sábado, 5 de maio de 2012

A Terra de Miranda e a Lei da Lhégua Mirandesa (3)

Trabalho conjunto de Carlos Ferreira e Júlio Meirinhos


2. A Lei da Lhéngua Mirandesa (Júlio Meirinhos)

2.1. Nota Introdutória

Sou mirandês que se construiu na Terra de Miranda. Todas as referências fortes que me atam à minha forma de estar na vida, bebia-as da língua e cultura mirandesas, ditas e ensinadas pelas modestas gentes mirandesas que fizeram o favor de me ajudarem a ser o Homem que sou. Acredito duro como ferro, que o acto que maior relevo teve e terá na minha vida, foi sem dúvida alguma, conseguir levar a bom porto a aprovação da Lei do Mirandês na Assembleia da República: obrigado a todos, e foram muitos, aos que me ajudaram a construir a realidade de tão notável desígnio, pura obrigação de cidadania e natural dever meu para com a Terra que me criou e deu referência nobres e fortes.
A Terra de Miranda é uma terra de fronteira desde há milénios, local de cruzamento de povos e de culturas, invadida vezes sem conta: as suas gentes foram ficando, foram mudando, foram-se adaptando. Para onde havíamos de ir se aquela é a nossa terra e não temos outra? É essa terra que nos dá confiança e segurança. Foi aí que construímos a nossa casa, forjáramos a nossa língua, apuramos os nossos saberes e sabores, aí nos cercamos de cheiros, de sons, de cantares, de danças, em suma, criamos o nosso modo particular de estar no mundo. Deixamos que a nossa língua se encostasse ao céu, voando nas palavras sem conta que já foram ditas, agora incorporadas no ar, à espera que o vento lhe devolva a voz, na raiva da ventania, no choro que se acolheu ao correr das ribeiras, no sussurro calado das brisas de verão. Com a morte, também as suas cinzas se foram misturando com a terra a ponto de, milhares de anos depois, milhares de pessoas depois, já não ser possível distinguir quem é o quê, para sabermos apenas que somos mirandeses.
A primeira das nossas resistências identitárias é, assumidamente, a língua em que pensamos, que nos diz e sintetiza a cultura e paisagem, pois nela assenta o que cimenta os laços comunitários. Pode ser uma língua essencialmente oral, construída e preservada por gente analfabeta. Mas seria um erro grave confundir analfabetismo com incultura. E uma língua é sempre um monumento de cultura. Uma língua que resistiu centenas de anos é a língua dos construtores de cultura e paisagem. Não é que outras línguas não possam dizer essa cultura e paisagem. Podem, com certeza. Mas não fazem parte da sua alma, da sua história, não se inserem nela harmoniosamente.
Basta olharmos para as palavras. De onde vêm? As palavras voam pelo tempo. Há palavras de que se perde o sentido, e há que refazer o seu caminho para as entender. Há também palavras que se agarram às coisas, já não como palavras, mas apenas como sentidos. Num caso e noutro, andaram caminhos que nem imaginamos, têm uma história que as deixa derreadas com o peso de cultura que arrastam consigo. Por isso, quando cavamos uma palavra à procura das suas raízes, pode acontecer-nos como aos arqueólogos: começamos por coisas pequenas como letras e sons e acabamos a descobrir todo um mundo.
É a língua que traz consigo o ar de família, é a língua que lhe sabe os nomes e que descreve os processos vitais duma cultura e paisagem. Como tal, determinada cultura e paisagem não se deixam apropriar por quem as queira ver de fora, por quem as ignora ou as despreza, pois nelas reside a diferença daquela cultura e paisagem, a diferença que permite resistir à estandardização. O homem de um lugar é cultura e paisagem desse lugar: cresceu comendo-as, respirando-as e a ele hão-de voltar as suas cinzas. Por isso o desprezo pela língua é mãe do desprezo pela cultura e paisagem que se pretendem proteger. Não é possível compreender uma cultura e paisagem sem a língua que guarda o saber que permite essa compreensão. E sem compreensão não há protecção. Deus criou o mundo com palavras dizendo-o, pois no princípio apenas o verbo existia.
Procurar com seriedade as resistências identitárias que transformam cada ambiente, cada cultura e paisagem, num monumento único é também encontrar o sentido do nosso destino colectivo. É isso que dá valor universal a cada cultura e paisagem, por pequena que seja a região onde se insere. Porque a universalidade é uma dimensão que só pode ser dada pelo homem: e onde há uma cultura singular há uma comunidade que a construiu; onde há uma cultura e paisagem está o homem e a sua história; e onde está o homem, está um mundo que é património de todos, está um pilar do orgulho da condição humana.
Como todas as terras, a Terra de Miranda do Douro guarda em si saberes ancestrais dando corpo a uma cultura ímpar, dentro duma alteridade cultural que resiste ao tempo para nosso orgulho de sermos mirandeses e resistentes[1] a um processo devastador da cultura de massas.
É necessário entender este Povo com as suas particularidades, com o seu rio, as suas terras de planalto, a sua vizinhança com Espanha, os seus cantares, as suas danças e sobretudo a sua língua, que une as vontades, particulariza as relações, estabelece laços de boa vizinhança e faz a diferença em relação ao “outro” que fala estranhas línguas “fidalgas ou grabes”.
Os mirandeses mantêm a sua identidade porque se unem pela língua, porque se revêem na imponência da sua catedral, porque foram capazes de resistir a guerras demolidoras, criando heróis emblemáticos e motivadores que se chamaram Miguel, ou Mirandum, tanto importa, porque são sempre ideais de valentia deste Povo que resistiu à fome e criou ali o seu sustento e continuidade.
Dentro da diversidade cultural do País, sem dúvida, a cultura mirandesa, as suas gentes, os seus hábitos e costumes, as suas festas e lutos, têm uma particularidade inconfundível, porque este povo foi capaz, ou teve condições para manter a sua identidade e unidade pelo facto de ter preservado a língua mirandesa.
Numa leitura antropológica, a cultura dum Povo tem possibilidade de resistir mais aos demolidores impactos da aculturação de massas, sobretudo, quando essa cultura faz parte integrante do querer popular, faz parte do seu sentir mais sagrado, como se fosse a alma dos seus antepassados.
Foi isto que aconteceu com a Língua Mirandesa que resistiu ao Português, ao Castelhano, tendo ido buscar as suas origens ao latim popular, tornando-se assim numa língua neo-latina.
E esta língua esteve presente no falar quotidiano do Concelho de Miranda do Douro e em muitas aldeias de Vimioso e Mogadouro que se entendiam duma forma admirável e tinham em comum afectos, tarefas agrícolas, técnicas, segredos artesanais e sobretudo este código linguístico, que era um sinal da independência e da vontade dum Povo.
Outras línguas se teriam falado em Trás-os-Montes e alguns sinais existem numa proximidade linguística ao Mirandês, em forma de dialecto, que ainda se ouve nas Terras da Lombada, de Guadramil e de Rio de Onor, onde os velhos comunitarismos dignificaram o homem na sua inter-ajuda e na partilha de bens e serviços. Estas terras tiveram também o privilégio de resistir a um certo capitalismo selvagem que massifica e torna o homem escravo do seu individualismo e por isso foram capazes de preservar a sua identidade e a sua forma particular de comunicação.
Na longa noite fascista, o regime, procurou uma certa unidade Nacional. As escolas primárias surgiram um pouco por todo o lado para difundirem o ideal: “Deus, Pátria e Família”. A língua de Camões seria o ponto de união entre todos os Portugueses submissos ao mesmo Chefe. O direito à diferença esteve ameaçado e foi nesta época que as línguas minoritárias e os dialectos quase sucumbiram pela força duma puritana cultura erudita que ridicularizava aqueles que se mantinham fiéis às culturas autóctones e à língua dos seus pais.
O velho Professor primário, amante do bom português, castigava severamente as crianças que se atreviam a falar mirandês nas aulas públicas. E por isso, o mirandês, durante muitos anos conservou-se numa certa clandestinidade, como se falar mirandês revelasse a ignorância dum povo menor, incapaz de falar o português vernáculo. Assim, era necessário guardar o segredo da língua e só em casa, ou com os amigos se falava em mirandês. Com os estranhos, fora de Miranda e nas Escolas falava-se “grabe”, sinónimo da língua “fidalga”, como se a fidalguia fosse o outro lado dum outro Povo.
Mas uma coisa é certa, o Povo Mirandês teve o privilégio de nunca se envergonhar da sua língua que utilizava como um sinal, um património indelével, um ponto de união com todos os mirandeses, que tinham, a mesma cultura, que dançavam os mesmo laços, que se reviam na valentia do Mirandum, que fiavam a lã para fazer a “capa de honras” que cobria o homem honrado de Miranda.
Por isso, a dado momento, senti o dever de me empenhar na defesa desta língua, de a ajudar a sair da sua clandestinidade, de a projectar com dignidade no universo das línguas minoritárias, porque senti que a língua Mirandesa era o querer e a vontade dum Povo que resistiu, guardou as riquezas do passado para glória e orgulho dos vindouros.
Nesta abordagem à Língua Mirandesa não vou falar da sua origem, da sua estrutura, da sua gramática, pois esse trabalho já foi objecto de estudo de muitos filólogos e amigos de Miranda do Douro e dos Mirandeses.
Irei, tão somente, falar do meu modesto contributo em prol da Língua mirandesa, para a tornar língua oficial, reconhecida por todo o País, pelo estrangeiro e pela comunidade científica que se dedica ao estudo da linguística.
No devir Histórico, tudo tem um tempo em que as coisas acontecem e dão consistência à vontade popular que ganha a sua maioridade nos regimes Democráticos.
Assim, para revisitar a Língua mirandesa em tempo de Democracia tive que regressar a casa, ao convívio dos meus conterrâneos que sempre falaram com galhardia e orgulho o mirandês. Tive que voltar com as vacas, segar o feno, guardar o gado, acender o forno, entregar-me de alma e coração às actividades camponesas que serviram de berço à oralidade do mirandês, que foi sempre a “língua do campo, do lar e do amor” no dizer de Leite Vasconcelos.
A porta está fechada e fala-se mirandês na intimidade da cama, nas cantigas de embalar, na carícia que se faz à criança de colo, no chamar as ovelhas pelo nome mais terno, no falar por falar à volta do lume aceso, porque só em mirandês é que o homem de Miranda sente os afectos e o encontro de quem se deita no escano velho onde descansaram gerações.
Por isso, esta Língua é a Língua dum Povo telúrico e profundamente ligado à sua terra e à sua casa. Um Povo que falava, longe dos livros e das escolas e que nunca deu forma escrita à sua língua.
A língua mirandesa só terá começado a surgir na sua forma escrita já nos alvores do século XIX e desde então muito se tem escrito sobre esta língua com uma fonologia riquíssima. Destacamos entre outros Leite de Vasconcelos que escreveu os dois volumes de “Estudos de Filologia Mirandesa”, o espanhol Menéndez Pidal que filia o mirandês no idioma que se falava no antigo Reino de Leão, António Mourinho que edita “Nuossa alma i nuossa Tierra”.
Actualmente, muitos escritores e estudiosos: António Maria Mourinho, Moisés Pires, Manuel Preto, Domingos Raposo, Amadeu Ferreira, Manuela Barros Ferreira, Cristina Martins, António Bárbolo Alves, José Francisco Fernandes, Carlos Ferreira, Emílio Pires Martins, José Francisco Meirinhos, Abílio Pires, Duarte Martins, Alfredo Cameirão, etc.; muitas Universidades como a de Coimbra, Clássica de Lisboa, Clássica do Porto, Trás-os-Montes e Alto Douro, têm contribuído para que a Língua mirandesa seja conhecida, estudada e falada.

in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

(continua)




[1] Sobre a temática das resistências identitárias, ver o artigo de Júlio Meirinhos “Língua, cultura e ambiente: as resistências identitárias” In Filandar / O Fiadeiro nº 16 (2005) 12.

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