António Martinho Baptista (texto e fotografias) antigo director do Centro Nacional de Arte Rupestre ambaptista1950@sapo.pt |
Hoje ainda, o Parque Arqueológico
do Vale do Côa (PAVC) é a única área protegida com estas características em Portugal. Mas nunca
dispôs de um Plano de Ordenamento devidamente aprovado e regulado, embora este
fundamental instrumento de gestão há muito tenha sido produzido, ainda que
nunca dado à estampa em termos legais.
Será esta uma condicionante,
nunca devidamente assumida, das particularíssimas condições de criação do PAVC
em Agosto de 1996, quando aquela figura
legal não constava sequer ainda do ordenamento jurídico português?
A arte rupestre do Vale do Côa
começou a ser revelada em finais de 1994, tendo as primeiras notícias saídas na
imprensa escrita alertado de imediato para a muito particular riqueza
arqueológica que se guardava no Côa, onde então se construía uma barragem,
muito perto da sua foz, que (quase) tudo iria submergir. E durante um ano,
entre Novembro de 1994 e Novembro de 1995, travou-se uma verdadeira batalha
mediática que atravessou toda a sociedade portuguesa e que ficaria conhecida
como a "polémica do Côa". Cujos ecos ainda hoje perduram...
Em termos estritamente
arqueológicos, a descoberta e afirmação científica da arte do Côa contribuiu
decisivamente para a criação de um novo paradigma na arqueologia pré-histórica
europeia, que é o da confirmação absoluta da existência generalizada de uma
arte paleolítica de ar livre. Na verdade, a arte glaciar europeia, que é, sem
dúvida, o mais importante e arcaico testemunho do pensamento simbólico
primitivo, sempre se revestiu de algum elitismo quase iniciático no próprio
mundo académico, devido à sua até então característica situação de jazida em gruta. Os testemunhos
gráficos do Paleolítico superior europeu entravam na categoria da Grande Arte,
aliando uma grande antiguidade (as datações absolutas de Chauvet vão para além
do 30º milénio BP) a uma apreciável, senão mesmo muito impressiva, qualidade
estética. Grutas pintadas pouco profundas como as de Altamira e Lascaux, ou as
mais profundas como Niaux, Pech-Merle ou Rouffignac ou a mais recentemente
descoberta Chauvet, guardam alguns dos mais impressionantes testemunhos da
admirável gramática dos símbolos da mais antiga arte conhecida dos Cro-Magnons
europeus. Os grandes frescos pictóricos, ainda que raramente polícromos,
figurando normalmente uma gramática figurativa obsessivamente zoomórfica,
constituíam sempre um capítulo muito próprio nos nossos manuais de pré-história
e o primeiro (e muito "moderno") capítulo da história da arte
ocidental. E estes primeiros santuários da arte primitiva cedo se destacaram
por serem dos sítios arqueológicos mais apetecíveis pelo turismo cultural. Mas
a sua fruição nem sempre é possível pelo turista comum. Com efeito, logo após a
explosão turística globalizada de meados do século XX, os mais importantes
nichos das artes da pré-história antiga passaram a ser encerrados por
necessidades de conservação, sempre por entre grandes polémicas. E assim nasceu
a necessidade de serem replicados e/ou devidamente musealizados, como os casos
de Lascaux , Altamira ou Ekain, entre os mais famosos, mas todos eles com
diferentes filosofias de aproximação. Pese embora o fortíssimo afluxo de
capitais que o turismo carreia para as regiões que guardam estes
importantíssimos testemunhos do nosso passado pré-histórico, as sociedades
democráticas, se por um lado expõem com orgulho essas remanescentes pérolas da
simbólica mais arcaica, por outro chegaram há muito à conclusão, amplamente
demonstrada pela ciência e pela evidência dos factos (o caso mais gritante é o
de Lascaux), que essa massificação tarde ou cedo acarretaria a sua destruição.
Cabra orientada para a esquerda e provável camurça, virada à direita. Picotagem em traço profundo do período antigo da arte do Côa. Sector esquerdo da rocha 1 do Fariseu |
Ora, o Vale do Côa abriu novos
horizontes, quer ao conhecimento da mentalidade do homem paleolítico através
deste tipo de vestígios da arte das origens, afirmando decisivamente essa outra
característica que é o facto de aqui a situação de jazida ser completamente ao
ar livre, mas também ao próprio sistema de fruição pública deste tipo de sítios
pelo inovador sistema de apresentação que desde sempre foi apanágio do Vale do
Côa.
Parque Arqueológico do Vale do Côa. Quinta de Ervamoira |
É verdade que nesta mancha
peninsular não há grutas, mas se até 1994 não era conhecida qualquer jazida
paleolítica em toda esta região, tal não obviava que o homem pré-histórico não
a tivesse demandado e ocupado, como a arqueologia acabou por demonstrar
cabalmente nos últimos 16 anos.
Entretanto, hoje discute-se muito
o ordenamento figurativo na arte paleolítica de ar livre por oposição ao
dispositivo estruturado na arte das grutas, sempre limitado pela própria
topografia que é conformada a um ambiente fechado. E é aqui que a conservação in loco da Arte do Côa se revela mais
significativa pelas perspectivas de entendimento que permite na aproximação
teórica a um dos seus grandes sítios mundiais, como é o Baixo Vale do Côa. É
que grande parte dos sítios do Vale do Côa guardam ainda muita da sua ambiência
primitiva, milhares de gravuras resistiram a milénios de erosão e é evidente
uma relação directa entre muita desta simbólica rupestre e as paisagens envolventes.
E isto não é apenas objecto de uma arqueologia da paisagem, mas mais o de uma
arqueologia do imaginário, que só a aproximação estruturada à simbólica do
passado permitirá começar a entender.
Actualmente a importância das
jazidas arqueológicas rupestres no Vale do Côa/Alto Douro português mede-se
pela qualidade artística e quantidade dos seus testemunhos gráficos dispersos
por mais de 1.000 rochas historiadas com representações cronologicamente
distribuídas entre a segunda metade do Paleolítico superior (± 25.000 - ±12.000
anos antes do presente, com cerca de 450 rochas), com alguns impressivos e
raros exemplos da arte pictórica dos primeiros milénios do pós-glaciar (Faia,
Vale de Figueira...); um importante acervo quase todo inciso da 2ª Idade do Ferro
(2ª metade do 1º milénio a.C.), talvez o mais significativo a nível peninsular
centrado junto à foz do Côa e nas ribeiras adjacentes; e alguns excelentes
exemplos, entre o sagrado - é patente por exemplo o culto do Espírito Santo
expresso em gravuras na Canada do Inferno - e o profano, de uma gramática
figurativa rupestre datável entre os séculos XVI e XX. Os últimos gravadores do
Vale do Côa, na esteira de uma tradição de gravação com pelo menos 25.000 anos,
foram os senhores António Seixas e Alcino Tomé, os derradeiros moleiros que na
Canada do Inferno e na foz do Côa nos legaram um impressivo número de gravuras
insculpidas ao lado das criações paleolíticas que eles bem conheciam, mas a que
nunca atribuíram uma tão grande antiguidade como a que a arqueologia viria a
revelar.
in: Trás-os Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(continua)
in: Trás-os Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
(continua)
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