quarta-feira, 30 de maio de 2012

António Martinho Baptista - Eu projecto, tu projectas... O Parque Arqueológico e o Museu do Côa (1)


António Martinho Baptista
(texto e fotografias)
antigo director do Centro
Nacional de Arte Rupestre
ambaptista1950@sapo.pt

A ARTE DO CÔA E O PAVC

Hoje ainda, o Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC) é a única área protegida com estas características em Portugal. Mas nunca dispôs de um Plano de Ordenamento devidamente aprovado e regulado, embora este fundamental instrumento de gestão há muito tenha sido produzido, ainda que nunca dado à estampa em termos legais.
Será esta uma condicionante, nunca devidamente assumida, das particularíssimas condições de criação do PAVC em  Agosto de 1996, quando aquela figura legal não constava sequer ainda do ordenamento jurídico português?
A arte rupestre do Vale do Côa começou a ser revelada em finais de 1994, tendo as primeiras notícias saídas na imprensa escrita alertado de imediato para a muito particular riqueza arqueológica que se guardava no Côa, onde então se construía uma barragem, muito perto da sua foz, que (quase) tudo iria submergir. E durante um ano, entre Novembro de 1994 e Novembro de 1995, travou-se uma verdadeira batalha mediática que atravessou toda a sociedade portuguesa e que ficaria conhecida como a "polémica do Côa". Cujos ecos ainda hoje perduram...

Cabra orientada para a esquerda e provável camurça,
virada à direita. Picotagem em traço profundo
do período antigo da arte do Côa.
Sector esquerdo da rocha 1 do Fariseu
Em termos estritamente arqueológicos, a descoberta e afirmação científica da arte do Côa contribuiu decisivamente para a criação de um novo paradigma na arqueologia pré-histórica europeia, que é o da confirmação absoluta da existência generalizada de uma arte paleolítica de ar livre. Na verdade, a arte glaciar europeia, que é, sem dúvida, o mais importante e arcaico testemunho do pensamento simbólico primitivo, sempre se revestiu de algum elitismo quase iniciático no próprio mundo académico, devido à sua até então característica situação de jazida em gruta. Os testemunhos gráficos do Paleolítico superior europeu entravam na categoria da Grande Arte, aliando uma grande antiguidade (as datações absolutas de Chauvet vão para além do 30º milénio BP) a uma apreciável, senão mesmo muito impressiva, qualidade estética. Grutas pintadas pouco profundas como as de Altamira e Lascaux, ou as mais profundas como Niaux, Pech-Merle ou Rouffignac ou a mais recentemente descoberta Chauvet, guardam alguns dos mais impressionantes testemunhos da admirável gramática dos símbolos da mais antiga arte conhecida dos Cro-Magnons europeus. Os grandes frescos pictóricos, ainda que raramente polícromos, figurando normalmente uma gramática figurativa obsessivamente zoomórfica, constituíam sempre um capítulo muito próprio nos nossos manuais de pré-história e o primeiro (e muito "moderno") capítulo da história da arte ocidental. E estes primeiros santuários da arte primitiva cedo se destacaram por serem dos sítios arqueológicos mais apetecíveis pelo turismo cultural. Mas a sua fruição nem sempre é possível pelo turista comum. Com efeito, logo após a explosão turística globalizada de meados do século XX, os mais importantes nichos das artes da pré-história antiga passaram a ser encerrados por necessidades de conservação, sempre por entre grandes polémicas. E assim nasceu a necessidade de serem replicados e/ou devidamente musealizados, como os casos de Lascaux , Altamira ou Ekain, entre os mais famosos, mas todos eles com diferentes filosofias de aproximação. Pese embora o fortíssimo afluxo de capitais que o turismo carreia para as regiões que guardam estes importantíssimos testemunhos do nosso passado pré-histórico, as sociedades democráticas, se por um lado expõem com orgulho essas remanescentes pérolas da simbólica mais arcaica, por outro chegaram há muito à conclusão, amplamente demonstrada pela ciência e pela evidência dos factos (o caso mais gritante é o de Lascaux), que essa massificação tarde ou cedo acarretaria a sua destruição.

Parque Arqueológico do Vale do Côa. Quinta de Ervamoira
Ora, o Vale do Côa abriu novos horizontes, quer ao conhecimento da mentalidade do homem paleolítico através deste tipo de vestígios da arte das origens, afirmando decisivamente essa outra característica que é o facto de aqui a situação de jazida ser completamente ao ar livre, mas também ao próprio sistema de fruição pública deste tipo de sítios pelo inovador sistema de apresentação que desde sempre foi apanágio do Vale do Côa.
É verdade que nesta mancha peninsular não há grutas, mas se até 1994 não era conhecida qualquer jazida paleolítica em toda esta região, tal não obviava que o homem pré-histórico não a tivesse demandado e ocupado, como a arqueologia acabou por demonstrar cabalmente nos últimos 16 anos.
Entretanto, hoje discute-se muito o ordenamento figurativo na arte paleolítica de ar livre por oposição ao dispositivo estruturado na arte das grutas, sempre limitado pela própria topografia que é conformada a um ambiente fechado. E é aqui que a conservação in loco da Arte do Côa se revela mais significativa pelas perspectivas de entendimento que permite na aproximação teórica a um dos seus grandes sítios mundiais, como é o Baixo Vale do Côa. É que grande parte dos sítios do Vale do Côa guardam ainda muita da sua ambiência primitiva, milhares de gravuras resistiram a milénios de erosão e é evidente uma relação directa entre muita desta simbólica rupestre e as paisagens envolventes. E isto não é apenas objecto de uma arqueologia da paisagem, mas mais o de uma arqueologia do imaginário, que só a aproximação estruturada à simbólica do passado permitirá começar a entender.
Actualmente a importância das jazidas arqueológicas rupestres no Vale do Côa/Alto Douro português mede-se pela qualidade artística e quantidade dos seus testemunhos gráficos dispersos por mais de 1.000 rochas historiadas com representações cronologicamente distribuídas entre a segunda metade do Paleolítico superior (± 25.000 - ±12.000 anos antes do presente, com cerca de 450 rochas), com alguns impressivos e raros exemplos da arte pictórica dos primeiros milénios do pós-glaciar (Faia, Vale de Figueira...); um importante acervo quase todo inciso da 2ª Idade do Ferro (2ª metade do 1º milénio a.C.), talvez o mais significativo a nível peninsular centrado junto à foz do Côa e nas ribeiras adjacentes; e alguns excelentes exemplos, entre o sagrado - é patente por exemplo o culto do Espírito Santo expresso em gravuras na Canada do Inferno - e o profano, de uma gramática figurativa rupestre datável entre os séculos XVI e XX. Os últimos gravadores do Vale do Côa, na esteira de uma tradição de gravação com pelo menos 25.000 anos, foram os senhores António Seixas e Alcino Tomé, os derradeiros moleiros que na Canada do Inferno e na foz do Côa nos legaram um impressivo número de gravuras insculpidas ao lado das criações paleolíticas que eles bem conheciam, mas a que nunca atribuíram uma tão grande antiguidade como a que a arqueologia viria a revelar.

in: Trás-os Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

(continua)


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