sexta-feira, 1 de junho de 2012

António Martinho Baptista - Eu projecto, tu projectas... O Parque Arqueológico e o Museu do Côa (3)

Museu do Côa. Inverno de 2010.

UM MUSEU PARA O VALE DO CÔA

O Museu do Côa procurou sintetizar toda esta informação arqueológica e foi concebido como uma montra da grande Arte do Côa e seu enquadramento arqueológico, este em particular a partir das escavações dos acampamentos Magdalenenses do Fariseu.
Com efeito, as concentrações rupestres, hoje agrupadas em cerca de 60 sítios dispersos por uma vasta área geográfica, tornam extremamente difícil a sua abertura a visitas públicas. Por outro lado e mercê dos particularismos tecno-morfológicos rupestres, nem todos estes sítios apresentam painéis tão ricamente historiados ou facilmente percepcionáveis, como os da fase antiga da arte do Côa. Com efeito, o PAVC só mantém 3 sítios abertos permanentemente ao público: a Canada do Inferno, a Penascosa e a Ribeira de Piscos e mesmo estes podem ser pontualmente encerrados como acontece todos os anos nas épocas de cheias. Episodicamente pode também visitar-se o sítio do Fariseu, em particular durante o Verão. Está também eventualmente prevista a abertura futura de novos sítios, como sejam a Quinta da Barca e alguns sectores na envolvente do Museu do Côa, como o Vale de José Esteves, a Vermelhosa e o Vale de Cabrões. Estas visitas são sempre aconselháveis como um complemento à visita ao Museu e a sua manutenção é fundamental e deve ser mantida pela nova Fundação Côa/Parque, a entidade que a partir de Abril passará a gerir todo o vasto património do Côa e do seu Museu. Claro que, para isso, o modelo de gestão do próprio sistema de visitação ao território deverá talvez ser revisto...
O Museu do Côa foi inicialmente concebido para ser construído no próprio local de implantação da abandonada barragem do Côa, na sua margem esquerda. Era um projecto arquitectonicamente tão ambicioso quanto emblemático pelo evidente simbolismo que se continha na escolha daquele local. Por um lado, implicava o abandono deliberado, assumido e definitivo da barragem do Côa (e sabemos quanto, à época, isso era importante), e por outro centrava em si uma fortíssima carga simbólica que como tal emergia das novas políticas públicas que conseguiam, arrostando os ventos da polémica, substituir uma grande obra de engenharia (já em construção) na base dos velhos modelos de gestão económica que exploravam o interior como antigamente se exploravam as colónias, por um grande projecto eminentemente cultural implantado no depauperado e muito despovoado hinterland português. O excessivo tempo de maturação e laboração do projecto de arquitectura e engenharia, sucessivamente reelaborado e a espaços emagrecido para conter uma certa megalomania inicial (as primeiras projecções de custos eram elevadíssimas), e os ventos da política caseira, acabaram por inviabilizar a escolha deste primeiro projecto, que acabaria por ser substituído pelo actual Museu do Côa, erguido entre 2007-2010 e que foi inaugurado pelo próprio Primeiro-Ministro em 30 de Julho de 2010.
Museu do Côa, sector nascente
Salvou-se apesar de tudo a ideia de construirmos um grande museu de arte e arqueologia no Vale do Côa. Também a actual implantação não deixa de ter uma outra carga simbólica, aliando a vastidão de belíssimos e puros horizontes de uma vincada e muito forte paisagem cultural, à originalidade do projecto de arquitectura, cuja construção se inspira e simula uma grande laje de xisto tombada e virada simultaneamente ao Côa e ao Douro (implantado como se fora um vasto terraceamento de uma antiga quinta vinhateira). A longa e ziguezagueante fenda da entrada principal, rasgada qual falha geológica activa, conduz o visitante ao interior da terra e ao deslumbramento da vivíssima arte fóssil do Côa. É um jogo de espelhos - e também eles lá estão fisicamente através das instalações criativas de Ângelo de Sousa, um artista convidado que aqui deixou talvez a sua última obra pública, já que faleceu recentemente - entre a arte da luz que é a Grande Arte do Côa, e a sua assumida musealização em ambiente de um negro quase cárstico! Matéria ainda para algumas discussões... Mas uma das características do Museu do Côa, e assim foi concebido, é o facto de ter muito poucos originais (o vale é o museu...) e a sua exposição permanente poder estar em contínua mutação, integrando em qualquer momento quer as novas descobertas rupestres, quer os ventos da nova museologia, já que uma excessiva carga de multimedia se arrisca a rapidamente ficar ultrapassada.
Entretanto, o Museu do Côa, para além de afirmar a vitalidade arqueológica da Arte do Côa, em particular a dos ciclos paleolíticos, pretende manter sempre uma ligação muito viva à criação artística da nossa contemporaneidade. Afinal os artistas pré-históricos do Côa foram os primeiros criadores de uma invenção das formas e de uma gramática de símbolos que hoje estão entranhados no nosso mais fundo imaginário. Há uma tendência figurativa para o padronizado perfil absoluto com uma perna por par e cornos em perspectiva torcida ou semi-torcida, mas lá estão já as perspectivas, o olhar linear que súbito se desdobra em requebros de tridimensionalidade, o experimentalismo e o expressionismo das incisões que concedem ao artista uma maior liberdade de desenho... tudo está já expresso e à espera de ser redescoberto no impressionante legado dos artistas do Côa. Como diria um Picasso espantado perante os frescos de Lascaux, que estamos nós a inventar que esta gente não tenha já feito há milhares de anos?
Por isso o Museu do Côa expõe em permanência quer as citadas instalações em espelho de Ângelo de Sousa, quer a escultura/instalação de Alberto Carneiro "Árvore Mandala para os Artistas do Côa" que, de acordo com a própria definição do autor, é uma obra escultórica "constituída por um conjunto de elementos trabalhados e gravados em madeira que se organizam no espaço como uma MANDALA (uma Mandala para os gravadores do Vale do Côa) articulada entre círculos e quadrados concêntricos marcados pelas intersecções estruturantes".
Museu do Côa, aberto ao Douro e ao Côa.
Esta obra emblemática que é já hoje o Museu do Côa e que até à data tem sido um sucesso de públicos, não deixa de espantar o visitante mais desprevenido. Que começa por admirar o arrojo e a simbiose de uma construção singular - tão singular desde logo nos seus módulos de betão que absorveram, triturados, os próprios xistos dali arrancados e é isso que concede ao museu aquela tonalidade de um amarelo esmaecido que com o tempo ganhará a pátina local - na paisagem esmagadora rasgada pelas duas correntes fluviais que ali em frente se abraçam. E depois se deixa perder nas sucessivas salas do museu vagando milénios no tempo longo paleolítico, um vendaval de murmúrios das nossas memórias primordiais. Eis ali o homem da Ribeira de Piscos, a mais antiga representação humana conhecida em território português. Eis além a obra-prima de uma contida genialidade que é o abraço caricioso dos dois cavalos da rocha 1 de Piscos. Eis outra vez a admirável cabra bicéfala da rocha 3 da Quinta da Barca, lídimo exemplo da invenção do movimento há mais de 20.000 anos e para mim a mais icónica de todas as gravuras do Côa. E eis ainda mais além aqueles pesados auroques (os modelos vivos adultos atingiam mais de uma tonelada!) que há milénios nos fitam e cujo olhar saído do fundo dos tempos, uma vez fixado, não mais deixará de conjugar-se com as nossas perplexidades. E eis ainda essa admirável cabra linearmente incisa, de traço depurado, que ali se ergue sob um raríssimo vestígio de solo (não, o homem paleolítico não desenhava solos!) há mais de 10.000 anos... e tantas, tantas outras criações riscadas na pedra há centenas de milhares de dias... longos dias têm mil anos...


CONCLUSÃO

O Museu do Côa tem sido gerido como uma estrutura do Parque Arqueológico do Vale do Côa e assim espero possa continuar a ser. Até à data em que escrevo (Março de 2011), tem sido um serviço dependente do IGESPAR, IP. Mas, em vésperas da inauguração do Museu, o Ministério da Cultura anunciou a criação de um modelo de gestão do tipo fundacional que deverá operacionalizar-se a partir de Abril, já que a Côa/Parque - Fundação para a Salvaguarda e Valorização do Vale do Côa, foi entretanto criada pelo Decreto-Lei nº 35/2011, de 8 de Março. É uma fundação pública com regime de direito privado que nasce em tempos de profundíssima crise financeira e de mentalidades. Sejamos optimistas...
Entretanto, gostaria de deixar aqui público testemunho sobre a imperiosa necessidade de se ampliar ainda mais a classificação de Património da Humanidade que a Unesco atribuiu ao Vale do Côa em Dezembro de 1998. Com efeito, deve lutar-se pela ampliação desta honrosa classificação a todos os outros sítios rupestres já identificados em território português com testemunhos artísticos da pré-história antiga com evidentes paralelos nos do Côa. Sítios cuja localização e características arqueológicas estão sintetizadas no meu último livro sobre a Arte do Côa (BAPTISTA, 2009). E já após a sua publicação, esta classificação foi em meados de 2010 estendida ao sítio castelhano de Siega Verde (no Águeda), a maior concentração conhecida de arte paleolítica ao ar livre fora da área do Côa. Mas e porque a Unesco privilegia hoje a classificação de grandes conjuntos arqueológicos de características similares dispersos por vastos territórios, é de toda a urgência que à classificação já institucionalizada do Vale do Côa e sua extensão Siega Verde, sejam agora acrescentados os de Pousadouro (um conjunto notável), Sampaio, Ribeira da Sardinha e Fraga Escrevida (todos no transmontano Vale do Sabor), a Fraga do Gato (ladeando a calçada de Alpajares em Freixo de Espada à Cinta) e o clássico penhasco decorado de Mazouco (no Douro), para só citarmos os sitos a norte do Douro. A que se deverá acrescentar o recentemente identificado de Foz Tua, mais uma importante extensão do foco do Côa - esse evidente sítio de agregação primordial -, com evidentíssimos paralelos estilísticos e tecno-morfológicos em gravuras do Côa e muito em particular da Canada do Inferno.
Todos estes sítios constituem afinal os últimos testemunhos do que poderemos classificar como o primeiro "império artístico" em território hoje português, claramente centrado no Vale do Côa e com todas estas "antenas" já identificadas nos xistos dos nossos vales fluviais mais interiorizados.

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Para aprofundar o conhecimento das pesquisas arqueológicas mais recentes no Vale do Côa, podem consultar-se:

AUBRY, T. (Ed.) (2009): 200 séculos da história do Vale do Côa: incursões na vida quotidiana dos caçadores-artistas do Paleolítico. IGESPAR, I.P. e Côa Museu Eds. (Trabalhos de Arqueologia 52), Lisboa, 511 p.
BAPTISTA, A.M. (2009): O Paradigma Perdido. O Vale do Côa e a arte paleolítica de ar livre em Portugal/Paradigm Lost. Côa Valley and the open-air Palaeolithic art in Portugal. Edições Afrontamento e Parque Arqueológico do Vale do Côa, Porto/Vila Nova de Foz Côa, 253 p.


 in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

O aurtor

António Martinho do Carmo Baptista (Alter do Chão,1950)
                                    ambaptista1950@sapo.pt
Licenciado em História desde 1975 pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Dedicado desde 1970 à actividade arqueológica, realizou inúmeros trabalhos de formação e investigação no país e no estrangeiro. Integrou desde 1972 as equipas encarregues pelo Estado do levantamento arqueológico da arte rupestre do Vale do Tejo. Coordenou mais tarde os levantamentos arqueológicos da arte rupestre do Guadiana na área do Alqueva e bem assim os da Arte do Côa, desde 1995 até à actualidade. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e do Estado em várias acções de formação e investigação em arte pré.histórica. Foi igualmente bolseiro do Deutschen Akademischen Austauschienstes, em 1975 e 1977, na antiga Alemanha Federal.
Entre Julho de 1979 e Maio de 1997 foi arqueólogo do Parque Nacional da Peneda-Gerês, aqui tendo criado e coordenado o respectivo Departamento de Arqueologia e realizado a Carta Arqueológica desta área protegida.
Entre Maio de 1997 e Abril de 2007 foi Director do Centro Nacional de Arte Rupestre (CNART), sediado em Vila Nova de Foz Côa. Foi entretanto professor convidado da cadeira de Arte Pré e Proto-Histórica da Universidade do Minho. É actualmente director do Parque Arqueológico do Vale do Côa/Museu do Côa.
É membro de várias agremiações de natureza científica e associativa. É membro do Comité de Arte Rupestre do ICOMOS desde 2004.
Participou em inúmeros congressos, colóquios, seminários e encontros de natureza científica em Portugal e no estrangeiro, quer no domínio da arqueologia e arte rupestre, mas também no da defesa do património e ambiente. Tem sido orador convidado em várias universidades portuguesas e estrangeiras.
Fez parte do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério da Cultura em 2002 para a realização do Museu do Côa, inaugurado em Julho de 2010. Coordenou a redacção do guião museológico deste Museu, tendo sido seu co-orientador científico.
É autor de uma vasta obra científica, em especial no domínio da arte pré-histórica e muito em particular relativamente à arte do Côa. Da sua bibliografia destacam-se os dois volumes dedicados à arte do Côa: "No Tempo sem Tempo, A Arte dos Caçadores Paleolíticos do Vale do Côa", Ed. do PAVC, 1999; e "O Paradigma Perdido. O Vale do Côa e a Arte Paleolítica de Ar Livre em Portugal"", ed. bilingue (Port./Ing.), Ed. Afrontamento/PAVC, 2009.

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