terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Angola, Amor Impossível



Luanda - Av. Paulo Dias de Novais- Marginal - c. 1965
Se tivéssemos que eleger os 10 melhores livros com esta temática, Angola, Amor Impossível estaria entre os primeiros.
A estrutura clássica facilita a leitura, os diálogos são admiráveis, as descrições, sínteses tão belas como as de Jorge Luís Borges, os subtemas abordados com lucidez e as preocupações sociais, sobretudo o bem estar humano, lembram-nos Servo e Senhor, esse conto soberbo de um gigante da Literatura – Leão Tolstoi.
A paixão pelo tema originou esta breve recensão[1]

Fronteira do Caos Editores, 2001
O Livro

Depois de 15 páginas admiravelmente “esgalhadas” sobre a infância do personagem principal, o Dr. Pinto Ladeira, onde não faltam descrições episódicas sobre o barbeiro da terra ou sobre o Reverendíssimo bispo da vila (Vila Real), Passos Coelho, numa escrita leve como o vento, dá inicio à viagem que o levou a Angola para dirigir o sanatório de Luanda. Uma viagem insípida no paquete Vera Cruz, antecedida por conversa com o Ministro do Ultramar, no Caramulo.
O convite para dirigir os serviços no Bié (porque o sanatório de Luanda ainda se encontrava em acabamento), que recorda com saudade, onde produziu obra útil e apreciada, tornou-o verdadeiramente feliz.
É nessa imensidão de terra que são produzidos diálogos admiráveis com as populações, os órgãos administrativos e amigos, como o Dr. Roçadas.
Mais tarde, já em Luanda, lembra o saudoso Bié: os doentes do Isolamento, as receitas que ensinou às freiras do mesmo, os serões no palácio com o governador e a esposa, os colóquios nocturnos com o Dr. Caeiro na Pastelaria Primor, a conversa com o Mariano, os churrascos que com ele e com as enfermeiras comeu no Cuquema, as visitas às missões, que festivamente o recebiam, as aulas de higiene na Escola Comercial e Industrial, as idas à aprazível Ceilunga, as sessões de cinema, o convívio com os bem comportados prisioneiros do Capolo e o encontro com o Santo, as atenções que de todos era alvo, tudo o que viu e amou na bela cidade de Silva Porto, denominada Kuito pelos indígenas. Nesse longínquo Bié havia ainda de conhecer a bela freira Florence, o Amor Impossível.
(c. 1955) Vista parcial de Nova Lisboa
Além da vivência pessoal, onde se denunciam abusos administrativos, fala-se da guerra do Norte, dos massacres da UPA, do clima independentista da antiga colónia e da adopção de Teresa Rosa, uma negrinha de 5/6 anos cujos pais haviam morrido da fome e tinha sido resgatada de um acampamento terrorista.
Em Luanda, destacado para o sanatório que dirigiu, o Dr. Pinto Ladeira observa os ares húmidos e abafadiços. Aí, com preocupações sociais, manda distribuir comida e água pelos musseques contíguos ao sanatório, atitude que lhe cria algumas incompreensões dos órgãos hierárquicos e até dos subordinados negros que demonstram atitudes invejosas para com os seus irmãos de cor.
(c. 1965) Fenda da Tundavala -
Sá da Bandeira
Das descrições feitas pelo personagem principal da narrativa, viajamos no tempo, para a Luanda dos anos 60/70 do século passado, onde se recorda a cabeleireira Gaby, a praça dos Lusíadas, na qual monta escritório e se torna famoso como médico, etc., e um almoço em casa da família Baio, cujo petisco é um delicioso churrasco feito pela Dnª Nazaré, uma negra com traços finos. Ao longo do repasto comenta-se com lucidez o problema da independência de Angola.
O leitor, agarrado a uma narrativa de excepção, embrenha-se em episódios que entroncam com a dimensão humana do autor: a tentativa de solucionar o problema da Dnª Nazaré e do Amigo Baio; da família Seita, da logística do Sanatório, quando se abrem horizontes negros sobre o futuro do território; ou a angustiosa procura de Teresa Rosa, cuja notícia de uma vida lhe é transmitida por missiva de Bia, a esposa, já na metrópole. E momentos dedicados à reflexão através da leitura dos Diários de Torga ou da obra de Ernskein Caldwell: A Estrada do Tabaco.
Os reencontros com a Irmã Florence, calorosos, ternurentos, mas confrangedores, tornam a narrativa expectante. E os reencontros com Chitungo, o Peitudo do Capolo, abrem portas a uma Amizade de vida (recorde-se o episódio do Comodoro), e a um conhecimento de verdade sobre o processo independentista, analisado com mestria, desde 1961 (ataques bárbaros da Upa), passando pelo momento em que se conhecem, até ao dia da despedida. A referência sumária aos Pioneiros[2] não é inocente.
(c. 1965) Vista parcial de Sá da Bandeira
São dignos de tela de cinema, a sua ida de nove semanas à metrópole. Aí reencontra um antigo doente na Baixa de Lisboa, seguindo depois para Vila Real (que encontra triste e suja), onde visita amigos antigos, e se actualiza com a situação politica do País (recorde-se a ocupação da casa, por uma súcia de pelintras); o discurso do Dr. Josué que denuncia os excessos dos saneamentos; a aventura nos meandros da cidade de Luanda para conseguir dotar o sanatório de víveres e elementos de logística – telefone e electricidade. É o início da guerra civil em Angola. E com ela tem um encontro fortuito com uma conterrânea que havia conhecido menina.
Em movimento constante, o narrador transporta-nos para cenas inimagináveis: o tiroteio, os distúrbios, os cadáveres amontoados, o cheiro nauseabundo, os contactos com pessoas influentes e algumas amizades para resolução de alguns problemas. Entre outros, o da irmã de Agostinho Neto, a Dnª Elisa; os fuzilamentos sumários dos Flechas[3] e o assassinato do engenheiro branco português. Os acontecimentos na capital do Bié onde se instalara a confusão. A violência que vitimou famílias inteiras.
(c. 1968) Vista parcial de Silva Porto, Kuito
Os diálogos vivos prendem a atenção do leitor. Refira-se o encetado com o Dr. Nilip, um português de Goa, sobre a trapalhada que Abril criou nas pessoas, interrogando-se sobre a apressada independência e dos males que o País sempre padeceu: as cunhas e a injusta preferência pelos menos qualificados. Não são menos vivos os diálogos desenvolvidos em repasto com o Dr. Caeiro e esposa, no jantar com Dnª Paz.
A partida para o Puto[4] estava breve. Os doentes homenagearam-no, Pinto Ladeira que se não esquecera da bandeira pátria, estava sem dinheiro; um colega do Caramulo havia de lhe emprestar cem contos.
Sé Catedral - Sá da Bandeira (c. 1955)
Nessa noite, a da despedida, não consegue dormir; no dia seguinte segue rumo a Portugal num avião da TAP para o futuro brumoso que o esperava. Ao seu lado vai Dnª Paz.

Este livro é muito mais do que aquilo que aqui deixamos. Lê-lo é conhecer a humanidade que norteou a vida do autor. A sua dimensão humana. E é ter presente, além do romance, o livro de memórias, a sua autobiografia de um curto tempo da sua vida; é conhecer, com verdade, um período conturbado de dois países: Portugal e Angola.
Em suma, é um poema, não a um, mas a três amores impossíveis: a Angola no seu todo, à Irmã Florence e, sobretudo, ao seu saudoso Bié. Que bem podia ser musicado com ritmo do merengue. Uma canção de Humanidade.
Armando Palavras


O autor


Amónio Passos Coelho nasceu em Valnogueiras (Vila Real) em 1926. Formou-se em Medicina na Universidade de Lisboa. Estagiou no caramulo (1954). Em 1960 obtém a especialidade em Pneumotisiologia. Em 1970 exerce funções em Angola, onde é encarregado de organizar a luta antituberculosa. Em 1973 é nomeado Director do Hospital-Sanatório de Luanda e é responsável pelo curso de Tisiologia na Faculdade de Medicina de Luanda. Regressado a Portugal desenvolveu a actividade em Vila Real, onde desempenhou numerosos cargos. Paralelamente desenvolveu uma considerável actividade literária, publicando vários livros de contos como Gente da Minha Terra e Histórias Selvagens. Além de poesia, dedicou-se ao romance: Caramulo (reeditado em 2006), Zélia (2008) e Angola, Amor Impossível (2011).


                                                                                 Outras obras do autor




[1] Iremos, ao longo do ano, se as condições o permitirem, fazer o mesmo com outros autores transmontanos. Nestes casos com obras recentes, ou mesmo antigas.
[2] Crianças Soldado.

[3] Tropa especial do exército português, constituída por indígenas angolanos.
[4] Forma como os indígenas angolanos se referiam a Portugal.


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