No conjunto do concelho (de
Moncorvo), onde todos os povos têm um apodo que irrita os nativos -os do
Castedo são os martelos, os de Felgueiras os choqueiros, os da Açoreira os
pipineiros, os da Cabeça Boa os chulanos (da barriga pelada), os de Moncorvo os
cães de vila… E os do Vilarinho, nossos vizinhos, os soqueiros. Nós somos os labregos.
Alcunho que assumimos com a maior das naturalidades, porquanto labrego
significa rural, campesino, rústico, lavrador. O que ama o agros e dele retira
o sustento, com muito esforço e dedicação, acrescente-se
Os da Loisa têm
(ou tinham, porque tudo passa) má fama. Ainda há poucos anos, com relativa
frequência, encontrávamos gente pela região, mesmo noutros distritos, que
quando dizíamos que éramos loiseiros, vinham com a história da (má) fama de que
os da Loisa puseram a Guarda a lavrar. Assim como os de Mortágua ainda hoje se
enfurecem quando lhe atiramos com a pergunta: quem matou o juiz? Os loiseiros
não se aborrecendo por norma, sentem-se todavia incomodados. Durante anos fomos
questionando os anciãos sobre o assunto. E poucos se abriam ao tema. Alguns, e
essa era/é a versão mais vulgar, verdadeira ou construída (como meio de
defesa), diziam que não era verdade. Que chegaram a ir buscar a canga (e o
arado) mas que não lha puseram ao cachaço. Dois guardas -já republicanos, pois
pelas nossas contas o episódio terá ocorrido por finais dos anos de 1920, nos
primeiros da Ditadura Nacional-, em patrulha pela Loisa, entraram à taberna do
Varela, existente na Carreira, para matarem a sede, ou talvez até a fome, e repararam
num labrego com dois coelhos à cintura, isto no tempo do defeso. O que não era
de estranhar, pois os loiseiros, mercê talvez da distância (distância física e
distância-tempo) que os separava da vila (de Moncorvo) -terra onde se
concentravam todas as (in)justiças-, sempre abusaram neste aspecto, diga-se em
abono da verdade.
Os homens
fardados intervieram, por obrigação profissional. Mas os loiseiros, que na sua
terra se sentiam livres e donos dos seus recursos (incluindo os cinegéticos,
está bom de ver), não podiam submeter-se a tal vexame. Poderiam lá consentir
que um dos seus fosse preso por dois bichos-caretos, apenas por haver caçado
uns laparotos como complemento à pobre dieta, láparos esses nados e criados no
seu país? Ora essa…
Vai daí,
arma-se um tumulto que desarmou os guardas. E o pior vexame veio da mulher do
Carocha, qual Brites de Almeida. Quitou os coelhos ao caçador e com eles
esbofeteou a autoridade, que já o não era. Foram buscar a dita canga e o arado
e apenas os ameaçaram que os poriam a lavrar. E com isto os deixaram ir em paz. Desarmados ,
claro está. As autoridades administrativo-judiciais é que não estiveram pelos
ajustes. Apresentaram-se na aldeia com uma aparatosa força militar, não sabendo
nós se no dia seguinte, se nos dias subsequentes, pois os caminhos eram ruins.
Entrou a força
a cavalo e, no meio do povo, encontraram uma barreira humana, constituída por
mulheres e raparigos. Umas prinhadas, outras paridas. O comandante da força,
questionou-as sobre o paradeiro dos homens. E elas responderam que não tinham
homem. O que levou o servidor da ordem a voltar a perguntar: se não tendes
homem, quem vos emprenhou? Certamente nenhuma delas conhecia o que os autores
latinos disseram das éguas lusitanas. Com o devido respeito às nossas mulheres.
Nossas entre aspas. Mas sabeis que dos cavalos lusitanos, equídeos ainda hoje
muito apreciados em certas lides, se dizia serem filhos do vento, ou seja, que
as suas mães eram fecundadas pelo vento. Ora os homens, andavam a monte, acaçapados
nas lorgas dos bichos, porque baterem-se com uma força daquelas, já não estava
ao seu alcance.
A verdade, ou
pelo menos aquela que ouvimos contar, é que da dita “brincadeira”, vários foram
os degradados para o Ultramar. E pelos vistos alguns, sem culpa nenhuma. Mas o
poder para se afirmar, ontem assim como hoje, precisa de culpados. Por isso
deita mão ao primeiro que for menos listo que ele, tenha culpas no cartório ou
não
Há anos que
andamos para tirar esta história a limpo, porque estamos em crer que ela não
está bem contada. É verosímil a captura das orelhudas alimárias, de rica chicha,
como estando na origem do conflito. Mas pensamos que essa foi apenas a gota que
fez transbordar o caneco. Não o “caneco do Diberto” (esta é outra história).
Mas o caneco abarrotado pela injustiça, pela opressão, pela exploração, pela
miséria. Pela DITADURA.
Era
daqui natural o P.e José Augusto Tavares, mais conhecido por Abade
Tavares ou de Carviçais, terra onde viveu os últimos 30 anos da sua vida,
depois de ter paroquiado Maçores e Ligares. Foi precursor no estudo da
Arqueologia no Sul do Distrito de Bragança. Depois de sobre ele já termos
publicado um pequeno trabalho, tencionamos voltar ao assunto porquanto possuímos
um conjunto de epístolas suas que, depois de estudadas, nos permitirão conhecer
melhor o homem, o presbítero e o investigador.
E nativo
também foi Manuel de Jesus Pinto, que escreveu um considerável conjunto de
livros de realidade ficcionada com o pseudónimo de João da Chela, e outros
textos. Da Chela por ter vivido muitos anos no Sul de Angola. Tivemos
oportunidade de o homenagear há cerca de uma dúzia de anos atrás, e de o elevar
à condição de sócio-honorário da Associação Cultural e Recreativa da Loisa,
através de uma exposição bio-bibliográfica e de um colóquio. E a publicação de
um opúsculo do qual lamentavelmente já não possuímos exemplares suficientes
para vo-lo poder oferecer. Mas se nele estiverdes interessados, podeis pedi-lo
à Câmara Municipal, que nos adquiriu (à Junta de Freguesia) 200 a preço de custo, mas que
volvidos todos estes anos, ainda não teve vagar de no-los pagar.
Voltemos
à capela de Santo António para vos falar da imagem mais importante que aí se
encontra, pelas suas dimensões e pela localização no altar. É a da Senhora dos
Remédios, a padroeira dos Trinitários, e a quem o Povo dedica a sua festa
maior. Está em casa emprestada porque o convento que aqui houve dessa Ordem,
bem como a respectiva igreja já não existem. Não existe aliás pedra sobre
pedra. Foi um verdadeiro crime de lesa-património a destruição de tal conjunto
edificado. Nesse aspecto seguiram o exemplo dos da vila de Moncorvo,
relativamente ao castelo, ao pelourinho e outros imóveis.
Por cá
afirma-se que a Senhora dos Remédios também protegia os marinheiros, porquanto
quando se ia à igreja do convento para a visitar e a chave não desandava na
fechadura, era sinal que se ausentara para proteger algum marujo (certamente da
auga-doce duriense).
Mas outras
histórias milagreiras se contam desta Senhora, como as duas tentativas de furto
de que foi alvo, talvez para reforçar o sentido de posse: levavam-na num burro
para a barca, chegados à Parada o asno estancou e deu um coice, cuja ferradura
ficou gravada próximo da capela (ainda hoje se lá vê); outra vez levavam-na
pela Chã (em sentido contrário), quando chegou ao Cruzeiro, aí a cabeça dos
sequestradores virou-se-lhes para trás e, estes não tiveram outro remédio se
não retroceder e devolverem-na à procedência.
A
história do cenóbio é longa e algo grandiosa. Continua a intrigar-nos o facto
de se ter construído numa zona tão interior da Península, isto é, tão distante das
fronteiras sarracenas, quando a Ordem da Santíssima Trindade da Redenção dos
Cativos, fundada por João da Mata em 1198, tinha como principal missão o
resgate dos prisioneiros cristãos nas mãos dos moiros.
A
verdade é que no século XV, um jovem do Seixo de Ansiães com inclinações
ascéticas, se instalou na tal ermida da Senhora dos Altos Céus, convencendo pouco
depois, a partir dumas visões e com a ajuda divina, que os aldeões aí
levantassem uma igreja e que a ela chamasse religiosos trinos calçados, indo
buscá-los ao mosteiro que a Ordem possuía em Santarém. 1474 é a data oficial da
sua fundação. E Frei Antão de Bem-Espera o nome do seu fundador.
Marcou
esta instituição o quotidiano da aldeia ao longo dos 360 anos da sua
existência, durante os quais foi engrossando o seu património, sobretudo
fundiário, espalhado pela região. Foi extinto em 1834, nacionalizados os seus
bens e vendidos em hasta pública, excepto alguns objectos de culto que foram
oferecidos à paróquia, destacando-se entre eles duas imponentes esculturas de
S. João da Mata e S. Felix de Valois que se encontram na igreja matriz. E a da
Senhora dos Remédios, objecto de grande veneração.
Mas
a história do conjunto edificado do antigo mosteiro e respectiva cerca e demais
propriedades rústicas não acaba aqui. Ao longo de várias dezenas de anos são esses
bens objecto de tentativas de venda, ou de transacções várias.
Os
edifícios e cerca foram numa primeira fase não anterior a 1841 adquiridos por
um indivíduo de Sedovim (Foz Côa), que posteriormente os vendera a Manuel
António Machado, da Lousa. E este aliena do conjunto o edifício da sua antiga
igreja, que vende a Manuel Joaquim Lopes, em 1868, o qual parece tê-lo
transformado em armazém ou nele instalado uma indústria de sericicultura. Ou então
o tivesse adquirido para apoio a essa indústria, pois construíra, não sabendo
exactamente se antes ou depois, um edifício ex
novo para a criação do sirgo, ainda hoje conhecido por Casulo, onde um seu
filho lhe dava continuidade nos primórdios do século XX, como prova a
publicidade inserta no jornal “O Transmontano”, publicado em Moncorvo entre
1902 e1905. É um imóvel de arquitectura industrial, que possuía várias
caldeiras próprias para a actividade. Comprava também o bicho aos aldeões,
cujas mulheres o chocavam junto no peito, o que revela que esta cultura se
popularizara por cá.
Ou
porque o edifício tivesse chegado a ser utilizado como curral, ou apenas como palheiro,
conta a família do proprietário que o pastor da casa, por descuido, lhe pegou
fogo. Foi tal o incêndio que iluminou toda a aldeia, como contava a sua filha Dioníria
Lopes, recordando ainda que seu pai, com o choque, nunca mais se levantou da
cama e daí morreu. Isto terá ocorrido por meados da década de 1890, supomos
nós.
Conta(va)
o povo que o sino do convento foi roubado pelos de Foz Côa e que sempre que
tocava se ouvia deste lado. Ora, considerando que aquele que temos como o
primeiro possuidor particular do antigo mosteiro, era desse concelho d’Além
Doiro, é muito provável que tivesse levado o sino para a sua terra mas, como
esse sino segundo a tradição fora sagrado por D. Frei Bartolomeu dos Mártires (ao
regressar de Trento) e tinha a virtude de afastar as trovoadas ao ser tangido,
a sua saída para terras estranhas constituía uma afronta para os loiseiros.
Possuímos
microfilmada a documentação do cartório do cenóbio (que perseguimos durante dezenas
de anos), cujo estudo só ainda não foi integralmente realizado, por não
existirem apoios para a sua publicação. Mas sobre o assunto demos à estampa um “Contributo
para a História do Convento Trinitário da Freguesia de S. Lourenço da Lousa e
Culto à Senhora dos Remédios”, do qual existem exemplares à vossa disposição,
que só vo-los não ofereço por já não nos pertencerem. Ele resulta duma
comunicação apresentada a uma das Jornadas Culturais de Balsamão (2002) mas
cujas actas não chegaram a ver o prelo, porque os inocentes marianos, que as
organizam, foram iludidos pelos presidentes de Câmara (o que não é de
estranhar), e teve que ser publicada na revista “Côavisão”, de Foz Côa, da qual
se fez uma separata de 500 exemplares que oferecemos a esta mesma capela, para
que a sua venda pudesse colaborar nas despesas com umas obras de que então
necessitava. Este sim, podeis levá-lo, pois uma das zeladoras, ao entregar-nos
a chave da porta para vos mostrar o interior, informou que ainda têm algumas
dezenas de exemplares dentro de um dos armários. Vendem o opúsculo a 5 euros.
Barato e arrepiado.
Lamentavelmente
os bichos-caretos que promoveram a elaboração da brasonística das freguesias do
concelho, não pelos lindos olhos da heráldica claro está, na grande maioria dos
casos não tiveram em consideração os seus valores históricos e patrimoniais. Veja-se
o caso concreto da Loisa, em que nem o Doiro, nem o Mosteiro, nem a ligação de
700 anos ao vetusto concelho do Vilarinho, foram considerados.
E
porque o tempo urge, desejamos que esta visita virtual (como agora sói
dizer-se) tenha servido para vos aguçar o apetite e, qualquer dia com vagar, possais
vir e descobrir com os vossos próprios olhos aquilo que os nossos vos poderão
mostrar e que aqui seria difícil contar. E até poderemos comer uns peixinhos do
Rio, se tivermos curjidade em os pescar.
E
como já não resta campo para a bibliografia, enviai-nos recados e vo-la
remeteremos.
Carlos d’Abreu (abreu@usal.es),
natural do Douro Transmontano, nascido no ano do início da luta armada
anti-colonialista em Angola, razão pela qual à terra dos seus ancestros veio
nascer. Viveu e estudou nessa antiga colónia, no Brasil, em Portugal e na
Espanha.
De espírito (algo) libertário, vive desde finais do
século passado, a tempo inteiro, a cavalo na raia (ibérica duriense), onde
também é lavrador e associativista militante.
Andou por três Universidades junto das quais fez
investigação (tarefa que prossegue autonomamente), sendo oficialmente técnico
superior do ministério da (des)educação (português), actividade que de quando
em vez interrompe para regressar ao Studii Salmantini e aí, em companhia do seu
setecentista paisano Francisco Botelho, tecer loas a um visionário projecto
(neo)iberista.
E como quem faz um cesto faz um cento, publicou uma
vez e um cento de outras, onde sobressai a Ibéria, a raia e o Durius, o
território e o(s) património(s), na História, na Arqueologia e na Geografia.
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