Alexandra Cerveira Lima*
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Breve
Introdução
Quando me foi solicitado este
texto, solicitação à qual com todo o gosto respondi, estava há já alguns anos a
trabalhar no Parque Arqueológico do Vale do Côa[1], e
sobre o PAVC eu deveria escrever. Entretanto, agora que o redijo, o meu local
de trabalho é outro, o Parque Natural do Douro Internacional. Embora a natureza
de cada um destes parques seja bem diversa, são geograficamente muito próximos,
e muitas semelhanças formais e substantivas os aproximam também. Entendi, por
isso, que poderia e deveria tratar estas duas áreas classificadas neste texto,
partindo, como um pretexto, de um mapa recentemente dado à estampa.
Um
mapa inspirador
Este mapa de que falo, Do Côa a Siega Verde, a arte da luz, foi
produzido por duas entidades privadas[2]
para duas entidades públicas, o IGESPAR, IP e a Junta de Castela e Leão, no
âmbito de um projecto transfronteiriço que visava promover a articulação entre
o Parque Arqueológico do Vale do Côa e Siega Verde, a estação de arte rupestre
paleolítica classificada pela UNESCO, em 2010, como Património Mundial enquanto
extensão do Côa. Trata de uma viagem — é, aliás, parte integrante de um
roteiro de viagem — com quatro episódios, quatro pontos de paragem: o Parque
Arqueológico e Museu do Côa, no início da jornada. Siega
Verde no final do trajecto, o ponto de chegada. Pelo meio, duas
realidades são tratadas: o par de vilas medievais fortificadas, que se
afrontavam, Castelo Rodrigo e Pinhel, episódio de viagem designado “quando o
Côa era fronteira” e um outro episódio “estrelas de fronteira”, um percurso que
leva de Almeida, pelo Fuerte de la Concepción, até Cuidad Rodrigo. Em torno
deste eixo central que se pretende destacar, há um convite à descoberta deste território ibérico.
Núcleo de Arte Rupestre da Faia, Rocha 6.
Parque Arqueológico do Vale do Côa
e Área Protegida Privada da Faia Brava,
Cidadelhe, Pinhel.
Fotografia Pedro Guimarães, desenho CNART/PAVC.
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Se ensaiarmos organizar em
categorias as onze realidades que este roteiro nos
convidava a descobrir em torno do percurso principal, temos uma forte
presença medieval, que já o par Castelo Rodrigo e Pinhel evocava: os castelos e
as vilas medievais fortificadas, nesta zona sempre marcada pela fronteira política, que se foi instalando, ao sabor da
História, nos grandes cursos de água: o Douro, o Côa e o Águeda. Neste âmbito
são tratadas as vilas de Marialva e a Comenda de Longroiva, as Vilas de Torre
de Moncorvo e Freixo de Espada à Cinta, Sobradillo e San Felices de los
Gallegos. Temos, por outro lado, um conjunto de sítios arqueológicos de
cronologias anteriores, estudados e valorizados, por entidades públicas, ou
privadas, como Freixo de Numão, ou os castros que integram a Ruta de los Castros y Verracos. Figuram também duas
importantes vias de comunicação, a ferroviária, hoje malogradamente inactiva do
Pocinho para leste, e a fluvial, em crescente utilização turística: o Douro
Navegável. Uma quarta categoria corresponde ao Douro Vinhateiro, simbolizado
pela Quinta de Ervamoira, a primeira a instalar a produção de alta qualidade do
Douro Superior no coração do Vale do Côa e, uma outra categoria de sítios, que
ocupam o maior mancha deste mapa, as áreas naturais classificadas: os parques
do Douro Internacional de las Arribes del Duero.
Juntos, formam um contínuo ibérico com quase 200 000 hectares, em ambas as
margens do Douro, um dos maiores espaços protegidos da Europa. Apenas a sua
metade meridional figurou neste mapa correspondendo, no caso português, aos
concelhos de Figueira de Castelo Rodrigo e Freixo de Espada à Cinta. E a Reserva da Faia Brava, no interior do Parque
Arqueológico do Vale do Côa e da ZPE do Vale do Côa, a primeira Área Protegida
Privada a ser classificada em Portugal.
Mapa Côa & Siega
Verde. A Arte da Luz. Coordenação APDARC, Gestão editoral Setepés, ed.
IGESPAR e Junta de Castela e Leão, 2010.
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Da leitura deste mapa, ressaltam
alguns aspectos que gostaríamos de sublinhar, e que o convertem num mapa
inspirador.
- Desde logo o seu carácter
ibérico, que aponta para uma cooperação estreita, ou mesmo, no caso do Côa e
Siega Verde, para uma gestão conjunta. A classificação como Património Mundial
como um sítio único pressupõe que houve uma estreita cooperação anterior, e
aponta para uma gestão conjunta dos dois sítios arqueológicos, um único
património mundial.
- A presença de várias áreas
classificadas com um importante estatuto de protecção: o único parque
arqueológico no país[3],
património mundial, juntamente com a sua extensão do lado de lá da fronteira,
dois parques naturais e uma área protegida privada. Esta realidade resulta,
naturalmente, do reconhecimento público da importância do património natural e
cultural do território, que aconselha a sua salvaguarda, conservação e
valorização. Área de baixa densidade populacional, o património histórico-arqueológico
perdurou, galgando milénios, quer pela importância de antigas ocupações, como é
o caso de ocupações datáveis da Pré-história Antiga ou da Baixa Idade Média,
quer pela inexistência de uma pressão urbanística contemporânea que noutras
áreas foi voraz. Aqui, as vilas medievais cresceram e foram abandonadas (caso
de Alva[4])
ou deslocados os seus centros para o exterior do perímetro amuralhado (caso de
Castelo Rodrigo, Castelo Melhor ou Marialva), sem que as suas marcas tivessem
sido progressivamente destruídas, como ocorreu em tantos núcleos urbanos do
litoral português. A baixa densidade, ditada pelo carácter periférico
relativamente aos centros, mas também por características intrínsecas do
próprio território, geomorfologia, clima e tipo de solos, converteu-a também
numa interessante área do ponto de vista da biodiversidade, de tal forma que se
torna apetecível para a expansão de um projecto como o Rewilding Europe que, a partir da Holanda, pretende trazer a
biodiversidade de volta às terras em abandono da Europa, beneficiando da
regressão da área agricultada e recompondo o carácter selvagem em pontos da
Eurora onde, desde o ano 1000, denodadamente se procurou arrotear e fazer a
natureza recuar.
- Por outro lado, esta
classificação assenta no reconhecimento que decorre de uma investigação e
produção de conhecimento prévios, trabalho de profissionais de várias áreas do
saber, locais e vindos de outras regiões, e que aqui foram desenvolvendo a sua
actividade: biólogos e arqueólogos, que deram corpo a associações (ACDR de
Freixo de Numão, Associação Transumância e Natureza,...), ou integrados em
organismos públicos, caso do Centro Nacional de Arte Rupestre (1997-2007) e
Parque Arqueológico do Vale do Côa[5],
criado em 1996, juntamente com pessoas ligadas às artes e cultura e a enólogos,
que crescentemente aqui trabalham.
- Não ressalta de imediato do
mapa, mas, quem aqui tem trabalhado, sabe que a baixa densidade tende a ditar
práticas de cooperação e entreajuda. A distância relativamente aos centros de decisão,
a escassez de meios e de recursos, assim o dita. E algum dinamismo que foi
possível imprimir nestas áreas de actuação resulta, inegavelmente, desta
cooperação institucional (entidades da administração central e local, entidades
privadas, sejam associações, sejam empresas). Neste ponto, diria que o papel
agregador do Parque Arqueológico e Museu do Côa deve ser destacado. A prática,
já de há alguns anos, do Parque Arqueológico, tem sido a da procura da
cooperação, assente no princípio de que um serviço público está ao serviço dos
cidadãos, é dos cidadãos e ganha se contar com a sua intervenção. Dessa forma
se procuraram pontes com associações ligadas à
cultura e à natureza, com municípios, com empresas privadas de animação
turística, com entidades ligadas à agricultura e ao desenvolvimento regional,
com as escolas, muito particularmente com o agrupamento de escolas de Vila Nova
de Foz Côa.
Mas, numa área protegida, o
grande desafio é chegar às comunidades residentes... A ACÔA, Associação dos Amigos do Parque e Museu do Côa, tem
procurado trabalhar mais estreitamente com a comunidade e, através de um
projecto apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, o Arquivo de Memória do
Vale do Côa, tem chegado aos mais idosos e aos mais jovens, contribuindo para uma
aproximação à arte do Côa e ao património arqueológico. É a partir deste
projecto que se alicercerá a criação de um Clube Unesco na região,
articulando-se assim essa outra dimensão da Unesco, a humanitária, nesta região
distinguida pela classificação como património mundial.
- Foi o esforço de cooperação,
mas sobretudo a qualidade que desde o início marcou as intervenções do Parque
Arqueológico, que fizeram dele um marcantíssimo centro deste território.
Qualidade da investigação, que permitiu a classificação célere da arte
paleolítica como património mundial, qualidade dos levantamentos e desenhos da
arte rupestre, das fotografias, qualidade das intervenções arquitectónicas[6],
no acompanhamento das visitas, qualidade visível hoje no Museu do Côa, quer pelo
projecto arquitectónico[7] e
sua relação com a paisagem, quer pela solidez do seu conteúdo. Ressalta hoje,
aos milhares de visitantes que o procuram, a mestria da grande arte do Côa, que está na base do projecto, e a profundidade
da investigação que sobre ela e sobre os seus autores, os
caçadores-recolectores do Paleolítico Superior, recaiu.
in: Trás-os Montes e Alto Dourpo, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(continua)
(continua)
* Arqueóloga, ICNB - DGAC-N/ Parque
Natural do Douro Internacional
[1] Entre 2004 e 2010, na
direcção do Parque Arqueológico do Vale do Côa; entre 1997 e 2000, como
colaboradora do PAVC e, entre 2000 e 2003, no Centro Nacional de Arte Rupestre,
também sediado em Vila Nova de Foz Côa.
[2] Coordenação APDARC,
Associação para a Defesa da Arte e da Cultura no Côa e Douro Superior, gestão
editorial, Setepés.
[3] Embora, e lamentavelmente,
não tenha ainda sido promulgado o Decreto Regulamentar de criação do Parque,
tal como a legislação de enquadramento dita, e que conduzirá, uma vez criado, à
elaboração de um Plano de Ordenamento.
[4] Caso que, registe-se, foi
exemplo de uma lamentável e recente decisão: a construção de uma capela
exactamente sobre o local da antiga vila medieval abandonada, decisão que
esperamos que um dia possa ser reconsiderada.
[5] Ver a este propósito a
extensa bibliografia científica produzida sobre o Parque Arqueológico do Vale
do Côa no site recentemente acessível: http://www.arte-coa.pt/
[6] Diria que só mesmo as
condições muito desadequadas de acolhimento à guardaria no núcleo de arte
rupestre da Canada do Inferno destoam fortemente, ainda hoje.
[7] Autoria de Petro Tiago
Pimentel e Camilo Rebelo.
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