. Esta vitória cria nos russos a
ideia de que Moscovo estava destinada a conquistar a independência russa e a
unificar os seus territórios. E assim foi. Ivan III de Moscovo deixou de lhes
pagar o tributo em 1480. E depois da queda de Bizâncio, a capital do mundo
ortodoxo, em 1453 a favor dos Otomanos, os russos convenceram-se de que Moscovo
passaria a ser a terceira Roma, a verdadeira capital ortodoxa. Não foi por
acaso que os seus príncipes passaram a usar o epíteto de Czar (César em russo).
Em 1478, Ivan III conquista Novgorod e em 1510 Kiev. Ivan, O Terrível, nas suas conquistas de 1552 e 1556 abre as
portas para a Sibéria e para o Mar Negro. A Oeste, a Polónia e a Lituania
(unidas desde 1569), refrearam as pretensões moscovitas até ao fim da Guerra
dos Trinta Anos, no século XVII. Estava assim formada Moscovia, como era
conhecida a Rússia pelo Ocidente a partir do século XV, posteriormente a Grande
Rússia
Pedro, o Grande, e Catarina
II, fizeram mais tarde da Rússia, um poderoso Estado (Império), através da
contenda com o monarca da Suécia. E nesta em que os russos foram vitoriosos, a
Ucrânia “apostou no cavalo errado” quando Iván Mazepa, o governador dos
cossacos ucranianos, prestou colaboração a Carlos XII da Suécia. Esta vitória
de Pedro em Poltava (Ucrânia) no ano de 1709, foi o segundo momento decisivo na
história da Rússia, pois pode considerar-se como a data de fundação do Império
russo.
A história recente da Rússia é,
apesar de tudo, menos elegante. No
inicio do século XX, surgem as atribulações que muitos conhecemos. DostoiévsKi,
em Demónios, alerta para as origens do terrorismo, que culmina com a
revolução de 1917 e com os anos que se lhe seguem. Á cabeça destacam-se dois
nomes singulares: Lenine e Estaline. Dos crimes contra a Humanidade (tão ou
mais graves do que aqueles cometidos por outro facínora - Hitler) orientados
por estes dois patifes, já neste local fizemos algumas referências. Existem
milhões de páginas que os denunciam (apesar de durante décadas serem defendidos
por Sartre, Brecht, entre outros). Na primeira linha podemos citar Soljenitsine (O Império de Gulag) e Sakarov. E não chegavam dezenas de
milhares de livros para os descrever. Mas um deles, dos mais chocantes, foi a fome
genocidária preparada por Estaline na Ucrânia em 1932. E não foi por acaso.
Os ucranianos respeitavam a propriedade privada, iam assim, contra a ortodoxia
leninista/estalinista.
Vassili Grossman escreveu
duas obras enormes de denúncia: Vida e Destino (a sua obra prima, para
muitos) e Tudo Passa, a nossa preferida. Ambas publicadas recentemente
em português na Dom Quixote, com tradução do russo por Nina Guerra e Filipe
Guerra. A primeira valeu-lhe o ostracismo dos seus compatriotas por ter
comparado (e bem) o totalitarismo soviético ao totalitarismo da Alemanha Nazi.
O segundo foi apenas publicado 20 anos após a morte do autor, não chegando a
escrever a história do povo Arménio (o primeiro genocídio do século XX) como
havia pretendido já no final da vida. Em Tudo Passa, traça-nos um
retrato nu e cru da Revolução Soviética e dos seus primeiros caudilhos: Lenine
e Estaline.
Do sistema diz coisas como isto:
“Na sua firmeza de princípios [referindo-se ao bolchevique Lev Mékler]
revolucionários, meteu na prisão o seu próprio pai e fez depoimentos contra ele
na Tcheka da provincia” (p.173). De Lenine ressalta da sua personalidade
comportamentos execráveis: “A intolerância de Lénin (…), o despreso pela
liberdade, a crueldade em relação aos discordantes e a capacidade de, sem
hesitar, varrer da face da terra não só fortalezas mas também distritos,
regiões, províncias que contestassem a sua razão ortodoxa ...(p.188). E de Estaline atiça-nos o seu instinto
sanguinário: “ O carácter de Stálin juntou todos os traços da Rússia
esclavagista, impiedosa em relação às pessoas” (p. 211). E acrescenta:” Stálin
não tinha medo de quase ninguém, mas teve medo da liberdade ...” (p. 215). Da
liberdade enquanto fundamento da criação humana como nos diz o personagem de Tudo
Passa: “ O que se mantém, se desenvolve e vive é a verdadeira força – a
liberdade. Viver significa ser livre. Nem tudo o que é real será razoável. Tudo
o que é desumano é também absurdo e inútil” (p. 222).
Vladimir Putini, nasceu na antiga
União Soviética, com uma larga tradição de terror e crimes hediondos. E como
todos os leninistas e estalinistas não entendeu as palavras “proféticas” dos
pensadores russos do século XIX – Dostoiévski, Belínski, Gógol ou Tchaadáev.
Não falavam da glória militar russa, falavam, como nos diz Grossman, da glória do coração russo, da fé russa e do
seu exemplo. Ou seja, da alma russa. Desenvolver acções bélicas como a
demonstrada na Crimeia, tipicas do homem de Oitocentos é não perceber isto. Foi
assim a Rússia dos boiardos, a de Ivan, o Terrivel, a de Pedro, o
Grande, a de Catarina II, atingindo o seu pleno triunfo na época de
Estaline. “O principio milenar de crescimento da ilustração, da ciência e da
potência industrial russas por meio do crescimento da não liberdade humana
...”(p. 213).
O sr. Putini, contudo, já
amadureceu com as reformas de Gorbatchev, por essa razão muitos ocidentais lhe
não entendem a atitude. Ainda por cima quando há cerca de 10 anos, reconhecendo
(e bem) com frontalidade e transparência os crimes praticados nos Gulags,
mandou editar uma edição renovada da obra de
Soljenitsine, preparada para as crianças russas!
Os últimos desenvolvimentos na
Crimeia apontam para aquilo que se adivinhava. Uma acção bélica daquela
natureza não se prepara em tão poucos dias. Há muito que estava planeada
(talvez há anos, depois da independência da Ucrânia), com um calculismo absurdo
e desumano.
Com a acção na Crimeia, Putini
demonstra que a Rússia tem poder bélico para avançar sobre o território
ucrâniano, sobretudo no Leste. A Crimeia que na verdade já era dominada pelos
russos, após o tratado de 1994 assinado por russos e americanos (onde a Ucrânia
abdicou das armas nucleares a troco da sua independência), foi o pretexto para
um problema mais profundo: Kiev, a Primeira Rússia – a “Rus”.
Como Kiev, momentaneamente é
objectivo difícil de alcançar (sem a destruir), o sr. Putin vai tentar dividir
o território para facilmente ocupar o Leste do país. Aliás, onde já lá tem
gente das forças especiais.
Se chegar a acordo com o mundo
livre, pelo menos a Crimeia já ninguém lha tira durante largos anos.
O que se espera do mundo livre,
é que não abdique da liberdade! Como o tem demonstrado desde que o conflito
rebentou.
Armando Palavras
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