segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

António Passos Coelho - O Pai do Trabalho


António Passos Coelho
(Médico)
O nome de registo civil e de baptismo era Francisco do Carmo. A mãe morrera ainda ele mamava, a avó, que o herdara, também se fora poucos Invernos depois, e a parenta afastada que o recolheu não chegou a vê-lo papaguear o padre-nosso de fio a pavio, por se ir juntar às anteriores no subterrâneo reino das minhocas, deixando o azarado miúdo entregue à lei da natureza.
Naquele tempo e em tais lugarejos, às crianças de pais inconómicos – económicos por não darem o nome aos descendentes – taxavam-nas de Filhos das Ervas, Filhos da Corda da Burra ou Filhos da Desgraça. Esta última tinha mais propriedade, devido à mãe do Francisco ter sido a Graça.
Antes de ser Pai do Trabalho, o Francisco era Filho da Desgraça.
- Ó Jabel, viste por aí o Filho da Desgraça?
- Ó Antonho, dá uma corrida à venda, ver se anda por lá o Filho da Desgraça?
- Em que casa estará hoje o Filho da Desgraça?
Para qualquer volta, se em casa não havia quem, ou ninguém se encontrava disponível, procurava-se o Filho da Desgraça.
Comia onde lho davam, pernoitava onde calhava, dentro ou fora de portas, retribuía fazendo recados, vagabundeava no povo, que punha em alvoroço quando, sem dar cavaco, se sumia para outra aldeia, em regra próxima e da mesma freguesia. 
- Ó meu safado! Porque não deixas parte na venda, ou no sacristão, do sítio para onde vais? Fica o povo em ânsias, sem saber o que te aconteceu.
Van Gogh, O Mineiro com a Pá,
desenho (1879)

De facto ele era daquele povo, que o considerava tão seu como a capela, o cruzeiro, as alminhas da encruzilhada do cemitério, onde a desoras depositavam os restos das benzeduras contra maus olhados e espíritos ruins. Mas em alturas de apertos de sementeiras e colheitas, gente de fora aliciava-o, servindo-se também dele pelo comer e qualquer bugiganga que o seduzia: um pião com a respectiva baraça, um pífaro, uma gaita de beiços, raramente vestuário ou calçado. Voltava roto e maltrapilha como ia. Essa minudência, mais ou menos tarde, era sempre satisfeita por alguém do povo dele, cujas boas almas, hoje uma, tempos depois outra, acrescentavam mais um remendo aos super-remendados andrajos. Peça de roupa nova, chancas novas, implicavam peditório.
- Andamos a pedir para uma roupa pró Filho da Desgraça!
- Ponde lá dois tostões.
- Quanto quer dar prós socos do Filho da Desgraça?
- Um tostão, está bem?
Raros moradores mandavam assentar cinco tostões. Mas todo o mundo dava, porque todo o mundo se servia dele. E ele servia-os não apenas com generosidade, mas com espantosa satisfação. A felicidade dele estava em exercer qualquer trabalho a alguém. Se o não ocupavam era ele que se oferecia:
- Vossemecê não quer que lhe vá pelo gado ao monte?
- Anda a regar sozinho? Eu vou guardar-lhe o rego.
- Não tem nada que me dar a fazer?
.Só se sentia bem a trabalhar. Por isso o crismaram de Pai do Trabalho.
Criou-se assim.
Cresceu assim.
Em casa de uns e de outros, sem família, sem escola, sem futuro.
Mas o povo era grato e ia provar-lho.
Ia fazer-lhe uma casa. Exactamente. Uma casa. A junta da freguesia disponibilizava o terreno – um pedaço de baldio no Monte dos Seixos – o povo comprava os precisos e trabalhava a obra: cozinha, dois quartos, saleta; paredes de pedra, que ali não faltava, cobertura de telha Marselha, como as dos ricos, sobrado de madeira nos quartos. Um jinelo em cada quarto e na saleta. 
Peter Bruegel, A Ceifa do Feno, c. 1565

Não foi fácil harmonizar a conjugação do esforço colectivo para a concretização do benemérito projecto. O povo, na cabeça das pessoas que não na realidade, estava dividido em duas partes, que se afrontavam e invejavam: o Cima do Povo, para cima da capela, e o Povo de Baixo, até à capela. O Povo de Baixo levava sempre a melhor: dava mais para a festa; contribuía com mais ofertas – fumeiro, cereais, batatas, castanhas, etc. – para a arrematação em proveito dos serviços de culto, apresentava o melhor ramo para o baile de Carnaval. A rivalidade era tanta que chegaram a admitir que moço que pretendesse casar com rapariga da outra parte, teria de a pagar como se fosse natural de outro povo. Claro que em casos de urgência, ou necessidade maior, como fogos e desastres, nenhuma emulação existia.
Ao fim de prolongada e renhida conversa, acordaram que o trabalho de pedreiro era feito pelo Cima do Povo, onde havia três pedreiros; o de carpintaria, pelo Povo de Baixo, que tinha uns sujeitos que se ajeitavam nessa arte, e possuíam a ferramenta. Os pinheiros para a madeira seriam fornecidos metade por cada lado. O que fosse de compra, igualmente a meias. Domingos e dias santos, depois de missa, os braços e pernas válidos da aldeia labutavam na obra. Com infatigável genica e geral boa disposição. No Inverno, a irregularidade do tempo não permitiu uma continuidade da faina, a partir da Primavera foi um ver se te avias até ficar pronta, que o Verão ocupava, de sol a sol, velhos e novos, homens e mulheres, na salvação das novidades.
Com as cerejas mais temporãs a pintalgar, terminava aquela extraordinária tarefa do povo. Foi com expansivo júbilo colectivo que o Pai do Trabalho recebeu a chave, que daí em diante exibia enfiada no baraço que fazia as vezes de cinto das calças. Não faltaram no festivo acto comentários e graças de uma e outra boca:
- Rico palácio!
- Já te podes casar!
- Dois quartos? Se te zangares com a patroa, corres com ela para o outro quarto…
- Agora és proprietário!
Exactamente, proprietário! Representantes do Cima do Povo e do Povo de Baixo procederam à legalização da casa na Conservatória do Registo Predial e na Fazenda, em nome de Francisco do Carmo, verdadeiro nome do Pai do Trabalho.
No ano seguinte, o Francisco foi às sortes, incluído no grupo chinfrineiro dos mancebos da freguesia. Apesar da boa estatura física, pela conversa e pelos modos, a junta militar não o apurou. Deve ter julgado que aquele mancebo sofria de certa falha do entendimento.
As falhas de entendimento, geralmente, resultam mal para os desinfelizes que nascem com elas; no caso do Pai do Trabalho, uma admiração, deram para o bem: a falha dava-lhe para trabalhar!
Algumas semanas após a farra das sortes, recebeu uma caderneta – Da tropa? Da Fazenda?. –que ele não sabia para que efeito.
Alguns anos depois, acampou no Largo da Fonte uma família de aldeagantes, que além de consertar malgas, travessas, pratos quebrados, potes rotos, e afiar facas e tesouras, trazia uma geringonça que de noite, com ajuda duma luz, projectava num lençol o São José, a Virgem Maria, o Menino Jesus e o burrico em fuga para o Egipto, por causa do facínora Herodes. Essa famelga de saltimbancos levou com ela o Pai do Trabalho.
Van Gogh, O Semeador (segundo Millet (1888),
Óleo s- tela, 64x 80,5 cm.

Eis senão quando, o regedor da freguesia pregou na tábua dos editais da porta da igreja um papel da Fazenda, que rezava que uma casa sita no Monte dos Seixos, pertencente a Francisco do Carmo, ia ser posta à praça, em hasta pública, às tantas horas do dia tal, na repartição da Fazenda.
Essa agora!...
Que tinha a casa do Pai do Trabalho, aquela casa do povo, a ver com a Fazenda? Que devia ele à Fazenda para lhe penhorar a casa?
Devia-lhe com licença um corno!
O Pai do Trabalho, efectivamente, não devia rigorosamente nada, mas o cidadão Francisco do Carmo devia cinco anos de taxa militar, em cada ano relaxada por falta de pagamento.
Revoltado, o povo discutiu asperamente o caso. Houve quem sugerisse um peditório para satisfazer o total da dívida, evitando a publicada venda do “palácio”. Não teve vencimento a filantrópica proposta, com o argumento de que seriam necessários peditórios anuais durante os trinta anos seguintes, por a taxa abranger trinta e seis anos.
Porque não arrematava o povo a casa? Para a pôr em nome de quem?
Que se cosesse a Fazenda!
Porque não quiseram o Pai do Trabalho na tropa? Não o quiseram e obrigavam-no a pagar? Isso era direito?
O povo ia dizer-lhes, aos mandões da Fazenda, a quantos de Maio pariu a poupa!
Uma noite, antes da data anunciada no papel, o “palácio” do Pai de Trabalho ardeu. Só restaram os pardieiros, negros das chamas e do fumo. Não tocou o sino a rebate, ninguém acorreu com baldes e cântaros para dar luta ao fogo. À porta de casa, a povoação rejubilou com o arraial que avistava no Monte dos Seixos!
Agora a Fazenda que pusesse em praça os restos!
Até o diabo arreganhava os dentes de caçoada na profundeza do inferno, se o povo suou as estopinhas a construir uma casa para o Pai do Trabalho e os safardanas da Fazenda se abarbatavam com o valor da sua venda!
Não teve fim o espanto do Pai do Trabalho, quando, de volta, viu a casa completamente ardida. Foi por ele ter ido com os aldeagantes? Para a queimarem, escusavam de lha fazer…Não foi por isso? Foi a Fazenda? Por não pagar a taxa militar? Como podia pagá-la, se não tinha dinheiro?
No fraco entender do Pai do Trabalho, a Fazenda não devia obrigar a pagar quem não tinha dinheiro.
Vila-Real,  Fevereiro de 2011


A.     Passos Coelho

 in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

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