2.1. Nota
Introdutória
Sou mirandês que se construiu na Terra de Miranda.
Todas as referências fortes que me atam à minha forma de estar na vida,
bebia-as da língua e cultura mirandesas, ditas e ensinadas pelas modestas
gentes mirandesas que fizeram o favor de me ajudarem a ser o Homem que sou.
Acredito duro como ferro, que o acto que maior relevo teve e terá na minha
vida, foi sem dúvida alguma, conseguir levar a bom porto a aprovação da Lei do
Mirandês na Assembleia da República: obrigado a todos, e foram muitos, aos que
me ajudaram a construir a realidade de tão notável desígnio, pura obrigação de
cidadania e natural dever meu para com a Terra que me criou e deu referência
nobres e fortes.
A Terra de Miranda é uma terra de fronteira desde
há milénios, local de cruzamento de povos e de culturas, invadida vezes sem
conta: as suas gentes foram ficando, foram mudando, foram-se adaptando. Para
onde havíamos de ir se aquela é a nossa terra e não temos outra? É essa terra
que nos dá confiança e segurança. Foi aí que construímos a nossa casa, forjáramos
a nossa língua, apuramos os nossos saberes e sabores, aí nos cercamos de
cheiros, de sons, de cantares, de danças, em suma, criamos o nosso modo particular
de estar no mundo. Deixamos que a nossa língua se encostasse ao céu, voando nas
palavras sem conta que já foram ditas, agora incorporadas no ar, à espera que o
vento lhe devolva a voz, na raiva da ventania, no choro que se acolheu ao
correr das ribeiras, no sussurro calado das brisas de verão. Com a morte,
também as suas cinzas se foram misturando com a terra a ponto de, milhares de
anos depois, milhares de pessoas depois, já não ser possível distinguir quem é
o quê, para sabermos apenas que somos mirandeses.
A primeira das nossas resistências identitárias é,
assumidamente, a língua em que pensamos, que nos diz e sintetiza a cultura e paisagem,
pois nela assenta o que cimenta os laços comunitários. Pode ser uma língua
essencialmente oral, construída e preservada por gente analfabeta. Mas seria um
erro grave confundir analfabetismo com incultura. E uma língua é sempre um
monumento de cultura. Uma língua que resistiu centenas de anos é a língua dos
construtores de cultura e paisagem. Não é que outras línguas não possam dizer
essa cultura e paisagem. Podem, com certeza. Mas não fazem parte da sua alma,
da sua história, não se inserem nela harmoniosamente.
Basta olharmos para as palavras. De onde vêm? As
palavras voam pelo tempo. Há palavras de que se perde o sentido, e há que
refazer o seu caminho para as entender. Há também palavras que se agarram às
coisas, já não como palavras, mas apenas como sentidos. Num caso e noutro,
andaram caminhos que nem imaginamos, têm uma história que as deixa derreadas
com o peso de cultura que arrastam consigo. Por isso, quando cavamos uma
palavra à procura das suas raízes, pode acontecer-nos como aos arqueólogos:
começamos por coisas pequenas como letras e sons e acabamos a descobrir todo um
mundo.
É a língua que traz consigo o ar de família, é a
língua que lhe sabe os nomes e que descreve os processos vitais duma cultura e
paisagem. Como tal, determinada cultura e paisagem não se deixam apropriar por
quem as queira ver de fora, por quem as ignora ou as despreza, pois nelas reside
a diferença daquela cultura e paisagem, a diferença que permite resistir à
estandardização. O homem de um lugar é cultura e paisagem desse lugar: cresceu
comendo-as, respirando-as e a ele hão-de voltar as suas cinzas. Por isso o
desprezo pela língua é mãe do desprezo pela cultura e paisagem que se pretendem
proteger. Não é possível compreender uma cultura e paisagem sem a língua que
guarda o saber que permite essa compreensão. E sem compreensão não há
protecção. Deus criou o mundo com palavras dizendo-o, pois no princípio apenas
o verbo existia.
Procurar com seriedade as resistências identitárias
que transformam cada ambiente, cada cultura e paisagem, num monumento único é
também encontrar o sentido do nosso destino colectivo. É isso que dá valor universal
a cada cultura e paisagem, por pequena que seja a região onde se insere. Porque
a universalidade é uma dimensão que só pode ser dada pelo homem: e onde há uma
cultura singular há uma comunidade que a construiu; onde há uma cultura e
paisagem está o homem e a sua história; e onde está o homem, está um mundo que
é património de todos, está um pilar do orgulho da condição humana.
Como
todas as terras, a Terra de Miranda do Douro guarda em si saberes ancestrais
dando corpo a uma cultura ímpar, dentro duma alteridade cultural que resiste ao
tempo para nosso orgulho de sermos mirandeses e resistentes[1]
a um processo devastador da cultura de massas.
É
necessário entender este Povo com as suas particularidades, com o seu rio, as
suas terras de planalto, a sua vizinhança com Espanha, os seus cantares, as
suas danças e sobretudo a sua língua, que une as vontades, particulariza as
relações, estabelece laços de boa vizinhança e faz a diferença em relação ao “outro” que fala estranhas línguas “fidalgas ou grabes”.
Os
mirandeses mantêm a sua identidade porque se unem pela língua, porque se revêem
na imponência da sua catedral, porque foram capazes de resistir a guerras
demolidoras, criando heróis emblemáticos e motivadores que se chamaram Miguel,
ou Mirandum, tanto importa, porque são sempre ideais de valentia deste Povo que
resistiu à fome e criou ali o seu sustento e continuidade.
Dentro
da diversidade cultural do País, sem dúvida, a cultura mirandesa, as suas
gentes, os seus hábitos e costumes, as suas festas e lutos, têm uma
particularidade inconfundível, porque este povo foi capaz, ou teve condições
para manter a sua identidade e unidade pelo facto de ter preservado a língua
mirandesa.
Numa
leitura antropológica, a cultura dum Povo tem possibilidade de resistir mais
aos demolidores impactos da aculturação de massas, sobretudo, quando essa
cultura faz parte integrante do querer popular, faz parte do seu sentir mais
sagrado, como se fosse a alma dos seus antepassados.
Foi isto
que aconteceu com a Língua Mirandesa que resistiu ao Português, ao Castelhano,
tendo ido buscar as suas origens ao latim popular, tornando-se assim numa
língua neo-latina.
E esta
língua esteve presente no falar quotidiano do Concelho de Miranda do Douro e em
muitas aldeias de Vimioso e Mogadouro que se entendiam duma forma admirável e
tinham em comum afectos, tarefas agrícolas, técnicas, segredos artesanais e
sobretudo este código linguístico, que era um sinal da independência e da
vontade dum Povo.
Outras
línguas se teriam falado em Trás-os-Montes e alguns sinais existem numa
proximidade linguística ao Mirandês, em forma de dialecto, que ainda se ouve
nas Terras da Lombada, de Guadramil e de Rio de Onor, onde os velhos
comunitarismos dignificaram o homem na sua inter-ajuda e na partilha de bens e
serviços. Estas terras tiveram também o privilégio de resistir a um certo
capitalismo selvagem que massifica e torna o homem escravo do seu
individualismo e por isso foram capazes de preservar a sua identidade e a sua
forma particular de comunicação.
Na longa
noite fascista, o regime, procurou uma certa unidade Nacional. As escolas
primárias surgiram um pouco por todo o lado para difundirem o ideal: “Deus, Pátria e Família”. A língua de
Camões seria o ponto de união entre todos os Portugueses submissos ao mesmo
Chefe. O direito à diferença esteve ameaçado e foi nesta época que as línguas
minoritárias e os dialectos quase sucumbiram pela força duma puritana cultura
erudita que ridicularizava aqueles que se mantinham fiéis às culturas
autóctones e à língua dos seus pais.
O velho
Professor primário, amante do bom português, castigava severamente as crianças
que se atreviam a falar mirandês nas aulas públicas. E por isso, o mirandês,
durante muitos anos conservou-se numa certa clandestinidade, como se falar
mirandês revelasse a ignorância dum povo menor, incapaz de falar o português
vernáculo. Assim, era necessário guardar o segredo da língua e só em casa, ou
com os amigos se falava em
mirandês. Com os estranhos, fora de Miranda e nas Escolas
falava-se “grabe”, sinónimo da língua
“fidalga”, como se a fidalguia fosse
o outro lado dum outro Povo.
Mas uma
coisa é certa, o Povo Mirandês teve o privilégio de nunca se envergonhar da sua
língua que utilizava como um sinal, um património indelével, um ponto de união
com todos os mirandeses, que tinham, a mesma cultura, que dançavam os mesmo
laços, que se reviam na valentia do Mirandum, que fiavam a lã para fazer a “capa de honras” que cobria o homem
honrado de Miranda.
Por
isso, a dado momento, senti o dever de me empenhar na defesa desta língua, de a
ajudar a sair da sua clandestinidade, de a projectar com dignidade no universo
das línguas minoritárias, porque senti que a língua Mirandesa era o querer e a
vontade dum Povo que resistiu, guardou as riquezas do passado para glória e
orgulho dos vindouros.
Nesta
abordagem à Língua Mirandesa não vou falar da sua origem, da sua estrutura, da
sua gramática, pois esse trabalho já foi objecto de estudo de muitos filólogos
e amigos de Miranda do Douro e dos Mirandeses.
Irei,
tão somente, falar do meu modesto contributo em prol da Língua mirandesa, para
a tornar língua oficial, reconhecida por todo o País, pelo estrangeiro e pela
comunidade científica que se dedica ao estudo da linguística.
No devir
Histórico, tudo tem um tempo em que as coisas acontecem e dão consistência à
vontade popular que ganha a sua maioridade nos regimes Democráticos.
Assim,
para revisitar a Língua mirandesa em tempo de Democracia tive que regressar a
casa, ao convívio dos meus conterrâneos que sempre falaram com galhardia e
orgulho o mirandês. Tive que voltar com as vacas, segar o feno, guardar o gado,
acender o forno, entregar-me de alma e coração às actividades camponesas que
serviram de berço à oralidade do mirandês, que foi sempre a “língua do campo, do lar e do amor” no
dizer de Leite Vasconcelos.
A porta
está fechada e fala-se mirandês na intimidade da cama, nas cantigas de embalar,
na carícia que se faz à criança de colo, no chamar as ovelhas pelo nome mais
terno, no falar por falar à volta do lume aceso, porque só em mirandês é que o
homem de Miranda sente os afectos e o encontro de quem se deita no escano velho
onde descansaram gerações.
Por
isso, esta Língua é a Língua dum Povo telúrico e profundamente ligado à sua
terra e à sua casa. Um Povo que falava, longe dos livros e das escolas e que
nunca deu forma escrita à sua língua.
A língua
mirandesa só terá começado a surgir na sua forma escrita já nos alvores do
século XIX e desde então muito se tem escrito sobre esta língua com uma
fonologia riquíssima. Destacamos entre outros Leite de Vasconcelos que escreveu
os dois volumes de “Estudos de Filologia
Mirandesa”, o espanhol Menéndez Pidal que filia o mirandês no idioma que se
falava no antigo Reino de Leão, António Mourinho que edita “Nuossa alma i nuossa Tierra”.
Actualmente,
muitos escritores e estudiosos: António Maria Mourinho, Moisés Pires, Manuel
Preto, Domingos Raposo, Amadeu Ferreira, Manuela Barros Ferreira, Cristina
Martins, António Bárbolo Alves, José Francisco Fernandes, Carlos Ferreira,
Emílio Pires Martins, José Francisco Meirinhos, Abílio Pires, Duarte Martins,
Alfredo Cameirão, etc.; muitas Universidades como a de Coimbra, Clássica de
Lisboa, Clássica do Porto, Trás-os-Montes e Alto Douro, têm contribuído para que a Língua mirandesa seja conhecida,
estudada e falada.
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(continua)
[1]
Sobre a temática das resistências identitárias, ver o artigo de Júlio Meirinhos
“Língua, cultura e ambiente: as resistências identitárias” In Filandar / O Fiadeiro nº 16 (2005) 12.
Sem comentários:
Enviar um comentário