Museu do Côa. Inverno de 2010. |
UM MUSEU PARA O VALE DO CÔA
O Museu do Côa procurou
sintetizar toda esta informação arqueológica e foi concebido como uma montra da
grande Arte do Côa e seu enquadramento arqueológico, este em particular a
partir das escavações dos acampamentos Magdalenenses do Fariseu.
Com efeito, as concentrações
rupestres, hoje agrupadas em cerca de 60 sítios dispersos por uma vasta área
geográfica, tornam extremamente difícil a sua abertura a visitas públicas. Por
outro lado e mercê dos particularismos tecno-morfológicos rupestres, nem todos
estes sítios apresentam painéis tão ricamente historiados ou facilmente percepcionáveis,
como os da fase antiga da arte do Côa. Com efeito, o PAVC só mantém 3 sítios
abertos permanentemente ao público: a Canada do Inferno, a Penascosa e a
Ribeira de Piscos e mesmo estes podem ser pontualmente encerrados como acontece
todos os anos nas épocas de cheias. Episodicamente pode também visitar-se o
sítio do Fariseu, em particular durante o Verão. Está também eventualmente
prevista a abertura futura de novos sítios, como sejam a Quinta da Barca e
alguns sectores na envolvente do Museu do Côa, como o Vale de José Esteves, a
Vermelhosa e o Vale de Cabrões. Estas visitas são sempre aconselháveis como um
complemento à visita ao Museu e a sua manutenção é fundamental e deve ser
mantida pela nova Fundação Côa/Parque, a entidade que a partir de Abril passará
a gerir todo o vasto património do Côa e do seu Museu. Claro que, para isso, o
modelo de gestão do próprio sistema de visitação ao território deverá talvez
ser revisto...
O Museu do Côa foi inicialmente
concebido para ser construído no próprio local de implantação da abandonada
barragem do Côa, na sua margem esquerda. Era um projecto arquitectonicamente
tão ambicioso quanto emblemático pelo evidente simbolismo que se continha na
escolha daquele local. Por um lado, implicava o abandono deliberado, assumido e
definitivo da barragem do Côa (e sabemos quanto, à época, isso era importante),
e por outro centrava em si uma fortíssima carga simbólica que como tal emergia
das novas políticas públicas que conseguiam, arrostando os ventos da polémica,
substituir uma grande obra de engenharia (já em construção) na base dos velhos
modelos de gestão económica que exploravam o interior como antigamente se
exploravam as colónias, por um grande projecto eminentemente cultural
implantado no depauperado e muito despovoado hinterland português. O excessivo tempo de maturação e laboração do
projecto de arquitectura e engenharia, sucessivamente reelaborado e a espaços
emagrecido para conter uma certa megalomania inicial (as primeiras projecções
de custos eram elevadíssimas), e os ventos da política caseira, acabaram por
inviabilizar a escolha deste primeiro projecto, que acabaria por ser
substituído pelo actual Museu do Côa, erguido entre 2007-2010 e que foi
inaugurado pelo próprio Primeiro-Ministro em 30 de Julho de 2010.
Museu do Côa, sector nascente |
Salvou-se apesar de tudo a ideia
de construirmos um grande museu de arte e arqueologia no Vale do Côa. Também a
actual implantação não deixa de ter uma outra carga simbólica, aliando a
vastidão de belíssimos e puros horizontes de uma vincada e muito forte paisagem
cultural, à originalidade do projecto de arquitectura, cuja construção se
inspira e simula uma grande laje de xisto tombada e virada simultaneamente ao
Côa e ao Douro (implantado como se fora um vasto terraceamento de uma antiga
quinta vinhateira). A longa e ziguezagueante fenda da entrada principal,
rasgada qual falha geológica activa, conduz o visitante ao interior da terra e
ao deslumbramento da vivíssima arte fóssil do Côa. É um jogo de espelhos - e
também eles lá estão fisicamente através das instalações criativas de Ângelo de
Sousa, um artista convidado que aqui deixou talvez a sua última obra pública,
já que faleceu recentemente - entre a arte da luz que é a Grande Arte do Côa, e
a sua assumida musealização em ambiente de um negro quase cárstico! Matéria
ainda para algumas discussões... Mas uma das características do Museu do Côa, e
assim foi concebido, é o facto de ter muito poucos originais (o vale é o
museu...) e a sua exposição permanente poder estar em contínua mutação,
integrando em qualquer momento quer as novas descobertas rupestres, quer os
ventos da nova museologia, já que uma excessiva carga de multimedia se arrisca
a rapidamente ficar ultrapassada.
Entretanto, o Museu do Côa, para
além de afirmar a vitalidade arqueológica da Arte do Côa, em particular a dos
ciclos paleolíticos, pretende manter sempre uma ligação muito viva à criação
artística da nossa contemporaneidade. Afinal os artistas pré-históricos do Côa
foram os primeiros criadores de uma invenção das formas e de uma gramática de
símbolos que hoje estão entranhados no nosso mais fundo imaginário. Há uma
tendência figurativa para o padronizado perfil absoluto com uma perna por par e
cornos em perspectiva torcida ou semi-torcida, mas lá estão já as perspectivas,
o olhar linear que súbito se desdobra em requebros de tridimensionalidade, o
experimentalismo e o expressionismo das incisões que concedem ao artista uma
maior liberdade de desenho... tudo está já expresso e à espera de ser
redescoberto no impressionante legado dos artistas do Côa. Como diria um
Picasso espantado perante os frescos de Lascaux, que estamos nós a inventar que
esta gente não tenha já feito há milhares de anos?
Por isso o Museu do Côa expõe em
permanência quer as citadas instalações em espelho de Ângelo de Sousa, quer a
escultura/instalação de Alberto Carneiro "Árvore Mandala para os Artistas
do Côa" que, de acordo com a própria definição do autor, é uma obra
escultórica "constituída por um conjunto de elementos trabalhados e
gravados em madeira que se organizam no espaço como uma MANDALA (uma Mandala
para os gravadores do Vale do Côa) articulada entre círculos e quadrados
concêntricos marcados pelas intersecções estruturantes".
Museu do Côa, aberto ao Douro e ao Côa. |
Esta obra emblemática que é já
hoje o Museu do Côa e que até à data tem sido um sucesso de públicos, não deixa
de espantar o visitante mais desprevenido. Que começa por admirar o arrojo e a
simbiose de uma construção singular - tão singular desde logo nos seus módulos
de betão que absorveram, triturados, os próprios xistos dali arrancados e é
isso que concede ao museu aquela tonalidade de um amarelo esmaecido que com o
tempo ganhará a pátina local - na paisagem esmagadora rasgada pelas duas
correntes fluviais que ali em frente se abraçam. E depois se deixa perder nas
sucessivas salas do museu vagando milénios no tempo longo paleolítico, um
vendaval de murmúrios das nossas memórias primordiais. Eis ali o homem da
Ribeira de Piscos, a mais antiga representação humana conhecida em território
português. Eis além a obra-prima de uma contida genialidade que é o abraço
caricioso dos dois cavalos da rocha 1 de Piscos. Eis outra vez a admirável
cabra bicéfala da rocha 3 da Quinta da Barca, lídimo exemplo da invenção do
movimento há mais de 20.000 anos e para mim a mais icónica de todas as gravuras
do Côa. E eis ainda mais além aqueles pesados auroques (os modelos vivos
adultos atingiam mais de uma tonelada!) que há milénios nos fitam e cujo olhar
saído do fundo dos tempos, uma vez fixado, não mais deixará de conjugar-se com
as nossas perplexidades. E eis ainda essa admirável cabra linearmente incisa,
de traço depurado, que ali se ergue sob um raríssimo vestígio de solo (não, o
homem paleolítico não desenhava solos!) há mais de 10.000 anos... e tantas,
tantas outras criações riscadas na pedra há centenas de milhares de dias...
longos dias têm mil anos...
CONCLUSÃO
O Museu do Côa tem sido gerido
como uma estrutura do Parque Arqueológico do Vale do Côa e assim espero possa
continuar a ser. Até à data em que escrevo (Março de 2011), tem sido um serviço
dependente do IGESPAR, IP. Mas, em vésperas da inauguração do Museu, o
Ministério da Cultura anunciou a criação de um modelo de gestão do tipo
fundacional que deverá operacionalizar-se a partir de Abril, já que a
Côa/Parque - Fundação para a Salvaguarda e Valorização do Vale do Côa, foi
entretanto criada pelo Decreto-Lei nº 35/2011, de 8 de Março. É uma fundação
pública com regime de direito privado que nasce em tempos de profundíssima
crise financeira e de mentalidades. Sejamos optimistas...
Entretanto, gostaria de deixar
aqui público testemunho sobre a imperiosa necessidade de se ampliar ainda mais
a classificação de Património da Humanidade que a Unesco atribuiu ao Vale do
Côa em Dezembro de 1998. Com efeito, deve lutar-se pela ampliação desta honrosa
classificação a todos os outros sítios rupestres já identificados em território
português com testemunhos artísticos da pré-história antiga com evidentes
paralelos nos do Côa. Sítios cuja localização e características arqueológicas
estão sintetizadas no meu último livro sobre a Arte do Côa (BAPTISTA, 2009). E
já após a sua publicação, esta classificação foi em meados de 2010 estendida ao
sítio castelhano de Siega Verde (no Águeda), a maior concentração conhecida de
arte paleolítica ao ar livre fora da área do Côa. Mas e porque a Unesco
privilegia hoje a classificação de grandes conjuntos arqueológicos de
características similares dispersos por vastos territórios, é de toda a
urgência que à classificação já institucionalizada do Vale do Côa e sua
extensão Siega Verde, sejam agora acrescentados os de Pousadouro (um conjunto
notável), Sampaio, Ribeira da Sardinha e Fraga Escrevida (todos no transmontano
Vale do Sabor), a Fraga do Gato (ladeando a calçada de Alpajares em Freixo de
Espada à Cinta) e o clássico penhasco decorado de Mazouco (no Douro), para só
citarmos os sitos a norte do Douro. A que se deverá acrescentar o recentemente
identificado de Foz Tua, mais uma importante extensão do foco do Côa - esse
evidente sítio de agregação primordial -, com evidentíssimos paralelos
estilísticos e tecno-morfológicos em gravuras do Côa e muito em particular da
Canada do Inferno.
Todos estes sítios constituem
afinal os últimos testemunhos do que poderemos classificar como o primeiro
"império artístico" em território hoje português, claramente centrado
no Vale do Côa e com todas estas "antenas" já identificadas nos
xistos dos nossos vales fluviais mais interiorizados.
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Para
aprofundar o conhecimento das pesquisas arqueológicas mais recentes no Vale do
Côa, podem consultar-se:
AUBRY, T. (Ed.) (2009): 200
séculos da história do Vale do Côa: incursões na vida quotidiana dos
caçadores-artistas do Paleolítico. IGESPAR, I.P. e Côa Museu Eds. (Trabalhos de
Arqueologia 52), Lisboa, 511 p.
BAPTISTA, A.M. (2009): O Paradigma Perdido. O Vale do Côa e a arte
paleolítica de ar livre em Portugal/Paradigm Lost. Côa Valley and the
open-air Palaeolithic art in Portugal. Edições Afrontamento e Parque
Arqueológico do Vale do Côa, Porto/Vila Nova de Foz Côa, 253 p.
Licenciado em História desde 1975
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Dedicado desde 1970 à actividade
arqueológica, realizou inúmeros trabalhos de formação e investigação no país e
no estrangeiro. Integrou desde 1972 as equipas encarregues pelo Estado do
levantamento arqueológico da arte rupestre do Vale do Tejo. Coordenou mais
tarde os levantamentos arqueológicos da arte rupestre do Guadiana na área do
Alqueva e bem assim os da Arte do Côa, desde 1995 até à actualidade. Foi
bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e do Estado em várias acções de
formação e investigação em arte pré.histórica. Foi igualmente bolseiro do
Deutschen Akademischen Austauschienstes, em 1975 e 1977, na antiga Alemanha
Federal.
Entre Julho de 1979 e Maio de
1997 foi arqueólogo do Parque Nacional da Peneda-Gerês, aqui tendo criado e
coordenado o respectivo Departamento de Arqueologia e realizado a Carta
Arqueológica desta área protegida.
Entre Maio de 1997 e Abril de
2007 foi Director do Centro Nacional de Arte Rupestre (CNART), sediado em Vila
Nova de Foz Côa. Foi entretanto professor convidado da cadeira de Arte Pré e
Proto-Histórica da Universidade do Minho. É actualmente director do Parque
Arqueológico do Vale do Côa/Museu do Côa.
É membro de várias agremiações de
natureza científica e associativa. É membro do Comité de Arte Rupestre do
ICOMOS desde 2004.
Participou em inúmeros
congressos, colóquios, seminários e encontros de natureza científica em
Portugal e no estrangeiro, quer no domínio da arqueologia e arte rupestre, mas
também no da defesa do património e ambiente. Tem sido orador convidado em
várias universidades portuguesas e estrangeiras.
Fez parte do Grupo de Trabalho
criado pelo Ministério da Cultura em 2002 para a realização do Museu do Côa,
inaugurado em Julho de 2010. Coordenou a redacção do guião museológico deste
Museu, tendo sido seu co-orientador científico.
É autor de uma vasta obra
científica, em especial no domínio da arte pré-histórica e muito em particular
relativamente à arte do Côa. Da sua bibliografia destacam-se os dois volumes
dedicados à arte do Côa: "No Tempo sem Tempo, A Arte dos Caçadores
Paleolíticos do Vale do Côa", Ed. do PAVC, 1999; e "O Paradigma
Perdido. O Vale do Côa e a Arte Paleolítica de Ar Livre em
Portugal"", ed. bilingue (Port./Ing.), Ed. Afrontamento/PAVC, 2009.
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