quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Alexandre Parafita - A Tradição Entrudo em Trás-os-Montes

                                                                             
Em contraste com os carnavais mediáticos das grandes urbes mundiais, muitas aldeias e vilas transmontanas mantêm as suas tradições do Entrudo, fiéis aos rituais do ciclo de Inverno, de raízes medievais, e que hoje são o retrato vivo de uma civilização rural que teima em sobreviver na região.
Os desfiles diabólicos de “caretos”, “matrafonas” e “facanitos”, assim como as leituras de “testamentos” (ou “papeladas”), os “julgamentos públicos”e as “pulhas casamenteiras” são o que perdura ainda de mais genuíno das tradições do Entrudo em Trás-os-Montes.
            As festas do Entrudo fazem parte de um tempo excepcional e têm uma função transgressora, libertadora e, em muitas circunstâncias, iniciática. Trata-se de um tempo limitado mas intenso, em que tudo é permitido, um tempo de ruptura das proibições, um tempo de violação ritual, que se opõe aos “constrangimentos” da Quaresma que se avizinha.
O Entrudo procede do latim “introitus”, que significa entrada. Por isso, representa a entrada na Quaresma, ou seja, a despedida dos excessos e dos prazeres da carne (de onde veio a moderna designação de “Carnaval”), o que confirma bem o apurado sentido cristão da sua génese, ainda que o vejamos, como festa popular, inteiramente dominado por rituais pagãos.
            Esta “despedida da carne”, que se festeja um pouco por todo o mundo em múltiplas manifestações consoante a idiossincrasia e o ímpeto catártico dos povos, vemo-la em algumas aldeias transmontanas assumir um carácter muito singular, revestindo um fenómeno antropologicamente assaz valioso.
            A tradição dos “caretos”, tal como ocorre em Podence, Macedo de Cavaleiros, é bem o espelho desse fenómeno. E é de todas a mais activa. Os rapazes vestidos com os seus fatos de franjas de cores garridas, máscaras de lata e chocalhos à cintura, percorrem num frenesim “eléctrico” todos os cantos da aldeia, entram e saem pelas janelas das casas e alpendres, trepam aos telhados, em busca das raparigas solteiras que arrastam para a rua ensaiando com elas rituais eróticos. Estas, caso não queiram entrar neste “jogo” só têm uma solução: vestem-se de “matrafonas” (mascaradas como eles) e saem também para a rua, onde estarão imunes às investidas dos moços. O cortejo completa-se com os “facanitos”, ou seja os mais pequerruchos da aldeia que, mascarados de trasgos ou mafarricos, acompanham os demais, cumprindo, também eles, o seu próprio ritual de iniciação e garantindo, ao mesmo tempo, a continuidade da tradição.
Não menos singular é o mito/rito do Entrudo em Santulhão, Vimioso, conhecido como “julgamento do Entrudo”, onde se posicionam o “Anunciador”, o “Entrudo” acompanhado pela mulher e filhos, depois os “Advogados” de acusação e defesa e, por fim o “Juiz” exibindo o “livro das leis”. Esta alegorização do Entrudo e do seu clã familiar visa responsabilizá-los pelas desgraças do Inverno, especialmente os males agrários, pelo que o ritual do julgamento representa, simultaneamente, o seu esconjuro e a purificação da comunidade, que assim entrará, com outro ânimo, num novo ciclo produtivo. Daí que, lavrada a sentença pelo juiz, os bonecos de palha, simbolizando as figuras a esconjurar, sejam queimados na praça pública perante a azáfama do povo.
            Mas com a mesma expressão ritual ou expressões afins, estas manifestações são comuns a outras zonas transmontano-durienses, como sejam os caretos de Vila Boa de Ousilhão, os Caretos aos Pares (compadres e compadres) de Lazarim, os Diabos, a Morte e a Censura em Bragança, a Morte e os Diabos de Vinhais, as Pulhas Casamenteiras em Mogadouro, os Testamentos ou Papeladas em Espinhoso, etc. [2]
            As “pulhas casamenteiras”, são tradições nocturnas, cumpridas nos sítios elevados das aldeias, onde os rapazes, disfarçados, com o auxílio de um funil dos tonéis entoam as suas sentenças, em verso, denunciando a lascívia de uns, o falso puritanismo de outros, ou casando este com aquela, geralmente os “mais encalhados” da povoação e sempre num jeito de severa crítica social:
“Vamos casar Fulano com Fulana,
Se não já não casam mais.
Vamos casá-los aqui
Par’ós tirar dos gestais!”
            O mesmo sabor crítico, imbuído de um controlo social sobre alguns dos “desmandos” mais privados e mais íntimos da cada um, achamo-lo também nas “leituras dos testamentos”, que no concelho de Vinhais são denominadas de “papeladas”, estes mais próprios das aldeias do norte da Região transmontana.
            Habitualmente simula-se a morte de um burro. Noutros casos a morte não é simulada mas é efectiva: não de um burro, mas sim de um galo ou de quaisquer outras espécies comestíveis previamente devoradas em ávidas comezainas. Depois, dois ou três rapazes mascarados sobem a um palco improvisado e ditam o testamento do animal, perante os ouvidos atentos de cada vizinho, que aguarda, ansioso e perplexo, a parte do “defunto” que lhe tocará. E o porta-voz sentencia:
“A minha tripa delgada,
Por ser a mais dobradiça,
Vou deixá-la a Fulana
P’ra fazer uma chouriça”
            Por vezes, da “papelada” sai uma literatura mais obscena, a que já se foram habituando os ouvidos da audiência:
                                   “A minha tripa cagueira
                                   Mais a pele dos meus q…
                                   Vou deixá-los p´ra Fulana
                                   P’ra fazer os salpicões”
            E assim o animal se vai “libertando” das tripas, das orelhas, dos olhos, da dentadura, dos ossos da “suã”, das unhas (estas são geralmente para as viúvas…) e das próprias fezes, sempre com um toque de ironia popular e oportuna crítica social. Não raramente, a mordacidade da crítica chega a ter contornos “políticos”, como esta que ouvimos há alguns anos:
“Ao presidente da Junta
Que não faz nada de mais,
Vou deixar a minha m…
P’ra colar os editais”
            Todas estas manifestações da tradição se inscrevem nos rituais do ciclo de Inverno, de raízes medievais e que hoje são o retrato vivo de uma civilização rural e cristã que sobrevive na Região. Nelas se acha, claramente, a original função iniciática e integradora das novas gerações, mas acha-se também, ainda que sujeita aos indisfarçáveis processos de aculturação, a matriz de uma identidade simbólica vivida não só pela comunidade presente, mas sobretudo pela comunidade emigrada nos seus regressos sazonais às origens.

Alexandre Parafita
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)



O Autor
Alexandre Parafita[1] natural de Sabrosa, doutor em Ciências Humanas e Sociais – na área de Cultura Portuguesa e mestre em Ciências da Comunicação – na especialidade de Antropologia da Comunicação, é docente do ensino superior e investigador nos ramos da mitologia e da literatura oral tradicional. Actualmente, enquanto investigador integrado do Centro de Tradições Populares Portuguesas da Universidade de Lisboa, faz parte da equipa incumbida de realizar o “Arquivo e Catálogo do Corpus Lendário Português”, no âmbito da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Autor de várias dezenas de obras, nos domínios da literatura infanto-juvenil e dos estudos do património imaterial, os seus livros são adoptados e recomendados em escolas e universidades, incluindo o Plano Nacional de Leitura (PNL).





[1] Escritor e Investigador / Centro de Tradições Populares Portuguesas da Univ. Lisboa
[2] A riqueza destas tradições, enquanto património cultural imaterial, tem merecido atenção de alguns estudiosos luso-galegos com vista à sua classificação como Património Mundial pela UNESCO, em conjunto com as festas e rituais de Inverno no outro lado da fronteira, mais propriamente em Viana do Bolo, Vilariño de Conso, Manzaneda, Laza, Verín e Xinzo de Limia, na Região da Galiza. Mas também na província espanhola de Zamora, na fronteira a leste com Portugal, são conhecidas as festas de El Tafarrón de Pozuelo de Tábara, El Zangarrón de Sanzoles, La Filandorra de Ferreras de Arriba, El Pajarico y el Caballico de Villarino Trás La Sierra, Los Diablos de Sarracín de Aliste, La Obisparra de Pobladura de Aliste, Los Cencerrones de Abejera, El Zangarrón de Montamarta, Los Carochos de Rio Frio de Aliste e Los Carnavales de Villanueva de Valrojo (sobre estas temáticas, cf. Gonzalez Reboredo, X.M. – Guia De Festas Populares De Galicia, Vigo, Galaxia, 1997; Gonzalez Reboredo, X.M.; et al.Entroido en Galicia, Deputación da Coruña, 1985).

1 comentário:

  1. Bom dia e parabéns pelo seu blog. Há anos vi um documentário, ou reportagem, sobre uma viúva que ia voltar a casar, algures em trás-os-montes, e realizava-se uma espécie de cortejo (tipo entrudo) para transmitir à viúva que estava a "trair" o marido que já estava no cemitério. Era mais ou menos assim. Por acaso não me sabe informar de mais nada? Acho que seria interessante para o seu blog.

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Igreja de São Faustino do Peso da Régua