segunda-feira, 28 de maio de 2012

Entre o Côa e o Douro Internacional (1)


       Alexandra Cerveira Lima*
Breve Introdução

Quando me foi solicitado este texto, solicitação à qual com todo o gosto respondi, estava há já alguns anos a trabalhar no Parque Arqueológico do Vale do Côa[1], e sobre o PAVC eu deveria escrever. Entretanto, agora que o redijo, o meu local de trabalho é outro, o Parque Natural do Douro Internacional. Embora a natureza de cada um destes parques seja bem diversa, são geograficamente muito próximos, e muitas semelhanças formais e substantivas os aproximam também. Entendi, por isso, que poderia e deveria tratar estas duas áreas classificadas neste texto, partindo, como um pretexto, de um mapa recentemente dado à estampa.

Um mapa inspirador
Este mapa de que falo, Do Côa a Siega Verde, a arte da luz, foi produzido por duas entidades privadas[2] para duas entidades públicas, o IGESPAR, IP e a Junta de Castela e Leão, no âmbito de um projecto transfronteiriço que visava promover a articulação entre o Parque Arqueológico do Vale do Côa e Siega Verde, a estação de arte rupestre paleolítica classificada pela UNESCO, em 2010, como Património Mundial enquanto extensão do Côa. Trata de uma viagem — é, aliás, parte integrante de um roteiro de viagem — com quatro episódios, quatro pontos de paragem: o Parque Arqueológico e Museu do Côa, no início da jornada. Siega Verde no final do trajecto, o ponto de chegada. Pelo meio, duas realidades são tratadas: o par de vilas medievais fortificadas, que se afrontavam, Castelo Rodrigo e Pinhel, episódio de viagem designado “quando o Côa era fronteira” e um outro episódio “estrelas de fronteira”, um percurso que leva de Almeida, pelo Fuerte de la Concepción, até Cuidad Rodrigo. Em torno deste eixo central que se pretende destacar, há um convite à descoberta deste  território ibérico. 

 Núcleo de Arte Rupestre da Faia, Rocha 6.
Parque Arqueológico do Vale do Côa
e Área Protegida Privada da Faia Brava, Cidadelhe, Pinhel.
Fotografia Pedro Guimarães, desenho CNART/PAVC.
Se ensaiarmos organizar em categorias as onze realidades que este roteiro nos convidava a descobrir em torno do percurso principal, temos uma forte presença medieval, que já o par Castelo Rodrigo e Pinhel evocava: os castelos e as vilas medievais fortificadas, nesta zona sempre marcada pela fronteira política, que se foi instalando, ao sabor da História, nos grandes cursos de água: o Douro, o Côa e o Águeda. Neste âmbito são tratadas as vilas de Marialva e a Comenda de Longroiva, as Vilas de Torre de Moncorvo e Freixo de Espada à Cinta, Sobradillo e San Felices de los Gallegos. Temos, por outro lado, um conjunto de sítios arqueológicos de cronologias anteriores, estudados e valorizados, por entidades públicas, ou privadas, como Freixo de Numão, ou os castros que integram a Ruta de  los Castros y Verracos. Figuram também duas importantes vias de comunicação, a ferroviária, hoje malogradamente inactiva do Pocinho para leste, e a fluvial, em crescente utilização turística: o Douro Navegável. Uma quarta categoria corresponde ao Douro Vinhateiro, simbolizado pela Quinta de Ervamoira, a primeira a instalar a produção de alta qualidade do Douro Superior no coração do Vale do Côa e, uma outra categoria de sítios, que ocupam o maior mancha deste mapa, as áreas naturais classificadas: os parques do Douro Internacional de las Arribes del Duero. Juntos, formam um contínuo ibérico com quase 200 000 hectares, em ambas as margens do Douro, um dos maiores espaços protegidos da Europa. Apenas a sua metade meridional figurou neste mapa correspondendo, no caso português, aos concelhos de Figueira de Castelo Rodrigo e Freixo de Espada à Cinta. E a Reserva da Faia Brava, no interior do Parque Arqueológico do Vale do Côa e da ZPE do Vale do Côa, a primeira Área Protegida Privada a ser classificada em Portugal.

Mapa Côa & Siega Verde. A Arte da Luz. Coordenação APDARC, Gestão editoral Setepés, ed. IGESPAR e Junta de Castela e Leão, 2010.


Da leitura deste mapa, ressaltam alguns aspectos que gostaríamos de sublinhar, e que o convertem num mapa inspirador.
- Desde logo o seu carácter ibérico, que aponta para uma cooperação estreita, ou mesmo, no caso do Côa e Siega Verde, para uma gestão conjunta. A classificação como Património Mundial como um sítio único pressupõe que houve uma estreita cooperação anterior, e aponta para uma gestão conjunta dos dois sítios arqueológicos, um único património mundial. 
- A presença de várias áreas classificadas com um importante estatuto de protecção: o único parque arqueológico no país[3], património mundial, juntamente com a sua extensão do lado de lá da fronteira, dois parques naturais e uma área protegida privada. Esta realidade resulta, naturalmente, do reconhecimento público da importância do património natural e cultural do território, que aconselha a sua salvaguarda, conservação e valorização. Área de baixa densidade populacional, o património histórico-arqueológico perdurou, galgando milénios, quer pela importância de antigas ocupações, como é o caso de ocupações datáveis da Pré-história Antiga ou da Baixa Idade Média, quer pela inexistência de uma pressão urbanística contemporânea que noutras áreas foi voraz. Aqui, as vilas medievais cresceram e foram abandonadas (caso de Alva[4]) ou deslocados os seus centros para o exterior do perímetro amuralhado (caso de Castelo Rodrigo, Castelo Melhor ou Marialva), sem que as suas marcas tivessem sido progressivamente destruídas, como ocorreu em tantos núcleos urbanos do litoral português. A baixa densidade, ditada pelo carácter periférico relativamente aos centros, mas também por características intrínsecas do próprio território, geomorfologia, clima e tipo de solos, converteu-a também numa interessante área do ponto de vista da biodiversidade, de tal forma que se torna apetecível para a expansão de um projecto como o Rewilding Europe que, a partir da Holanda, pretende trazer a biodiversidade de volta às terras em abandono da Europa, beneficiando da regressão da área agricultada e recompondo o carácter selvagem em pontos da Eurora onde, desde o ano 1000, denodadamente se procurou arrotear e fazer a natureza recuar.
- Por outro lado, esta classificação assenta no reconhecimento que decorre de uma investigação e produção de conhecimento prévios, trabalho de profissionais de várias áreas do saber, locais e vindos de outras regiões, e que aqui foram desenvolvendo a sua actividade: biólogos e arqueólogos, que deram corpo a associações (ACDR de Freixo de Numão, Associação Transumância e Natureza,...), ou integrados em organismos públicos, caso do Centro Nacional de Arte Rupestre (1997-2007) e Parque Arqueológico do Vale do Côa[5], criado em 1996, juntamente com pessoas ligadas às artes e cultura e a enólogos, que crescentemente aqui trabalham.
- Não ressalta de imediato do mapa, mas, quem aqui tem trabalhado, sabe que a baixa densidade tende a ditar práticas de cooperação e entreajuda. A distância relativamente aos centros de decisão, a escassez de meios e de recursos, assim o dita. E algum dinamismo que foi possível imprimir nestas áreas de actuação resulta, inegavelmente, desta cooperação institucional (entidades da administração central e local, entidades privadas, sejam associações, sejam empresas). Neste ponto, diria que o papel agregador do Parque Arqueológico e Museu do Côa deve ser destacado. A prática, já de há alguns anos, do Parque Arqueológico, tem sido a da procura da cooperação, assente no princípio de que um serviço público está ao serviço dos cidadãos, é dos cidadãos e ganha se contar com a sua intervenção. Dessa forma se procuraram pontes com associações ligadas à cultura e à natureza, com municípios, com empresas privadas de animação turística, com entidades ligadas à agricultura e ao desenvolvimento regional, com as escolas, muito particularmente com o agrupamento de escolas de Vila Nova de Foz Côa. 
Mas, numa área protegida, o grande desafio é chegar às comunidades residentes... A ACÔA, Associação dos Amigos do Parque e Museu do Côa, tem procurado trabalhar mais estreitamente com a comunidade e, através de um projecto apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, o Arquivo de Memória do Vale do Côa, tem chegado aos mais idosos e aos mais jovens, contribuindo para uma aproximação à arte do Côa e ao património arqueológico. É a partir deste projecto que se alicercerá a criação de um Clube Unesco na região, articulando-se assim essa outra dimensão da Unesco, a humanitária, nesta região distinguida pela classificação como património mundial.
- Foi o esforço de cooperação, mas sobretudo a qualidade que desde o início marcou as intervenções do Parque Arqueológico, que fizeram dele um marcantíssimo centro deste território. Qualidade da investigação, que permitiu a classificação célere da arte paleolítica como património mundial, qualidade dos levantamentos e desenhos da arte rupestre, das fotografias, qualidade das intervenções arquitectónicas[6], no acompanhamento das visitas, qualidade visível hoje no Museu do Côa, quer pelo projecto arquitectónico[7] e sua relação com a paisagem, quer pela solidez do seu conteúdo. Ressalta hoje, aos milhares de visitantes que o procuram, a mestria da grande arte do Côa, que está na base do projecto, e a profundidade da investigação que sobre ela e sobre os seus autores, os caçadores-recolectores do Paleolítico Superior, recaiu.

in: Trás-os Montes e Alto Dourpo, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

(continua)



* Arqueóloga, ICNB - DGAC-N/ Parque Natural do Douro Internacional
[1] Entre 2004 e 2010, na direcção do Parque Arqueológico do Vale do Côa; entre 1997 e 2000, como colaboradora do PAVC e, entre 2000 e 2003, no Centro Nacional de Arte Rupestre, também sediado em Vila Nova de Foz Côa.
[2] Coordenação APDARC, Associação para a Defesa da Arte e da Cultura no Côa e Douro Superior, gestão editorial, Setepés.
[3] Embora, e lamentavelmente, não tenha ainda sido promulgado o Decreto Regulamentar de criação do Parque, tal como a legislação de enquadramento dita, e que conduzirá, uma vez criado, à elaboração de um Plano de Ordenamento.
[4] Caso que, registe-se, foi exemplo de uma lamentável e recente decisão: a construção de uma capela exactamente sobre o local da antiga vila medieval abandonada, decisão que esperamos que um dia possa ser reconsiderada.
[5] Ver a este propósito a extensa bibliografia científica produzida sobre o Parque Arqueológico do Vale do Côa no site recentemente acessível: http://www.arte-coa.pt/
[6] Diria que só mesmo as condições muito desadequadas de acolhimento à guardaria no núcleo de arte rupestre da Canada do Inferno destoam fortemente, ainda hoje.
[7] Autoria de Petro Tiago Pimentel e Camilo Rebelo.

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