segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Apresentação em Lagoaça - Modesto Navarro

TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO MOSAICO DE CIÊNCIA E DE CULTURA
Comunicação

António Modesto Navarro
         (escritor)

colectânea

Agradeço a oportunidade magnífica de estar convosco, na festa de Lagoaça, terra que hoje é o centro do mundo transmontano e duriense.
Agradeço a Armando Palavras, a António Neto, à Junta de Freguesia, na pessoa do seu presidente, ao povo desta terra e a todos os presentes.

Participo na apresentação deste livro “Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e de Cultura”, desde logo reconhecendo a voz de Miguel Torga na capa, ao falar dos homens do dia-a-dia que levantaram e levantam paredes de ilusão. Fizeram-no com muita dor e anseio, ao construírem a nossa terra, a nossa vida, e a partirem para longe, para o Brasil e África, para as Franças e Araganças da nossa vontade de sermos livres e felizes e de termos pão.
Há uma situação de que falo neste livro, sobre um trolha, um operário de Vila Flor, que uma noite nos surpreendeu dizendo uma quadra da sua autoria. A partir dali, quem tivesse olhos para ver, sabia que também podia ter cultura e enfrentar o mundo num plano de igualdade e de afirmação humana.

Somos tantos a sonhar e a escrever todos os dias o que queremos e ambicionamos para as nossas terras e para o nosso país. E a fazer, quantos somos?
Lembro-me bem da luta destes povos pela linha no Sabor. Quem assinou o protocolo com todos os presidentes das Câmaras Municipais do distrito, em Bragança, como primeiro-ministro, para encerramento das vias do Sabor e do Tua? Quantos anos demorou a construir o IP4? Foram catorze anos de exigência daqueles concelhos do norte de Trás-os-Montes.
Hirondino Isaías, Amadeu Ferreira, Fernando Castro Branco, António Neto, Modesto Navarro, José Santos (Presidente da Cãmara Municipal de Freixo) e Carlos Novais (Presidente da Junta da Freguesia de Lagoaça
Hoje, rasgam-se nas nossas terras o IP2 e o IC5, vias necessárias,  ao lado da importância, de novo reconhecida, de desenvolver a  ferrovia, para futuros passos no sentido da criação de projectos fundamentais  para o nosso país.
Numa recente visita ao castelo de Ansiães, alguém dizia que a primeira construção do homem, no sentido de formar algo parecido com uma casa, foi para guardar os mortos e respeitar a morte. Quando começaremos a respeitar a vida e a abandonar a atitude de morrer aos poucos, sem nada fazer?
Agora, como é dito num dos primeiros textos deste livro, temos problemas graves com a agricultura e o esvaziamento do interior. Há, também, no país, o desaparecimento da indústria e das frotas de pesca; há problemas cada vez mais graves nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e há o mundo imenso do interior, de onde partimos e onde voltamos sempre, para nos sentirmos vivos .
Este livro é um exemplo marcante e prodigioso da nossa identidade e cultura, do nosso amor à terra e aos homens e mulheres, ao património material e imaterial que nos enraiza e projecta para o futuro.
Mas o vazio das aldeias e das vilas é um facto. Em Trás-os-Montes e Alto Douro, só quatro concelhos estão “acima da linha de água”, no que toca a crescimento da população. Mesmo assim, Vila Real, Chaves, Mirandela e Bragança sustentam-se à custa das populações dos outros 32 concelhos e das aldeias desses quatro concelhos que representam, que também se esvaziam.
Neste livro, temos as introduções de António Neto e de Armando Palavras, e seguem-se os textos de Adriano Moreira e de Loureiro dos Santos. Depois de tanta adesão e promessas da comunidade europeia, o que fica? O que significa hoje a ameaça da informação e das guerras e como somos manipulados à escala global e local?
Luís Dias de Carvalho, num exemplar trabalho incluído neste livro, fala-nos da usura como um crime, do capitalismo e do liberalismo sem rostos, hoje no seu melhor; e diz que nos resta o comunitarismo ou, de novo, a diáspora, a partida como fuga ao que os tecnocratas destruíram, com tantas promessas e teses que só funcionaram nas suas cabeças, de gente a quem falta o humano toque do sonho e da vida.
Hirondino Fernandes recorda Fernando Subtil com inteira justiça. A nossa terra faz-nos falta para falarmos de felicidade, diz Telmo Verdelho neste livro. E acrescenta, com orgulho, que “ser transmontano é ser lobo magro, mas sem coleira”. Quem dera que assim fosse, magro porque cuidamos da saúde e sem coleira porque exigimos liberdade e pão como quem respira.
Inocêncio Pereira faz o levantamento impressionante de figuras destas terras que demandaram outros países e  culturas.
O coronel Abílio Gomes fala-nos de Barahona Fernandes, um vulto enorme da medicina, natural de Vinhais. Bento da Cruz vem trazer-nos de viagem a Moncorvo, Freixo e Mogadouro. João de Sá anda pela nossa Vila Flor bem amada, e bem. Ernesto Rodrigues, Fernando de Castro Branco e Pedro Castelhano dão-nos a medida exacta do valor dos nossos poetas, que aí estão, a engrandecer este livro. António Barreto e Ilda Pinto Ribeiro viajam pelo Douro acima. Borges Coelho, o poeta e historiador, traz-nos uma história interessante e bem escrita, depois de um poema de Sílvio Teixeira. António Passos Coelho, o pai do actual primeiro-ministro, dá-nos um conto naturalista sobre um homem a quem chamavam o “Pai do Trabalho” por não ter nada e só querer ser útil aos outros, na aldeia. O povo, agradecido, fez-lhe uma casa. Mas vem a Fazenda e põe a casa em hasta pública, por ele não pagar cinco anos de taxa militar. Então, o povo revolta-se e, como o “Pai do Trabalho” tinha desaparecido sabe-se lá para onde, pegaram fogo à casa por não a quererem dar à Fazenda, ou seja, às finanças governamentais. Quando regressou à aldeia, o “Pai do Trabalho” diz, no seu entender, “que a fazenda não devia obrigar a pagar quem não tinha dinheiro”. Recomendo a leitura desta história a quem queira estar atento a tantos impostos e sacrifícios que vêm para cima do povo deste país. Também o actual primeiro ministro devia ler este conto escrito pelo seu pai.
Bernardino Henriques, Fernando de Castro Branco, Fernando Chiotte Tavares, Rentes de Carvalho, Jorge Tuela, num conto premonitório, sobre o vazio da terra e a emigração que cresce para Angola, Manuel Cardoso, com os Trasgos, o rio e a barragem, trazem-nos histórias gratificantes que lemos com prazer. Carlos Abreu apresenta-nos uma monografia bem feita e apelativa, sobre a Lousa e esta sub-região do distrito, nas suas ligações tão intímas e identitárias. Márcia Trigo impressiona-nos com um trabalho que acompanha muito de perto a transformação do mundo global, a perda de referências, direitos e valores que pareciam adquiridos, desde a Revolução Francesa, desde a industrialização e o avanço da civilização para a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Um "mar de gente a assistir"

Alexandre Parafita, num excelente texto, abre-nos os primórdios da festa do Entrudo nas nossas terras. António Pinelo Tiza dá-nos, com o seu saber de experiência feito, a festa da cabra e do canhoto, a chegada do dia de Todos-os-Santos e do inverno. Alexandre Cerveira Lima abre-nos a magnificência do Côa e do Douro internacional; António Martinho Batista acompanha-o com mestria, falando do parque arqueológico e do Museu do Côa.
António Lourenço Fontes voa imenso sobre o Barroso, a história e as histórias dos povos das aldeias, a cultura e as raízes que vêm da terra fria e iluminam o nosso passado e presente ao vivo. Barroso da Fonte dá-nos elementos históricos e informação sobre a região e a Casa de Bragança. E assim chegamos a Amadeu Ferreira e ao mirandês da ambuça, ou seja, as duas mãos abertas para receber, em concha, mãos que também sabem dar, a quem vem por bem e nos chega à porta. Carlos Ferreira e Júlio Meirinhos oferecem-nos trabalhos muito grandes de leitura e conhecimento sobre o planalto de Miranda e o mirandês; Francisco Niebro abre-nos ainda mais as terras de Miranda; Donzília Martins e Virgílio Gomes falam-nos de reminiscências das gentes e das nossas terras.
Na arte, Eugénio Cavalheiro faz um luminoso trabalho sobre a visitação e sobre Maria, grávida de Jesus; Nadir Afonso diz-nos o que é e o que pensa sobre as artes; José Neves e Paulo Preto defendem muito bem a música tradicional e nossa; logo de seguida, Roberto Leal, conta as suas idas às festas do concelho de Macedo.
Nelson Campos fala-nos do Museu do Ferro em Moncorvo e da região; na ciência, Maria dos Anjos Pires e Paula Seixas Arnaldo dão-nos contributos e ensinamentos estimáveis; na gastronomia, José António Silva e Jorge Lage pontificam; na crítica social, Manuel António Pires Braz traz-nos, especialmente, um excelente texto sobre os segadores e as segadas no concelho de Macedo; Sílvio Teixeira entra na poesia e na crítica sobre a realidade actual. E, com o Foral de Lagoaça na página 245, abre-se o terreno para António Manuel Pires Cabral fazer justiça sobre a vida e a obra de Augusto Moreno, num texto gratificante para a defesa e o futuro da nossa língua.
Adília Figueira Verdelho escreve sobre Lagoaça e os Lagoaceiros, sobre as arribas e o trabalho que caracteriza este povo; Aniceto Afonso dá-nos uma digressão militar preparatória da defesa de Portugal face a invasões e outras agressões; António Almeida Santos diz-nos como se afeiçoou a Lagoaça e a Trás-os-Montes; António Pimenta de Castro abre-nos o livro e a vida dos marranos em Lagoaça; António Júlio Andrade e Fernanda Guimarães abrem ainda mais esse mundo das religiões, dos marranos e da resistência humana à opressão e à violência sobre as crenças e as ideias; Armando Palavras fala-nos de Lagoaça, das irmandades, do culto e do património religioso; Hirondino Isaías, Mandocas, Maria Margarida Almeida Santos, Otília Pereira Lage, Pedro Figueira Verdelho, Teixeira Leite, Vítor Barros, Maria Aline Costa, Carlos Novais, José Santos, Rui Carvalho, Helder Gomes e Adelaide Neto  completam o livro de paixão, alegria e amor por Lagoaça, terra que tanta história e tantos amigos tem que só ela poderia ser a razão e o motor de um enorme livro do local e do global, da identidade, da resistência e do sonho mil vezes sonhado de sermos livres e felizes.
Todos nós merecemos isso. E hoje somos felizes por aqui estarmos, por convivermos à roda de um livro inesgotável como fonte de ensinamentos e de crescimento humano.
Felicito novamente quem teve esta ideia e quem a pôs de pé. Não é por falta de poetas, de escritores, de cientistas, de estudiosos, de trabalhadores e de amantes da vida e do sonho que a região de Trás-os-Montes e Alto Douro deixará de ir em frente. Às vezes, vem-nos à memória aquela frase já tão gasta, de “quando este povo acordar é que vão ver o que ele vale”. Prefiro não ir por aí e dizer que é todos os dias que fazemos a nossa terra e a nossa existência, que nos afirmamos e libertamos para rompermos outros futuros e esperanças.
 Atrás de tempos outros tempos hão-de vir. O mundo é composto de mudança, sabia-o Luís de Camões na pele e sabemo-lo nós, que aqui, em cada aldeia e vila, ou lá fora, em Lisboa e em qualquer país, fazemos o que podemos para continuarmos a avançar rumo à realidade de sermos humanos e interventivos.
“Ar livre”, clamava Torga num belíssimo poema ibérico. Ar livre de Trasgos e fantasmas, de gente mecânica que não é gente.  Ar livre para respirarmos e engrandecermos ainda mais o que somos e o que queremos ser, rumo à civilização do futuro com os pés bem assentes nas terras que amamos, nas ideias e na capacidade de criar e transformar que nos caracterizaram e caracterizam.
Muito obrigado pela vossa atenção e digo-vos até sempre, até um novo dia de regresso que não tenha partida nem emigração obrigatória, para podermos ser nós enquanto quisermos e mandarmos na nossa terra.

Nota: Contamos ainda esta semana, publicar as "notas" de Amadeu Ferreira, bem como a comunicação do juiz da Relação de Lisboa, na livraria Ferin (Lisboa) sobre a obra de Amadeu Ferreira: Tempo de Fogo

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